Por ANTONIO BARSCH GIMENEZ*
Substituir o jurista pela máquina é ignorar que o direito é uma arte viva, um tecido de fatos e valores em eterno movimento, cuja aplicação requer uma centelha criativa que nenhuma inteligência artificial pode replicar
1.
A inteligência artificial tem aparecido nos últimos anos como um deus ex machina, que poderia solucionar uma série de problemas da nossa sociedade. É possível tecer as mais variadas críticas a respeito de seu funcionamento, desde questões éticas até a respeito da eficiência no atingimento de certos fins.
Uma das críticas mais contundentes a essa tecnologia é materialista, demonstrando que a inteligência artificial não se diferencia essencialmente da maquinaria utilizada desde a Revolução Industrial: ela serve para aumentar a produtividade do trabalho e reduzir o custo do trabalho, o que permite aos donos dessa tecnologia abocanhar maior parte do que é produzido como lucro; enquanto a jornada de trabalho não é encurtada nem a renda dos trabalhadores é aumentada.
Ao mesmo tempo, a maquinaria “facilita” o trabalho, não sendo mais necessário o trabalhador qualificado, pois aquela função pode agora ser feita a partir do manuseio de botões e alavancas (Marx, 1986, p. 4-56).
Surge então a questão: quais trabalhos qualificados podem ser eliminados por essa tecnologia? No campo jurídico, há ainda controvérsias a respeito de seu uso. Tramita na justiça, por exemplo, um caso que questiona a legalidade de uma empresa que fornece petições iniciais feitas por inteligência artificial (Cicco, 2025). Ao mesmo tempo, o Conselho Nacional de Justiça recentemente desenvolveu uma inteligência artificial para uso de juízes para certos casos (Brasil, 2025).
Nessa toada, o texto recente de Ari Solon e Alan Winther – publicado no site A Terra é Redonda – oferece uma crítica ao uso dessa tecnologia no âmbito jurídico, dando foco especial à atividade do magistrado. A crítica pode ser resumida da seguinte maneira. (i) A “racionalidade” da inteligência artificial leva em conta apenas algumas das inúmeras variáveis presentes nos casos concretos, enquanto magistrados usam outros meios que vão além dessa mera racionalidade instrumental em suas decisões, a fim de atingir a “satisfação da sociedade”. A complexidade desse valor é o que impede um mero cálculo dedutivo e exige, em seu lugar, a prudência aristotélica.
(ii) O reino da pura lógica computacional não consegue abarcar as modificações da sociedade nem as antinomias dentro do sistema jurídico. Apesar de treinada conforme o princípio da não-contradição da lógica proposicional, o direito contém inevitavelmente contradições dentro de si. É possível radicalizar essa crítica ainda mais.
2.
Em sua teoria tridimensional do direito, Miguel Reale já havia percebido que o direito não poderia nunca ser um sistema fechado. A experiência jurídica é composta pela interação incessante entre valores e fatos, que se alteram historicamente. Portanto, o direito é como uma colcha de retalhos, onde cada norma particular surge de um momento específico, a partir da interação de fatos e valores relevantes desse momento determinado.
Empiricamente, essa abertura foi verificada por Manuel Atienza, que observou o uso de diversos valores e com pesos diferentes no processo legislativo. A sistematicidade do direito é apenas um desses valores, mas muitas vezes ele tem um papel de menor relevância.
Apesar dessa multiplicidade, a razão humana opera sempre com a presunção de que há uma unidade fundamental de toda a realidade. A multiplicidade que se encontra na natureza é subsumida em leis gerais e estas, a leis ainda mais gerais e universais até a unificação disso em um sistema. Trata-se, assim, de uma sistematicidade putativa – uma ideia regulativa em termos kantianos –, mas essa presunção é central para a ação prática.
Por ser algo que não se pode provar, mas sempre está pressuposto, esse funcionamento da razão não dispõe de regras estritas para seu funcionamento, mas apenas de “bons exemplos”. Dada sua relação com a estética, o caso mais emblemático disso é a criação de uma obra de arte, que não pode ser mera imitação nem contém regras rígidas; o artista pode apenas inspirar-se em obras passadas.
Esse funcionamento da razão está plenamente em voga no direito, como mostra a teoria pura de Hans Kelsen. A concepção de um sistema harmônico é o que está por trás da hierarquia das normas e de sua uniformidade conforme a norma fundamental. A unidade em torno dessa norma está sempre pressuposta pelos juristas e orienta sua prática, mas não há uma norma fundamental que possa ser consultada como as diversas leis de que dispomos; é, como Kelsen diz expressamente, uma norma pensada.
Hans Kelsen também reconhece que o direito não é lógico. Além do conflito de normas, o que violaria o princípio da não contradição; a aplicação das normas aos casos concretos não é uma mera dedução lógica, e sim uma atividade criativa. O juiz e o legislador dispõem de certos parâmetros para essa criação, mas ela nunca é totalmente determinada. Portanto, a interpretação das normas não é uma técnica passível de imitação.
Por conta dessas características do direito, todas as tentativas de criar um direito perfeito foram frustradas. Justiniano, após a compilação do Corpus Iuris Civilis, interditou sua interpretação, mas os glosadores e os comentadores medievais provaram a impossibilidade dessa interdição. O Código Civil Napoleônico também teve pretensões similares, que foram inevitavelmente derrotadas já no século XIX (Kelley, 1987).
3.
Esses casos históricos ilustram o caráter aberto do direito, que se deve ao próprio funcionamento da razão que Kant observara e que Kelsen verificou no âmbito jurídico. Apesar de reconhecer a atividade criativa do aplicador da norma, Hans Kelsen não chegou a dizer expressamente que o direito opera como arte; mas isso é possível de se ver por conta de sua inspiração em Kant, cuja obra aponta a conexão íntima da estética com esse funcionamento da razão. Os juristas romanos já tinham ciência disso, definindo o direito como arte: “ius est ars boni et aequi”.
Dessa forma, a inteligência artificial e qualquer outra tecnologia não têm como substituir a atividade humana, mas tão somente auxiliar os juristas em sua atividade. A técnica pode ter papel importante na criação e na reprodução da obra de arte, porém não elimina seu processo de criação. A própria atuação do juiz no caso concreto exige uma criação personalizada. Mesmo o conflito entre reprodutibilidade e autenticidade que Walter Benjamin enxerga na história da arte não consegue existir plenamente no direito por conta da necessidade de uma interpretação autêntica – oficial – do juiz para individuar as regras gerais ao caso determinado.
A coincidência entre o termo jurídico utilizado para denominar a interpretação oficial e a expressão usada por Walter Benjamin para a arte não reprodutível é reveladora da íntima conexão entre direito e arte, mais especificamente a arte com valor de culto. Não deixa de ser curioso também o fato de que o direito tem raízes em cultos religiosos e ainda funciona de maneira ritualística (Olivecrona, 1968), tal como as artes não reprodutíveis. A associação entre direito e arte não é, portanto, um produto do acaso, mas sim algo verificável historicamente e com origem no próprio funcionamento da razão.
Se, desde o início das discussões a respeito da arte pelo Iluminismo escocês, a figura do crítico de arte é central para determinar o que é belo (Berry, p. 175-178), quem seria seu análogo no direito? Sendo o crítico de arte aquele que tem contato com as mais variadas obras de arte e, assim, conhece suas histórias e técnicas, é o jurista o crítico do direito, pois dedica sua vida a conhecer a arte do bom e do équo e, consequentemente, tem capacidade de enxergar a Justiça. O auditório perelmaniano, no caso do direito, é composto principalmente por esses críticos (Atienza, p. 45-53).
Em suma, qualquer tentativa de substituir a atividade criativa humana no direito acabaria por contrariar a própria estrutura da nossa razão. Como aparato técnico, a inteligência artificial pode apenas auxiliar os juristas, mas em poucas situações. Os entusiastas do uso dessas tecnologias no direito são os mesmos que vêm tentando declarar a morte do artista. Caso isso pudesse ser possível, estariam decretadas também a morte da justiça e do belo. É sintomático que os únicos a terem esse entusiasmo desmedido em relação à arte são aqueles que a desconhecem e que, em geral, desconhecem a própria humanidade. Apenas um transumanista poderia aderir a esse credo de forma sincera, mas ainda permaneceria a contradição, pois esse niilista radical estaria defendendo sua própria negação enquanto continua a afirmar-se durante sua vida.
*Antonio Barsch Gimenez é mestrando em filosofia e teoria geral do direito na USP.
Referências
Atienza, Manuel. Argumentação Legislativa. Tradução de Diógenes Moura Breda. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.
Atienza, Manuel. Las Razones del Derecho: Teorías de la argumentación jurídica. 2. ed. Universidad Nacional Autónoma de México, 2005.
Benjamin, Walter. The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility. In: Benjamin, Walter. The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility and Other Writings on Media. Tradução de Edmund Jephcott et al. Harvard University Press, 2008, p. 19-55.
Berry, Christopher J. Social Theory of the Scottish Enlightenment. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1997.
Brasil. CNJ. Tribunais de todo o país já podem utilizar primeira IA generativa integrada à PDPJ-Br. 20 de maio de 2025. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/tribunais-de-todo-o-pais-ja-podem-utilizar-primeira-ia-generativa-integrada-a-pdpj-br/>.
Cicco, Beatriz. STJ nega suspensão de site Resolve Juizado, que vende petições feitas por IA a R$ 19,90. Jota, 16 de set. de 2025. Disponível em: <https://www.jota.info/justica/stj-nega-suspensao-de-site-resolve-juizado-que-vende-peticoes-feitas-por-ia-a-r-1990>.
Kant, Immanuel. Critique of the Power of Judgment. Tradução de Paul Guyer e Eric Matthews. Cambridge University Press, 2000.
Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Kelley, Donald R. Civil science in the Renaissance: the problem of interpretation. In: Pagden, Anthony (ed.). The Language of Political Theory in Early-Modern Europe. Cambridge University Press, 1987, p. 57-78.
Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. Volume 1, Tomo 2. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Editora Nova Cultura Ltda., 1986.
Olivecrona, Karl.Lenguaje Jurídico y Realidad. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina S. A., 1968.
Reale, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
Solon, Ari Marcelo; Winther, Alan Bragança. Por que a inteligência artificial não faz justiça? – 2. A Terra é Redonda, 29 de nov. de 2025. Disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/por-que-a-inteligencia-artificial-nao-faz-justica-2/>.
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