O Brasil privatizado

Imagem: Carlos Cruz-Diez
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Comentário sobre o livro de Aloysio Biondi

Este livrinho constitui um fenômeno editorial, e dá o que pensar. Segundo a editora, Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores, já vendeu 110 mil exemplares, o que o torna campeão na difícil categoria que é o ensaio. Lançado em abril de 1999, já estava em 5ª reimpressão no mês de agosto.

No entanto, não figura em nenhuma lista dos mais vendidos no país. As explicações são variadas. Uma das listas se baseia exclusivamente nas vendas das livrarias, não incluindo mala direta ou reembolso. Outra consulta por telefone leitores selecionados por sorteio ao acaso. E assim por diante. A metodologia é sempre impecável, entretanto o resultado, como se vê, é discutível, podendo até esconder um campeão.

A editora mal completa dois anos. Forma, portanto, entre as várias pequenas editoras que surgiram na década, o que, a par da proliferação de revistas culturais, constitui novidade que deve ser saudada. O êxito deste volume levou a Fundação a anunciar toda uma coleção de temas candentes.

No presente caso, todavia, o estouro na parada de sucessos deve ter algo a ver, para lá do preço e do tamanho, com o assunto do livro, assim formulado: “Compre você também uma empresa pública, um banco, uma ferrovia, uma rodovia, um porto etc. O governo vende baratíssimo. Ou pode até doar”.

A curiosidade do leitor é espicaçada pelo subtítulo “Um balanço do desmonte do Estado” e pelo prestígio do autor, provado em outras lutas do jornalismo econômico investigativo. O texto, vivaz e direto, alheio ao jargão cifrado do economês, põe-se ao alcance de qualquer leigo, como quem subscreve estas linhas.

O movimento geral das privatizações pôs em prática as ordens do FMI e do Banco Mundial, que comandam o processo e fornecem a receita. O livro começa pela análise da lavagem cerebral da opinião pública, que uma mídia amestrada orquestra a partir dos comunicados oficiais, prometendo eficiência e tarifas mais baixas. Enquanto isso, os contratos garantiam ao comprador o direito de aumentos anuais, com base na inflação. Isso, quando as tarifas já tinham sido vertiginosamente aumentadas – reajustes de até 500% nas contas de telefone a partir do fim de 1995, por exemplo, e de 150% nas de energia elétrica – para tornar a empresa mais atraente para o comprador. Prejudicados foram os pobres, para quem as baixas tarifas funcionavam como uma incipiente redistribuição de renda. E quanto à eficiência, nem é bom falar.

A essas medidas somou-se o acúmulo de demissões, dando ao comprador uma folha de pagamentos aliviada. Para vender a Fepasa, sua ferrovia, o estado de São Paulo despediu 10 mil funcionários e ficou com o ônus de sustentar 50 mil aposentados. Entregar a empresa, mas responsabilizar-se pela dívida foi outro recurso generalizado. O mesmo estado vendeu a siderúrgica Cosipa por 300 milhões de reais e absorveu as dívidas de 1,5 bilhão de reais.

Ainda outra constante é saldar em “moeda podre”, como se sabe. Ou seja, o comprador, em vez de entrar com dinheiro, paga com título antigos do governo, adquirindo-os por até 50% do seu valor. Dessa maneira, a Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda foi vendida por 1,05 bilhão de reais, dos quais 1,01 em “moeda podre”, quase nada em dinheiro, portanto.

No caso de uma empresa riquíssima e que dava altos lucros, como a Vale do Rio Doce, o comprador ainda ficou com o direito sobre o dinheiro em caixa – porque havia, e muito, nessas empresas que, segundo o vendedor, eram insolventes e só davam prejuízo – num total de 700 milhões de reais. E não foi só a Vale do Rio Doce, também a Telesp, ao ser vendida, tinha 1 bilhão em caixa, que foi para o bolso da Telefonica espanhola. Vendida por 2,2 bilhões de reais, o truque reduziu o preço a quase metade.

Visando a desfazer-se das empresas, o governo dedicou-se a modernizá-las, investindo 4,7 bilhões de reais na Açominas e 1,9 bilhão em Volta Redonda, entre outras. A campeoníssima foi a Telebrás, que recebeu em dois anos e meio 21 bilhões de reais de dinheiro público – contemporâneos aos cortes nos gastos com saúde, educação, verbas para o Nordeste, etc.

Consequência: agravamento da recessão e rombo nas contas, com o comprador importando o que precisa e exportando lucros. Fábricas fecham, o desemprego acelera, as matérias-primas locais se desperdiçam. O livro traz, para completar, minuciosas tabelas que examinam caso por caso, dando o preço em dólares e a maneira como a transação (não) foi paga.

Afinal, quanto os cidadãos abriram os olhos, tinham perdido um vasto patrimônio e os serviços que dele advinham. Mas em compensação ganharam um bom aumento da dívida, que são obrigados a pagar.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Senac\Ouro sobre Azul).

Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, em 3.10.1999.

 

Referência


Aloysio Biondi. O Brasil privatizado – um balanço do desmonte do Estado. São Paulo Fundação Perseu Abramo, 1999, 48 págs.

O pdf pode ser baixado gratuitamente em https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/brasil-privatizado-o-um-balanco-do-desmonte-do-estado/

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Francisco Pereira de Farias Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleonora Albano Chico Whitaker João Carlos Loebens Samuel Kilsztajn José Geraldo Couto Francisco de Oliveira Barros Júnior José Dirceu Mariarosaria Fabris Rodrigo de Faria Valerio Arcary Luis Felipe Miguel Marjorie C. Marona Rafael R. Ioris Renato Dagnino Manchetômetro Daniel Brazil Eugênio Bucci Jean Pierre Chauvin José Costa Júnior Yuri Martins-Fontes Heraldo Campos Matheus Silveira de Souza Paulo Martins João Lanari Bo Fernando Nogueira da Costa Valerio Arcary João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Módolo João Feres Júnior Ronald León Núñez Paulo Capel Narvai Celso Frederico Annateresa Fabris José Micaelson Lacerda Morais Eleutério F. S. Prado Michael Roberts Bruno Machado Eduardo Borges Fábio Konder Comparato João Carlos Salles Boaventura de Sousa Santos Gilberto Maringoni Érico Andrade André Márcio Neves Soares Salem Nasser Osvaldo Coggiola João Adolfo Hansen Ricardo Musse Tadeu Valadares Andrew Korybko Ricardo Fabbrini Luiz Carlos Bresser-Pereira Kátia Gerab Baggio Luiz Werneck Vianna Ari Marcelo Solon Carlos Tautz Flávio R. Kothe Leonardo Boff Lorenzo Vitral José Luís Fiori Anselm Jappe Marcos Silva Luís Fernando Vitagliano Lucas Fiaschetti Estevez Gilberto Lopes José Machado Moita Neto Ladislau Dowbor Slavoj Žižek Gerson Almeida Antônio Sales Rios Neto Leda Maria Paulani Sandra Bitencourt Henry Burnett Marcus Ianoni Celso Favaretto Priscila Figueiredo Vladimir Safatle Paulo Sérgio Pinheiro Airton Paschoa Milton Pinheiro Luiz Marques Jorge Branco Marcelo Guimarães Lima Mário Maestri Luciano Nascimento Ricardo Antunes Vinício Carrilho Martinez Tarso Genro João Paulo Ayub Fonseca Manuel Domingos Neto Berenice Bento Sergio Amadeu da Silveira Dennis Oliveira Vanderlei Tenório Jean Marc Von Der Weid Marcos Aurélio da Silva Maria Rita Kehl Chico Alencar Leonardo Avritzer Luiz Roberto Alves Andrés del Río Thomas Piketty Dênis de Moraes Paulo Fernandes Silveira Henri Acselrad Carla Teixeira André Singer Alysson Leandro Mascaro Claudio Katz Otaviano Helene Luiz Eduardo Soares Daniel Costa Ronaldo Tadeu de Souza Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Alexandre de Freitas Barbosa Daniel Afonso da Silva Lincoln Secco Eliziário Andrade Afrânio Catani Jorge Luiz Souto Maior Luiz Bernardo Pericás Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonio Martins Leonardo Sacramento Benicio Viero Schmidt Marilena Chauí Francisco Fernandes Ladeira Marilia Pacheco Fiorillo Flávio Aguiar Igor Felippe Santos Bento Prado Jr. Eugênio Trivinho Remy José Fontana Ricardo Abramovay Rubens Pinto Lyra Walnice Nogueira Galvão Michel Goulart da Silva Elias Jabbour Tales Ab'Sáber Atilio A. Boron Armando Boito Gabriel Cohn Luiz Renato Martins Ronald Rocha Bernardo Ricupero Alexandre Aragão de Albuquerque Antonino Infranca Michael Löwy Liszt Vieira Julian Rodrigues Plínio de Arruda Sampaio Jr. Everaldo de Oliveira Andrade Caio Bugiato José Raimundo Trindade Denilson Cordeiro Juarez Guimarães Paulo Nogueira Batista Jr

NOVAS PUBLICAÇÕES