A epifania lacaniana do capital

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Por Eleutério F. S. Prado*

O que se encontra em Lacan, ao fim e ao cabo, é uma epifania do capital. A manifestação da socialidade na esfera da circulação de mercadorias aparece como determinação antropológica

Introdução**

Como se sabe, no Seminário XVI, De um Outro ao outro,[i] Jacques Lacan faz uma conexão estrutural entre a categoria de mais-valor de Karl Marx com a sua noção de mais-de-gozar. A primeira, como se sabe, pertence à crítica do modo de produção capitalista e da economia política que o adula, teoricamente é claro; a segunda, é possível verificar, aparece na compreensão do destino do desejo que ele próprio desenvolve em sua teoria psicanalítica. Note-se, entretanto, desde já, que o francês lê o autor alemão sob o visor de sua própria compreensão da linguagem – não naquela que se pode apreender em Marx, como ainda se verá.

Para começar, veja-se como introduz a questão: “É de um nível homológico calcado em Marx que partirei para introduzir hoje o lugar em que temos de situar a função essencial do objeto “a””. Ora, que objeto especial é esse que merece o nome de “a”, inicial de “autre” em francês? Trata-se, segundo ele, da causa última do desejo; trata-se, julga-se aqui, apenas de algo postulado da metapsicologia do próprio Lacan.  Pois, assim nomeado, parece concreto; mas se trata apenas de um abstrato nominal – pelo menos numa primeira visada.  De qualquer modo, o desejo, assim pensado, não é desejo por isto ou aquilo, mas se orienta por uma falta “oceânica”.

Ora, o que uma carência insuperável, instalada na psique do indivíduo social, acolhe implicitamente? Numa sociedade em que o desejo se dirige sobretudo ao dinheiro na sua forma fictícia[ii], em que o capital frutifica cada vez mais como capital fictício, pensar o desejo humano como se fosse movido dessa forma não seria cair em ideologia – ou seja, ficar numa aparência socialmente necessária? Bem, antes que uma resposta possa ser dada, a base dessa suposta homologia precisa ser mais bem examinada.

Eis que o mais-de-gozar origina-se, segundo ele, na busca incessante desse objeto “autre” que, longe de ser algo concreto, está na psique apenas para representar uma certa infinitude do desejo humano. Por isso mesmo, afirma que parece um objeto perdido mesmo se nunca existiu e que – isso é crucial – não vai ser alcançado por aqueles cujo destino é procurá-lo em vão. Em consequência, no que tange aos objetos concretos, o desejo humano se mostra nessa visada não apenas sempre renovável – o que seria bem razoável –, mas avaro, insaturável e insaciável.

A psicanálise lacaniana pensa o objeto “a” como uma determinação antropológica, fazendo abstração, ab initio, da condição existencial do ser humano no capitalismo. Concentra-se nos indivíduos sociais como se fossem seres transistóricos que sofrem psiquicamente dos males do mundo, tomando-os ao mesmo tempo, de modo contraditório, como sujeitos e como alienados.  

Ora, o indivíduo da sociedade moderna sente uma angústia interminável porque neste mundo que habita não há quase solidariedade – e ela falta porque a lógica da competição predomina e se infiltra em todos os poros da sociedade. A própria família, que deveria ser um abrigo fora da esfera concorrencial, dilacera-se, sucumbe cada vez mais às férreas exigências desse mundo. As necessidades submetidas às determinações dessa sociabilidade, provenham elas do “estômago ou da fantasia”, açuladas que são agora pela propaganda e pela mercadologia, são recriadas compulsivamente.

Nessa situação história, a psicanálise lacaniana argumenta que os humanos estão aprisionados na estrutura simbólica formada pela linguagem. Assim, ao invés de pensar que os desejos estão ancorados nas necessidades, julga que provêm de uma demanda infinita; eis que foram capturados por um objeto mítico que mora no inconsciente linguístico de cada um e de todos. Nessa perspectiva, como diz uma psicanalista, a “angústia desvela um vazio do objeto “a” causador do desejo”. Ora, esse objeto nominado é claramente uma hipóstase do gênero “objeto”, ao qual Lacan deu um nome enigmático para que parecesse um objeto mítico, uma determinidade supostamente inerente à condição humana como tal.

Por que, no entanto, esse objeto hipostático parece fazer sentido? Eis aqui uma pergunta crucial e que apenas pode ser respondida ao final, após uma rodada de argumentos. De qualquer modo, como esse objeto está posto como um ponto de fuga, ele não pode ser alcançado. E daí?

“Daí” – diz um artigo da psicanalista já citada – “a infinidade de objetos empíricos que se prestam a substituir esse lugar vazio, em uma busca vã e inesgotável, na saga pessoal de cada sujeito desejante”. [iii] Nessa perspectiva, o desejo não parece mais estar atado às necessidades, não parece desparecer e se renovar paulatinamente com a satisfação sequencial dessas necessidades. Incitado supostamente a partir de um ponto fugidio inerente à ordem simbólica, aparece então nessa psicanálise como uma má infinitude inscrita já sempre na “alma” humana. É dessa perspectiva que Lacan lê Freud, “corrigindo” evidentemente as suas “quedas” num materialismo que, no seu ver, rebaixa o simbólico.  

Da suposta homologia

Há, pois, segundo Lacan, uma homologia entre o mais-valor de Marx e o seu mais-de-gozar. Assim como o capitalista supostamente renuncia ao consumo para, por meio do investimento, obter mais-valor na forma do lucro, ele renuncia também ao gozo imediato para obter, depois, um mais-de-gozar. Há, segundo ele, “um discurso que articula essa renúncia e que faz evidenciar-se por meio dela o que chamo de função de mais-de-gozar”. Nessa toada, continua: “o mais-de-gozar é uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. E isso mostra o lugar do objeto “a””.

Mas, afinal, como compreende ele a categoria de mais-valor de Marx? Ela se origina, como se sabe, da diferença a maior entre o valor produzido pelo trabalho e o valor da força de trabalho. É assim que surge em O capital. Ora, Lacan apreende o mais-valor na circulação de mercadorias[iv] como efeito de uma incongruência aparente. Veja-se, de início, como ele próprio articula isso se referindo ao mercado – e não à produção de mercadorias como seria correto:

Marx parte da função do mercado. Sua novidade é o lugar em que ele situa o trabalho nesse mercado. Não se trata de o trabalho ser novo, mas de ele ser comprado, de haver um mercado de trabalho. É isso que permite a Marx demonstrar o que há de inaugural em seu discurso, e que ele chama de mais-valor.[v]

Vejam-se as consequências de tentar apreender o mais-valor na esfera circulação, onde – é evidente – ele não aparece como tal. Aí, na aparência, vê-se apenas o lucro, um velho mistério da produção capitalista. Esse excedente em relação ao custo de produção, como se sabe, foi objeto de muitas explicações mistificadoras, a mais conhecida delas diz que provém do – ou está associado ao – produto marginal do capital. Lacan não é exceção à regra.

Ademais, o mestre francês fala de um modo vulgar costumeiro que há um mercado de trabalho em que o trabalho é comprado, quando, de fato, há um mercado de aluguel da força de trabalho. Aí, esta última é adquirida por um determinado tempo, seja ele um dia, uma semana, um mês etc., durante o qual o trabalhador fornece trabalho para quem o comprou/alugou, ou seja, o capitalista dono dos meios de produção, assim como do dinheiro livre para investimento na atividade produtiva em geral. Marx – note-se bem – não inventa noções para explicar conjunções aparentes entre fenômenos, mas, ao contrário, procura apresentar o concreto como concreto pensado e, assim, esclarecido.  

Mas como é possível apreender o mais-valor na circulação de mercadorias? Como Lacan deixa essa questão na obscuridade como é de seu estilo críptico, é preciso recorrer a um intérprete qualificado para esclarecer esse ponto, pesponto que ao fim e ao cabo se mostrará como um grande equívoco. Para Samo Tomšič, Lacan apresenta a origem do mais-valor nos termos das representações que encontra no texto do próprio Marx. Ora, isso lhe é conveniente porque o mais-valor “surge” assim do exame dos significantes – e não pelo exame cuidadoso do objeto social mercadoria em seus desenvolvimentos concretos.

Na exposição de Marx, a mercadoria aparece, inicialmente, como valor de uso e valor de troca, mas que se revela como de unidade contraditória de valor de uso e valor, valor este que se manifesta na superfície do mercado como valor de troca. O valor é forma do trabalho abstrato, redução socialmente posta do trabalho concreto que contém sempre um gasto de força humana, algo que acontece apenas no capitalismo. Este ganha universalidade apenas na forma dinheiro – uma forma social realmente existente. O dinheiro que parece criar dinheiro, ou seja, que figura como capital, é finalmente compreendido como expressão do valor que se valoriza, criação expropriada do trabalhador assalariado na esfera da produção de mercadorias.

Antes de examinar a própria explicação de Lacan, é preciso dizer algo sobre um termo crucial que emprega. Sabe-se que a significação, na linguística estruturalista que vem de Saussure, forma-se pela união do significante material e do significado conceitual constituindo o signo. Ora, o signo é assim visto como forma elementar da consciência pensante, mesmo se o sistema de signos seja já uma fonte de inconsciência social nessa teorização. Eis que a estrutura relacional que o constitui como tal tem o poder de determinar as consciências individuais. Indo mais longe, Lacan afasta ainda mais o signo do referente, rompe a unidade do signo, dando privilégio e proeminência ao significante. Ao fazê-lo, o significado sob o significante se torna oculto, flutuante e enigmático, emergindo apenas, de modo parcial e mesmo elusivo, por meio de cadeias de significantes. Assim, ele funda a psique humana no inconsciente – e não numa luta da consciência para superar a inconsciência e a alienação.

Posta essa nota de esclarecimento, veja-se o que diz Tomšič num artigo escrito como o propósito de explicar a suposta homologia entre o mais-valor e o mais-de-gozar, tal como é reivindicada pelo mestre psicanalista. O primeiro vai aparecer – veja-se bem – como “uma diferença na representação”:

[Lacan] apreende [uma] discrepância […] que revela o modo de produção capitalista como uma não-relação entre duas circulações diferentes. Como se sabe, a circulação M—D—M formaliza a troca, venda e compra [de mercadorias quaisquer, mas também de força de trabalho], pondo uma equivalência […]; a circulação D—M—D (que Marx também escreve como D—M—D’, onde D’ = D + ΔD), por outro lado, não põe mais uma equivalência, mas uma não-equivalência ou uma diferença dentro da equivalência aparente. Lacan fala assim de uma lacuna que se encontra nessa representação; ora, vem a ser dentro dessa lacuna que o mais-valor é produzido. Marx considerou o proletário como um sintoma social precisamente porque ele é um sinal da lacuna entre as duas circulações, um sinal de que não existe relação social.[vi]

Eis aí, a mágica foi feita: o mais-valor apareceu na circulação – e não na produção de mercadoria como consta em O capital – crítica da economia política. Se Marx apresenta o valor e, assim, o mais-valor, como efeito da posição do trabalho no capitalismo, algo que está implícito na linguagem das mercadorias, Lacan parte dessa linguagem tal como se apresenta justamente na aparência do sistema, ou seja, na esfera da circulação mercantil. E o faz porque, como ele disse no seu Discurso de Roma (1956), “no princípio está o verbo” [vii] – e não a ação ou o trabalho social.[viii]

A questão da linguagem

Para Lacan, a linguagem natural está aí, mas ela resulta da interação das psiques individuais. Ele pensa esse meio em que as significações se formam do mesmo modo como Adam Smith pensa a formação da linguagem das mercadorias. Ao invés de preços, tem-se os significantes. Assim, para ele, o sistema linguístico é formado por meio de um processo social em que os atos aparentemente intencionais de fala dos indivíduos produzem um resultado não intencional. A linguagem, assim formada, ganha uma estrutura própria, transforma-se numa reificação completa e, desse modo, obtém uma autonomia própria, assim como capacidade de determinação das psiques individuais. É com base nessa analogia implícita que ele vai dizer que os indivíduos se alienam na linguagem, que se iludem tolamente na casa de tortura da linguagem – uma linguagem que não brota supostamente da necessidade social e que carece de historicidade imediata.

Para Marx, diferentemente, a significação é um resultado da atividade social prática, não apenas da atividade da mente, mas também do corpo humano como tal; assim a linguagem é produto inerente da práxis que a conforma como tal. Assim, por exigência dessa práxis, a linguagem põe já para os humanos tanto uma exigência de adesão como uma requisição crítica. Ela vem a ser, pois, entendimento e razão dialética e, por isso, não pode ser tomada como uma fonte inevitável de alienação. Lacan, em última análise, está no campo do idealismo no plano filosófico e do conservadorismo na esfera da política. O seu mérito consiste, talvez, em fornecer um saber compreensivo, mas também instrumental, para os psicanalistas. No plano filosófico, deu base para um criticismo que mofou e continua mofando da transformação da sociedade.  

Na leitura de Karel Kosik, para compreender o conceito marxiano de práxis humano-social não se pode separar – nem priorizar uma frente a outra – a linguagem, enquanto ação simbólica, da ação, enquanto mero operar material, porque elas coexistem e se sustentam no processo de transformação do mundo. A práxis, portanto, é a unidade da prática material e da elaboração linguística e, portanto, do trabalho nu e da roupa histórica da linguagem. Esta última, para Marx, como se sabe, é a consciência (mas também a inconsciência) prática que permeia as relações sociais em geral. Nessa perspectiva, “a práxis” – diz Kosik – “em sua essência e universalidade é a revelação do homem como ser ontocriativo”.[ix]

Posto esse esclarecimento, subsiste ainda um mistério: o termo não-relação (non rapport, em francês) empregado por Tomšič não aparece em Marx, pois não pertence ao seu vocabulário; ademais, ele seria mais bem traduzido, talvez, pelo termo “disjunção”. Como se sabe, para esse autor clássico, relação social é o vínculo interno, imanente, que constitui toda forma de sociabilidade, em particular, por exemplo, a existente entre o capital personificado e o trabalhador assalariado. Nesse contexto, o uso do termo não-relação se tornaria um absurdo.

Ora, o significado de relação social encontrado em Marx não coincide com o significado do mesmo termo no jargão estruturalista de Lacan já que aí ele se refere a certos padrões constantes de interação social, mediadas pela linguagem, que se impõe aos “sujeitos” sociais. Ao dizer que “não há relação social” no capitalismo, Tomšič dá expressão a uma disjunção porque, para o mestre francês, capitalista e trabalhador não formam uma unidade (como não se reportam um ao outro, eles estão postos – admite – numa não-relação) – não formam, melhor dizendo, uma unidade de contrários como se diria por meio da compreensão dialética do mundo concreto. Em consequência, em sua perspectiva, não pode existir transformação revolucionária: pode até mesmo parecer ao contrário, mas aquele que a propõe se agitam porque querem apenas um outro mestre, um outro senhor – ele disse numa ocasião, mostrando que gostaria que esse mestre fosse ele mesmo e não um possível líder revolucionário. 

Nessa perspectiva, ademais, também porque as duas cadeias de significantes (M – D – M e D – M – D´´), mencionadas como se fossem apenas “isso”, ou seja, duas cadeias cada uma com três significantes, não formam uma unidade coerente, mas, ao contrário, não se reportam uma da outra, tem-se também, nessa perspectiva, uma disjunção. O coelho saiu da cartola do Sr. Lacan, como se ninguém – ou seja, a exposição dialética feita por Marx da lógica da exploração que subsiste no modo de produção capitalista – tivesse posto lá esse animal doméstico.

Ao ser apresentado por Lacan dessa maneira estruturalista, o mais-valor aparece como efeito do discurso, como algo que decorre da linguagem própria das mercadorias e que fora formalizado por Marx – não como provindo da redução do trabalho concreto ao trabalho abstrato – redução que constitui uma abstração real –, por meio do processo capitalista de produção e circulação de mercadorias. Ora, assim fica posta a possibilidade de enunciar a homologia tal como foi feito pelo psicanalista francês, pois o mais-de-gozar lacaniano é também um efeito do discurso capitalista, o qual, segundo esse autor, nada mais expressa do que a lógica da insaciabilidade do desejo humano em sua busca incessante do objeto “a”.

Sobre o homo alienatis

Como o discurso não se processa por si mesmo, ele precisa do suporte da ação humana. Ora, no interior dessa concepção de mundo, Lacan vai pensar esse suporte na forma do homo alienatis.[x] Este aparece como contrapartida do sistema estruturado de significantes, denominado de Outro por Lacan, ou seja, como um sujeito negado como tal, mas que ainda é chamado de sujeito. Trata-se, pois, de um “sujeito” já que ele se constitui por meio de uma alienação insuperável.

Nas palavras de um psicanalista brasileiro, “para Lacan, a alienação consiste nessa condenação do sujeito que aparece, de um lado, como (…) um organizado de sentido (…) posto pelo Outro; de outro, como afânise, isto é, como medo de perda daquele desejo [que, como se viu, é insaciável].”.[xi] Portanto, para o psicanalista francês, a alienação é fundante; é uma condição irrevogável do “sujeito”[xii], a qual lhe é imposta por meio da entrada necessária na linguagem; esse “sujeito” sofre, pois, uma suposta “perda” quando participa desse sistema estruturado e estruturador; como suporte que é, não lhe resta então mais do que se esforçar perenemente – num andar sempre cego, possivelmente – para tentar dar sentido em tudo o que lhe diz respeito. Ao fazê-lo, procura o objeto “a”, empenha-se em obter o mais-de gozar.

De modo, deveria ficar claro que Lacan concebe o “sujeito” social como alguém que se conforma plenamente à lógica do capital que prospera efetivamente no desenvolvimento suicidário do modo de produção capitalista. Eis que foi capaz de construir uma antropologia por meio uma fundação primeira: para ele, existe e persiste na psique humana um processo insaciável de acumulação de “mais-de-gozar”. E essa lógica foi por ele exposta não diretamente tratando francamente da relação social entre o capitalista e o trabalhador assalariado, mas, num plano mais abstrato, da relação social entre o senhor e o escravo, retomando assim, ao seu modo, o conteúdo de um capítulo famoso da Fenomenologia do Espírito de Hegel.

Para entender a questão é preciso lembrar que, diferentemente de outros animais, o ser humano sabe de seu desamparo e vive sob a perspectiva da morte; tem necessidades, sabe que tem de lutar, tem consciência de que o resultado da luta é, ao fim e ao cabo, a sua própria derrota. Como é, ademais, um ser intrinsecamente social, ele terá de lutar pela própria existência em sociedade. Em consequência, a luta cotidiana que trava e tem de travar se torna dramática já que não quer apenas viver, mas tem de viver e se realizar, projetando-se no futuro a seu modo e de acordo com a sua vontade. As suas necessidades advêm não apenas do estômago, mas também do pertencimento, envoltas sempre pelas fantasias.

Hegel, nesse momento de sua exposição dialética na Fenomenologia do Espírito, trata de uma contradição que subsiste na sociedade pré-moderna e moderna: o ser humano, como momento de desenvolvimento do Espírito, por meio do trabalho e da linguagem, trava e tem de travar não uma, mas duas lutas simultâneas: pela sobrevivência e pelo reconhecimento: indivíduo natural e ser societário estão em contradição. Estar vivo e fazer parte da sociedade são condições iniciais para que o desamparo possa ser contrariado. Na alegoria hegeliana é apresentada a imbricação e a mútua dependência de duas oposições cruciais, a da “vida versus morte” e a da “liberdade versus escravidão”.  E elas são contraditórias: a opção simples pela vida em condições de carência implica na perda da liberdade; a opção pela morte heroica possível se mostra como condição para que ele torne um sujeito reconhecido como tal, alguém que afeta o seu próprio destino.

Na cena original, há um confronto entre duas consciências de si, uma delas, aquela que opta pela vida, vai ser o escravo e a outra, aquela que opta pela morte se preciso for, vai se tornar o senhor. Nessa luta sobrevivem ambas porque a primeira opta por assumir a condição de cativo. Ou seja, aquela que vai dar origem ao escravo, para garantir a própria existência, “escolhe” a perda da liberdade. Aquela que vai se tornar o senhor, entretanto, também acaba não conquistando a liberdade porque passa a depender da escravidão para sobreviver. Tem-se, portanto, como resultado uma dupla frustração da condição existencial do sujeito: eis que a luta sob a condição de escassez implica na perda da liberdade para ambos os atores sociais – ou seja, permanecem na condição de assujeitados, ou seja, de meros “sujeitos”.

Nesse contexto puramente hegeliano, a dominação e a “exploração do homem pelo homem” se mostram como um beco sem saída. Entretanto, subsiste uma esperança, pois, o escravo trabalha, não apenas labora, mas sofre existencialmente. Como ele não trabalha sozinho, mas coletivamente, junto com os outros, ele pode transformar a sua sujeição em luta. Em conjunto, então, aqueles que trabalham e sofrem podem travar uma luta pelo reconhecimento, isto é, pela realização da igualdade, da liberdade e da emancipação. Só coletivamente, de modo solidário, pode o ser humano cuidar bem de seu desamparo tornando-se sujeito possível.

Ora, já na formulação original, estão presentes indivíduos, apenas indivíduos como tais, ainda que como indivíduos sociais. Daí o impasse. Na trama aí apresentada, Lacan introduz a lógica do desenvolvimento infinito que nela não consta e que Marx apresentara como inerente ao movimento do “sujeito automático”[xiii] capital. E ele o faz tirando da sua própria cachola o objeto a. Ao fazê-lo, transforma sutilmente a alegoria de Hegel.

Eis que toma o próprio humano não como um ser governado pela necessidade, mas como um “sujeito” carente, inerentemente ilimitado e compulsivo. Em sua leitura, aquele que se torna escravo não abdica do gozo, mas tem de lutar pelo mais-de-gozar em condições desvantajosas. Para tanto, ele passa a trabalhar para o outro no presente e no futuro. O segundo, ainda na leitura de Lacan, renuncia ao gozo, mas, havendo conquistado a posição de senhor, poderá obter mais-de-gozar em condições bem mais propícias, mesmo se se frustra continuamente.

O que deve ficar claro, portanto, é que em nenhum dos dois casos a alienação pode ser superada. Pois, a lógica do desenvolvimento infinito que mora agora na psique de ambos, escravo e senhor, ou melhor, capitalista e trabalhador, permanece atuante. Notando que onde está escrito simplesmente sujeito deve-se ler “sujeito”, veja-se o que diz Tomšič: “Lacan, consequentemente, parece reclamar que não se trata apenas de uma homologia entre dois excedentes, mas também do próprio sujeito: o sujeito do capitalismo é o mesmo que o sujeito do significante”, [xiv] ou seja, da linguagem entendida como trama sistêmica de significantes. Sim, parece, sim, que é assim, mas apenas porque esse “sujeito” é o homo alienatis construído pela metapsicologia do próprio Lacan.  

A falta oceânica

Chegou, portanto, o momento de mostrar o que uma falta “oceânica” justifica: aquilo que vem negá-la sem negá-la jamais – mas que, ao contrário, opera para sustentá-la e repô-la. O próprio Lacan apresentou esse processo-sujeito que vigora no sistema econômico do capital por meio do que chamou de discurso capitalista. O capital nesse discurso vai aparecer como dinheiro-capital, ou seja, de um modo fetichizado, porque ele é apreendido apenas do modo como figura na circulação de mercadorias, em especial, no capitalismo contemporâneo. E o objeto “a”, em consequência, figura aí como transfiguração da lógica intrínseca do capital que se realiza por meio do consumo de uma sequência infinita de mercadorias. E isso é possível porque Lacan reificou previamente o que contraria o desamparo, condição que a sociabilidade individualista do capital alimenta – ou seja, satisfaz e recria em nível mais elevado – continuamente.     

O discurso capitalista[xv], cujo esquema se encontra abaixo, apresenta-se como um circuito fechado em que está inscrita uma lógica de desenvolvimento infinito: o consumidor impulsiona o dinheiro-capital ao investimento; este impulsiona a função de produção que, na forma de uma fábrica, produz coisas novas; esta permite que surjam no mercado sempre novos bens e serviços (gadgets), os quais são comprados sem cessar pelo consumidor. Assim, esse último obtém satisfação/insatisfação perenemente. Nesse discurso capitalista, o trabalhador e o trabalho estão formalmente ausentes – na verdade, o trabalho está implícito na função de produção como mais um fator de produção.    

A dinâmica aí presente, entretanto, não vem a ser a do próprio capital, o qual se acumula indefinidamente porque se nutre de lucro, sempre de mais e mais lucro – forma aparente, como se sabe, do mais-trabalho e do mais-valor. O motor desse processo infinito de circulação, assim apresentado, não é, pois, a insaciabilidade do sujeito automático, mas uma insaciabilidade manifestada pelo consumidor no mercado para adquirir mercadorias, ou melhor, bens e serviços como assenta a economia vulgar.

A sofreguidão do demandante consumista para adquirir bens e serviços vem do fato que elas parecem atender ex-ante o seu desejo, mas nunca o satisfazem ex-post, já que ele provém de uma falta-a-ter admitidamente “oceânica”. O termo gadget do inglês, usado pelo psicanalista para se referir a bens e serviços que serão consumidos em série, indica que eles, na condição de mercadorias, figuram apenas como representantes fugazes do objeto “a”, aquele objeto bem inventado que, por suposição, torna o desejo insaturável.

O capitalista aparece, então, como um servidor desse desejo que, sendo desejo do consumidor em geral, representa também o seu próprio desejo; Lacan, como foi visto, compreende essa busca como uma demanda infinita de mais-de-gozar. Ele promove – introduzindo aqui um termo marxiano não abonado pelo grande mestre francês – o desenvolvimento das forças produtivas – a ciência e a tecnologia sobretudo, incorporadas em meios de produção, para que uma “imensa coleção de mercadorias” continue sendo produzida para satisfazer tal desejo.

O objeto hipostático “autre” se afigura, assim, como algo plausível. Se jaz supostamente no escuro do inconsciente, veio já à luz em França como uma má infinitude germânica. Pois, uma lógica sequencial trivial – uma lógica que a matemática representara já especulativamente –, havia sido vista criticamente por Hegel como mau infinito. O filosofo americano, Adrian Johnston, concluiu então, pragmaticamente, que essa lógica vista no homem aburguesado já estava presente no homem primitivo; pois, não é verdade que Marx, em sua reflexão sobre a história, concluíra que “a anatomia humana contém uma chave para a anatomia do macaco”?[xvi] Ora, nessa linha de raciocínio, indo da psicanálise ao ser social, concluiu peremptoriamente que a lógica capitalismo elucida o inconsciente, que essa forma histórica tem um fundamento transistórico no homem como homem simplesmente.  

Ora, tudo isso – e especialmente este final – crê-se aqui – justifica o título deste artigo: o que se encontra em Lacan, ao fim e ao cabo, é uma epifania do capital. A manifestação dessa socialidade na esfera da circulação de mercadorias aparece, assim, como determinação antropológica. Por isso, este último se apresenta não como tal, mas transfigurado numa lógica infinita do desejo que habita supostamente, como condição existencial, os próprios indivíduos sociais que lhe dão suporte e que abrigam, por isso, uma angústia interminável. Diante desse quadro desolador, ele apresenta também um consolo de consultório, qual seja ele, o discurso “libertador” do psicanalista: eis que este trata o outro como “sujeito” para que o capital subsista, ainda que não da forma vulgar como na psicologia do ego tal foi desenvolvida nos Estados Unidos.

*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).        

**Este artigo se beneficiou muito dos comentários de Jorge Novoa; eles permitiram uma melhora substantiva no escrito original; entretanto, se ainda sobraram falhas, a responsabilidade fica inteiramente com o autor.  


[i] Lacan, Jacques – De um Outro ao outro, Seminário XVI. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

[ii] Ver Prado, Eleutério F. S. – From gold money to fictitious money. In: Brazilian Journal of Political Economy, janeiro de 2016.

[iii] Viola, Daniela T. D. – A formulação do objeto “a” a partir da teorização lacaniana acerca da angústia. Revista Mal-estar e subjetividade. Vol. IX (3), setembro de 2009.

[iv] Como bem lembrou Jorge Novoa, que comentou esse escrito com entusiasmo, são também muitos os economistas e sociólogos, inclusive Max Weber, que, mesmo depois de Karl Marx ter mostrado o equívoco, insistiram e ainda insistem em analisar o capitalismo tão somente a partir da circulação mercantil.  

[v] Lacan, Jacques – De um Outro… Op. cit.

[vi] Tomšič, Samo – Homology: Marx and Lacan. In: Journal of the Jan van Eyck Circle for Lacanian Ideology Critique, 2012, p. 98-113.

[vii] Eis o que diz aí: “Partimos da ação da palavra na medida em que é ela que estabelece o homem na sua autenticidade, ou melhor, a apreendemos na posição original absoluta segundo a qual “no princípio era o verbo…” do Evangelho IV, a qual “a ação de Fausto não pode contradizer, pois esta ação do verbo é coextensiva a ela e renova a cada dia sua criação. Ver Lacan, Jacques – Discours du Rome– Sur la parole et le langage.

[viii] Segundo Fougeyrollas, um crítico do lacanismo que escreveu na década dos anos 1970, isso significa que, para ele, “a teoria vem antes da prática”, o que, evidentemente, contrária uma tese fundamental do materialismo histórico em sua formulação original. Ver Fougeyrollas, Pierre – L’obscurantisme contemporain – Lacan, Levi-Strauss, Althusser. Paris: Spag-Papyrus, 1980.   

[ix] Kosik, Karel – Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 202.

[x] Prado, Eleutério F. S. – A construção do homo alienatis. Artigo postado no portal A terra é redonda em 03/09/2023.

[xi] Barros, Douglas R. – Aí, como é gostosa essa tal alienação! In: Lacuna – uma revista de psicanálise, 12/12/2021.

[xii] Como diz Jorge Novoa em seu comentário, o sujeito assujeitado real, ou seja, o trabalhador assalariado, não adotou necessariamente a “servidão voluntária” de La Boétie.

[xiii] Em seu comentário, Jorge Novoa lembra que o capital mesmo sendo determinante e, assim, não determinado, também não é um verdadeiro sujeito porque não tem consciência própria. É pura ação que figura se desenrola sob a linguagem das mercadorias.

[xiv] Tomšič, Samo – Homology… Op.cit.

[xv] O discurso do capitalista foi apresentado como uma adição a outros quatro, supostamente mais básicos, no escrito Du discours psychanalytique, o qual foi lido por Jacques Lacan na Universidade de Milão em 12/05/1972. Como se sabe, denominou os primários de discurso do mestre, da universidade, do histérico e da psicanálise.

[xvi] Ver Johnston, Adrian – The plumbing of political economy: Marxism and Psychoanalysis down the toilet. In: Psychoanalysis and the mind-body problem. Ed. Jon Mills. New York: Routledge, 2022. Uma crítica das teses desse autor se encontra no artigo “Marx com Lacan” de Adrian Johnston, que se encontra publicado em https://eleuterioprado.blog/2022/05/29/o-marx-com-lacan-de-adrian-johnston/


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