Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A análise da fragmentação social brasileira revela um país de identidades múltiplas, onde o voto deixa de ser meramente ideológico para se tornar um reflexo de valores religiosos, econômicos e geracionais em constante disputa
1.
Quando se fala em “o brasileiro” (no singular) me parece ser equivocado. Os brasileiros são múltiplos e/ou heterogêneos. A emergência sistêmica das interações entre todos eles é uma configuração transitória, predominante em certas conjunturas, inclusive eleitorais, mas passageira ao longo do tempo.
O livro de Felipe Nunes, “Brasil no Espelho: Um guia para entender o Brasil e os brasileiros” (Globo Livros) tem o propósito de apresentar aos brasileiros seus valores, atitudes e percepções antagônicas sobre si mesmos. Neste ano eleitoral, é relevante a sua leitura para explicar as implicações de seus dados para a manutenção da democracia sem a ameaça do retorno da extrema-direita golpista e seus aliados conservadores ao governo, seja ao Poder Executivo, seja à maioria do Poder Legislativo.
A base deste livro é uma pesquisa feita pela Quaest entre novembro e dezembro de 2023 com 9.994 pessoas com mais de 16 anos, em 340 municípios sorteados entre 26 estados e o Distrito Federal. O leitor espera essa amostra ser representativa dos brasileiros múltiplos, diversos em suas opiniões, crenças e atitudes.
Ela representa as cinco regiões do país, de forma proporcional à população, segundo as cotas de região, estado, sexo, faixa etária, grau de instrução e renda familiar. Para entender os brasileiros, Nunes construiu um mapa de valores, atitudes e percepções com 37 índice divididos em onze dimensões: religiosidade, família, identidade nacional, honestidade, meritocracia, discriminação, sexualidade, insegurança, confiança, comportamento social e ideologia.
De início, pensaríamos a ideologia ser a determinante do voto, mas não é assim tão simples, embora a escolha no segundo turno eleitoral seja binária. Curiosamente, em pesquisa de 2002, quando Lula foi eleito pela primeira vez, 76% dos entrevistados se posicionaram entre esquerda e direita.
Durante as três eleições seguintes, quando os candidatos do Partido dos Trabalhadores foram reeleitos, essa porcentagem caiu para 58% em 2006, 55% em 2010 e 56% em 2014. Mas, depois do golpe semiparlamentarista contra a presidenta Dilma Rousseff reeleita, a escolha ideológica voltou a subir, para 79% em 2018, e saltou para 85% em 2022.
A pesquisa da Quaest mostrou, no fim de 2023, 96% dos brasileiros se posicionaram entre esquerda e direita quando indagados sobre sua ideologia. Em uma escala de posicionamento ideológico, os identificados com o centro foram 37%, com a direita 36% e com a esquerda apenas 23%.
2.
Entretanto, uma pesquisa divulgada pelo Datafolha, no dia 05/04/2023, apontou 30% dos eleitores brasileiros se dizerem petistas, enquanto outros 22% se declararem bolsonaristas. Os “próximos do bolsonarismo” correspondiam a 9% dos eleitores, contra 7% no levantamento no fim de 2022, antes do quebra-quebra na praça dos Três Poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023. Os “neutros” eram 22% do eleitorado, ante 20% na pesquisa do ano eleitoral, e 7% não se posicionaram nessas opções. Já os “próximos do petismo” passaram de 9% para 10% naquela ocasião, ou seja, 40% eram simpatizantes do social-desenvolvimentismo e 31% do neofascismo.
Diferentemente do Censo, com a população total, a pesquisa da Quaest entrevistou uma amostra representativa da população com 16 anos ou mais. Por isso, católicos autodeclarados foram 51% (57% no Censo) e o percentual de evangélicos 31% (27% no Censo). Adeptos de outras religiões atingiram apenas 4% e sem religião 14% (9% no Censo).
A população brasileira vive, desde a década de 1980, quando houve o fim da ditadura militar e a conquista da democracia, um período de pluralização e transição religiosa, no qual deixou de ser quase a totalidade católica. Passou a ser quase um terço de evangélicos e, provavelmente, devido à maior cultura propiciada pela massificação do ensino superior, um expressivo crescimento das pessoas sem religião.
Infelizmente, aquele percentual de 31% identificados como evangélicos coincide com 31% simpatizantes do neofascismo, muitas vezes sem ter consciência política a respeito dessa linha ideológica. Em outra passagem do seu livro, Felipe Nunes ressalta a extrema direita ser pequena, composta por apenas 3% da população. Na medição sobre a satisfação com a democracia, todos os brasileiros da extrema direita concordam com a ideia de uma ditadura pode ser preferível à democracia.
Lula foi eleito, em 2022, por uma coalizão formada por dependentes do Estado (23%), progressistas (11%), militantes de esquerda (7%), e liberais sociais (5%), grupo antes sem votar no PT. O candidato golpista (e preso na PF) teve o apoio dos conservadores cristãos (27%), do agro (13%), dos empresários (6%), dos empreendedores individuais (6%) e da extrema direita (3%).
Como esses grupos somam 55%, tiveram dissidência com votos no Lula. Venceu, segundo Nunes, porque tomou do capitão expulso do Exército brasileiro o pequeno grupo de liberais sociais. Esses eleitores votaram contra o candidato do Partido dos Trabalhadores (Fernando Haddad) quatro anos antes.
Os conservadores cristãos formam o maior grupo com 27% da população. São, em sua maioria, evangélicos, mas também incluem católicos mais conservadores. Com 23% da população, o segundo maior grupo é a classe D e E (dependentes do Estado), composta por beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família.
3.
O agro representa 13% da população e reúne produtores, trabalhadores rurais e pessoas associadas ao estilo de vida sertanejo, inclusive apreciadoras desse gênero musical. Os empresários (6% da população) compõem a elite econômica, composta em sua maioria por pessoas brancas, favoráveis à privatização das estatais e dos serviços públicos, contrários a benefícios pagos aos mais pobres.
Os liberais sociais são 5% e situam-se no centro do espectro político. Defendem a liberdade individual, são favoráveis à redução de impostos e às políticas punitivistas. A aparente contradição é serem neoliberais na economia e, no campo social, eles se aproximarem do social-desenvolvimentismo (a socialdemocracia latino-americana) com atuação estatal via políticas públicas.
O segmento dos empreendedores individuais emergiu recentemente. É formado por trabalhadores sem vínculos empregatício, como prestadores de serviço por aplicativos, considerando-se empreendedores de classe média, mesmo tendo renda baixa, por não terem patrão. São 5% dos brasileiros.
Os progressistas mais destoam do resto da sociedade em relação a normas menos tradicionais de gênero, estereótipos familiares e defesa de minorias. São 11% dos brasileiros simpatizantes de pautas identitárias.
Os militantes de esquerda é o grupo composto por militantes do Partido dos Trabalhadores, vindos de uma tradição sindical. Votam por consciência política, não por obrigação eleitoral. Representam 7% e defendem o governo Lula em todas as instâncias e circunstâncias.
Curiosamente, esses dois últimos agrupamentos somam 18%, embora Felipe Nunes tenha dito, em outro capítulo, a esquerda somar 23% na pesquisa Quaest. Ele não a correlacionou com o seguinte dado: se desconsidera os mais idosos (sem obrigação de votar), 22% dos adultos (25-64 anos) têm diploma superior. Cerca de 20,5% da população brasileira com 25 anos ou mais possui Ensino Superior Completo, segundo dados recentes do IBGE (2024). O Censo 2022 mostrou 18,4% e indicou um crescimento grande desde 2000 (6,8%).
Felipe Nunes destacou mais os conservadores cristãos, em vez de dar maior atenção aos universitários, porque o acesso à educação superior tem aumentado, com quase 10 milhões de estudantes matriculados. Aqueles constituem um grupo majoritariamente constituído por evangélicos, mas inclui também católicos conservadores e frequentadores de igreja, semanalmente. Valorizam a ordem e a obediência aos pastores e padres com discursos políticos no púlpito. Em termos políticos, buscam candidatos com posicionamentos conservadores a favor da família e atuantes em defesa da segurança pública. Pauta econômica já era…
Aliás, este tema é um dos poucos consensuais em quase toda a população brasileira. E o atual governo federal, embora não tenha o controle das polícias militares e tampouco das polícias civis, subordinadas aos governos estaduais, tem feito um bom trabalho com apoio dos ministros do STF e da Polícia Federal (PF), subordinada ao ministro da Justiça, ex-ministro do STF. Está focada no combate a atos antidemocráticos, crimes de lavagem de dinheiro e corrupção com desvio de emendas e verbas parlamentares, principalmente, por deputados e senadores da direita. Toc, toc… é a PF!
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]






















