Por EDUARDO BORGES*
Os dilemas do Estado burguês e da democracia liberal
No mundo contemporâneo, que como querem alguns incautos não é pós-moderno a ponto de nos dá a inquietante sensação de “deixarmos de ser contemporâneos de nós mesmos” [i] como nos ensinou Sergio Paulo Rouanet, no máximo pode ser neomoderno, já que o passado não foi transformado, mas adaptado aos novos tempos. É justamente nesse mundo neomoderno que as esquerdas no Brasil têm vivenciado o dilema profundo de como lidar com a defesa da democracia liberal utilizando os instrumentos disponibilizados pela própria democracia liberal.
Nos últimos anos, talvez desde a época da Ação Penal 470 conhecida como “Mensalão” (tenho sempre muito escrúpulo em usar um termo cunhado por um indivíduo com a folha corrida de Roberto Jeferson), o brasileiro passou a lidar com novos léxicos vinculados ao chamado Estado Democrático de Direito. Antes desta Ação Penal que levou a julgamento membros de diversos partidos, principalmente do partido dos trabalhadores (PT), por questões vinculadas ao uso de caixa 2 em campanhas eleitorais, muito pouco debatíamos, no nosso cotidiano, sobre questões vinculadas ao poder judiciário. De maneira geral ninguém sabia sequer um único nome de um Ministro do Supremo Tribunal Federal. De 2005 em diante o Ministro Joaquim Barbosa dividiu com Pelé e com Roberto Carlos a condição de brasileiro mais conhecido. Além dele, outros ganharam fama e se transformaram em ídolos nacionais. Passamos a ter o nosso ministro de estimação, típico das torcidas organizadas. Os defensores do ministro X se contrapunham publicamente aos admiradores do ministro Y.
Empolgado com a visibilidade, o STF, com o beneplácito do poder Legislativo e da própria sociedade, passou a trazer para si alguns dos grandes temas nacionais negligenciados pela inércia e pela covardia oportunista do Congresso Nacional. Uma delas foi a liberação das pesquisas científicas com célula-tronco embrionárias, tema que dialogava diretamente com questões de natureza religiosa resvalando no fundamentalismo. A Câmara dos Deputados, sempre refém da bancada evangélica, se escondeu e deixou o “pepino” com a Suprema Corte. A Corte também foi demandada para decidir sobre o caso de extradição do italiano Cesare Battisti condenado em seu país pelo assassinato de quatro pessoas alegando crime político. O caso envolvia um forte apelo ideológico entre esquerda e direita, mas foi o STF, com seus “olhos vendados” a opinar sobre a questão. Um tema caro aos grupos identitários também chegou ao colo dos ministros que decidiram pelo reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Esse tema foi mais um daqueles em que a nossa Câmara Baixa covardemente terceirizou ao poder judiciário, abrindo mão de sua condição legal de representante do poder lhe confiado pelo voto popular.
Em 2010 o Supremo foi demandado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a se posicionar sobre uma possível mudança de interpretação da Lei da Anistia criada para conceder perdão aos crimes relacionados à ditadura militar (1964 – 1985). O objetivo do órgão representativo dos advogados era buscar a possibilidade de punição de alguns agentes do Estado que se envolveram na época da ditadura com crimes de tortura. O STF se negou a deixar abrir essa “ferida” de nosso passado autoritário e seguiu se legitimando como a instituição responsável por gerir a dinâmica da democracia brasileira. Em 2007 o STF resolveu organizar o sistema político e decidiu que o mandato de um parlamentar pertence ao partido e não ao individuo. Atingia diretamente o fisiologismo oportunista da infidelidade partidária e expunha a incapacidade do poder Legislativo de resolver internamente suas próprias idiossincrasias. Em um outro momento de inoperância crônica do campo político em debater questões sensíveis ao funcionamento da própria sociedade, o partido Democratas ajuizou no STF ação contrária a reserva de 20% de vagas para candidatos negros na Universidade de Brasília. Foi mais um exemplo de incompetência de nossa elite política em gerir autonomamente suas próprias causas. Em suma, nos últimos vinte anos o poder Judiciário, por inoperância dos poderes Legislativo e Executivo, vem se transformando no principal avalista de nossa democracia liberal. Mas qual é a verdadeira questão que se encontra hoje como decorrência dessa realidade e que impacta diretamente no fazer político da esquerda brasileira? Vejamos a seguir.
O ponto central a ser refletido hoje é sobre como a democracia brasileira tem resistido a esse possível desequilíbrio de poder. De imediato, podemos antecipar que o saldo para o campo político foi desastroso. Mas não foi melhor para o todo da sociedade. O desequilíbrio de poder em decorrência do fortalecimento do STF na vida nacional fez gerar, principalmente, uma mudança de perspectiva da sociedade sobre o papel dos três poderes no contexto do Estado Democrático de Direito. Em consequência direta, abriu espaço para que aventureiros pouco afeitos ao sistema de pesos e contrapesos que sustentam a democracia se sentissem empoderados suficientemente para aviltá-la publicamente com o apoio de uma manada de seguidores tão inconsequentes quanto seus lideres. Abriu-se uma profunda fissura na política com P maiúsculo e possibilitou a viabilidade eleitoral de indivíduos tão impensáveis como o capitão Jair Bolsonaro. Mais do que isso, e ampliado pelo advento das redes sociais, sujeitos beócios alcançaram visibilidade instantânea e conseguiram chegar ao Congresso Nacional ao vomitarem na blogosfera regras de condutas reacionárias retirando da penumbra uma malta de figuras caricatas como Hasselmanns, Kicis, Jordys e Kataguiris fazendo realizar-se a profecia do genial Nelson Rodrigues de que “os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade”.
Porém, o que estamos vivenciando hoje é a sensação de que a democracia liberal, o Estado Democrático de Direito e o equilíbrio entre os três poderes não estão sabendo lidar com o espólio gerado por essa conjuntura medíocre governada pelo negacionismo histórico e pela anti-ciência. Estaria a nossa democracia entrando em estado de letargia e preparando sua morte? Diferente dos anos setenta e oitenta do século XX as atuais democracia não morrem em decorrência do golpe de Estado clássico com os tanques nas ruas e a radical mudança do regime de forma autoritária. Esse tipo de morte é imediatamente percebida pela população e uma parcela dela se sente motivada a construir mecanismos de resistência, hoje, não é assim. Como escreveu Steven Levitsky e Daniel Ziblatt“ as democracias ainda morrem, mas por meios diferentes”.[ii]Porém – e esse é o verdadeiro perigo que deve ser percebido pela esquerda quando se movimenta em meio ao ordenamento jurídico burguês – afirma Levitsky e Ziblatt: “Como não há um momento único – nenhum golpe, declaração de lei marcial ou suspensão da Constituição – em que o regime obviamente “ultrapassa o limite” para a ditadura, nada é capaz de disparar os dispositivos de alarme da sociedade”.[iii] O grifo é nosso, e visa matizar o risco de estarmos ajudando a matar a nossa democracia quando ingenuamente caímos em armadilhas criadas pela interpretação oportunista de clausulas importantes da Constituição Federal. Essa pode não ser a Constituição de nossos sonhos, mas é aquela em que em 1988, com razoável participação popular, foi possível construirmos.
A nova forma burguesa de atingir a democracia de morte faz uso da maquiavélica e alienante sensação de a estarmos defendendo-a. A intelectualidade de esquerda tem a importante atribuição de comportar-se como uma espécie de ombudsman da sociedade no sentido de evitar que caiamos nas ingênuas campanhas de “somos todos 70%” ou em propostas de frentes únicas contra o fascismo. Esse tipo de movimento é imediatamente contrariado pela realidade dos fatos quando os institutos de pesquisas colocam Jair Bolsonaro como vitorioso em qualquer simulação de segundo-turno. Se somos 70% de democratas, por que o capitão não é goleado no segundo turno? Dentro desses 70% cabem Huck, Dória, Moro, ACM Neto e cia? Se sim, eu estou fora. Esse tipo de campanha somente tergiversa uma unidade efetivamente programática e de esquerda que propunha mudanças estruturais no Brasil profundo.
O recente episódio envolvendo um desses indivíduos impensáveis gerados pelo discurso da anti-política, o deputado “bombado” Daniel Silveira, fez renascer com força esse debate sobre o presente e o futuro da democracia brasileira. No bojo do cenário de terra arrasada que surgiu depois do golpe contra a presidente Dilma Rousseff se impôs também o debate da politização do judiciário, que para a esquerda se desdobraria no histórico dilema de lidar com a legitimidade da intervenção judiciária do Estado burguês. Para quem não sabe, o ministro Alexandre de Morais usou a Lei de Segurança Nacional (LSN) para embasar o mandado de prisão do deputado bombado, o que tem de irônico nisso? O fato de que essa lei foi criada no contexto da ditadura militar e assinada pelo ex-ditador João Batista Figueiredo. Chegamos ao dilema de usar, hoje, como salvação da democracia, uma Lei forjada para sustentar um regime de exceção.
Entendo ser natural o pragmatismo dos políticos de esquerda ao lidarem com a prisão de Daniel Silveira, mas não creio que esse seja o melhor caminho para os intelectuais de esquerda. Ao mergulharmos na sanha meramente punitivista perdemos com isso uma boa oportunidade de refletir sobre algo muito maior que é o próprio funcionamento do ordenamento político e jurídico de nossa democracia.
Ao resgatar a Lei de Segurança Nacional (que pode ser lido como um entulho da época do autoritarismo) o ministro Alexandre de Morais, do STF, rememorou o “espírito” que embasou sua criação, ou seja, um instrumento do Estado autoritário para resguardar seu poder diante dos grupos de oposição ao regime. Quantos companheiros de esquerda tombaram pelo tiro certeiro, mas sempre suspeito, da LSN? Eis uma série de desafios para a esquerda brasileira: O que se entendia nos anos oitenta do século XX como “segurança nacional” e o que se entende hoje? A lógica da Lei é a mesma, ainda que o regime tenha mudado. Como a esquerda deve lidar com uma Lei que se caracteriza como um dispositivo legal que estabelece quais são os crimes contra a segurança nacional e contra a ordem política e social? Como essa Lei pode se adequar em um contexto de equilíbrio de poderes presentes no interior da dinâmica do Estado Democrático de Direito? O que verdadeiramente a esquerda entende como autonomia entre os poderes?
O próprio Estado burguês buscou resolver esse dilema quando em 2002 o presidente FHC ensaiou a criação de uma comissão de juristas para pensar uma adequação da LSN (inclusive sua revogação) aos tempos democráticos. Não vingou. O STF tomou para si essa tarefa quando decidiu pela obrigatoriedade que a acusação de crimes que se enquadrassem na LSN viesse acompanhada de provas cabais e objetivas de que seus desdobramentos realmente iriam incorrer em danos reais não só à segurança nacional como a ordem política e social. Uma Lei com essa dimensão não pode se basear em subjetividades.
No caso do deputado Daniel Silveira, por se tratar de um parlamentar, cria o potencial conflito entre a LSN e o Art. 53 da Constituição cujo texto diz que “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Se chegarmos à conclusão de que as palavras abjetas proferidas por Daniel Silveira constituem crimes a serem enquadrados na LSN, quais os reais critérios para dispensá-lo do respaldo do Artigo 53? Decorre daí outro dilema previsto no inciso segundo do artigo 53, a saber: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”. Tem certa razão (o direito é a grande arena do combate entre razões) quem questiona o seguinte texto de Alexandre de Morais: “expeça-se mandado de prisão pelo crime cometido em flagrante delito.” A questão é jurídica, mas é também semântica, como conciliar no tempo o mandato a posteriori com o flagrante a priori? Fica no mínimo truncado o texto que apresenta uma “ordem de prisão por flagrante delito”. Foi necessário um hercúleo exercício jurídico de tipificar um vídeo postado em rede social como um exemplo de flagrante delito. A postagem de vídeos nas redes sociais está fazendo surgira figura jurídica do “crime continuado no tempo”. Não é minimizando esse tipo de coisa que vamos construir uma democracia sólida.
A operação Lava Jato e seu desdobramento vulgar conhecido popularmente como Vaza Jato ensejou o debate sobre a ausência do juiz de garantias e o juiz de instrução no ordenamento jurídico brasileiro. As peripécias do doutor Moro e sua obsessiva e seletiva perseguição ao ex-presidente Lula expôs os profundos problemas causados pela concentração, em uma só pessoa, do poder de investigar e julgar. O STF e suas decisões autocráticas tem se transformado em algo semelhante, principalmente quando ele é “vítima” no processo e lhe é dado o poder de investigar, acusar, julgar e condenar. É realmente saudável para a democracia e o equilíbrio de poderes que um membro do poder legislativo ao atritar com um membro do poder judiciário seja unilateralmente julgado e condenado pelo poder judiciário? Essa é a melhor forma de organização de nosso ordenamento jurídico e político? Tratamos a Casa Legislativa como se fosse um orfanato de garotos rebeldes e mal educados sem maturidade suficiente para resolver suas próprias questões internas. O STF, por outro lado, é o bedel disciplinador a puxar publicamente as orelhas dos pimpolhos imaturos que compõem nossa Câmara Baixa. A Câmara dos Deputados tem um Conselho de Ética justamente para investigar, julgar e punir seus membros que quebrem o decoro parlamentar, nele incluída a malfadada “imunidade parlamentar”. Quando aplaudimos, enquanto esquerda, uma intervenção tão escancarada do poder judiciário sobre o poder legislativo (refiro-me, sim, ao caso Daniel Silveira), nos cabe a reflexão de que se partimos da premissa de que o Estado será sempre a expressão da vontade e dos interesses da classe dominante, é o poder legislativo um dos poucos espaços que sobra para a classe dominada interferir na dinâmica do poder estatal. Quando vejo deputados de esquerda defendendo de forma tão arraigada e pouco crítica uma “carteirada” do STF na cara de um de seus pares, por mais cretino que ele seja, me causa receio do quanto eles estão preparados para debater a politização da justiça que tanto tem vitimado a esquerda nos últimos anos.
Se hoje a justiça burguesa consegue ser tão autônoma e implacável com um parlamentar de direita, imagine o que não pode fazer quando chegar a vez de um esquerdista. Será que realmente não temos que nos preocupar com a abertura de um perigoso precedente jurídico (principalmente para a esquerda) quando um membro da Suprema Corte decide unilateralmente (não vejo absurdo inclusive em adjetiva-la de arbitrária) sobre o comportamento de um membro de outro poder que tem seus próprios mecanismos de punição? Não seria papel da esquerda, ao invés de legitimar com facilidade uma ação deliberada do judiciário do Estado burguês, já ter iniciado uma luta pela reorganização desse mesmo Estado em uma perspectiva mais democrática e popular?
Qual o papel, na ordem liberal burguesa, da Procuradoria Geral da República (PGR)? Tivéssemos, nos últimos anos, essa instituição funcionando de maneira assertiva em defesa do Estado Democrático de Direito e o deputado “bombado” já poderia ter sido freado muito antes, pois não é a primeira vez que ele vomita em público suas boçalidades. Mas onde estava a PGR que não abriu inquéritos contra ele? Não somente ele, mas todos os que antes dele aviltaram a Constituição e a própria democracia. Diz o artigo 7 do Decreto-Lei que dispõe sobre a organização do Ministério Público Federal que é função da PGR: “velar no que couber pela execução da Constituição, leis, regulamentos e tratados federais”. Tivesse feito isso com mais acuidade, talvez não chegássemos a esse cenário de terra arrasada que não só retirou da campanha eleitoral um forte candidato, como entregou o futuro de uma nação de 220 milhões de habitantes a um “bufão” como Jair Bolsonaro e, ao mesmo tempo, viabilizou a eleição de um individuo non sense como Daniel Silveira.
O caso Daniel Silveira é um manancial de fatos constrangedores para a tradição do pensamento de esquerda no Brasil. Nos anos noventa do século XX, como dirigente sindical, ouvi de inúmeros colegas discursos inflamados de reservas ao Estado burguês quando precisávamos apelar para as Cortes judiciárias em casos de Dissídio coletivo. A liberdade de expressão sempre foi o calcanhar de Aquiles da esquerda e ainda que eu concorde de que ela não deve ser vista como absoluta, cabe a pergunta: Quem tem, no Estado burguês, o poder de estabelecer seus limites? O poder de estabelecer os limites da liberdade de expressão não pode potencialmente se transformar em uma arma contra os representantes da classe dominada?
Desde a época do julgamento do chamado “Mensalão” que a esquerda tem sido permanentemente demandada a refletir sobre questões básicas do ordenamento jurídico em tempos democráticos, tais como: presunção de inocência, defesa do devido processo legal, direito irrestrito de ampla defesa, respeito garantista do texto constitucional, respeito ao contraditório, a necessidade de provas amplas e cabais (não basta convicções para se condenar alguém) para condenações, critica ao punitivismo judicial, entre outros. O caso do deputado Daniel Silveira (por mais abjeto que seja seu comportamento) não pode contribuir para a relativização dessas questões. Assim como normalmente a esquerda (principalmente a petista) argumenta que defender Lula é defender a democracia, relativizar de forma seletiva determinadas garantias legais asseguradas a todos os cidadãos somente para “detonar” o deputado “bombado” é correr o risco de relativizar a própria democracia que tanto defendemos.
O jurista Lenio Streck, sempre muito perspicaz em suas analises, critica o deputado Daniel Silveira por ter reivindicado em sua defesa a imunidade parlamentar. Diz Streck: “a finalidade da imunidade é proteger a democracia e não a de servir de escudo para destruí-la”.[iv] Sem dúvida que a fala do deputado em sua defesa é rasa, tosca e contraditória, pois usa da “liberdade de expressão” para ter o direito de defender um regime que matou a “liberdade de expressão”. Daniel Silveira não precisava nem mesmo defender abertamente em seu vídeo o Ato Institucional número 5 (AI-5), bastava ter ventilado um esboço de concordância com este entulho autoritário que já seria suficiente para construir provas contra si mesmo. Quando criado, o AI – 5 deu ao ditador/presidente da República o poder de considerar qualquer cidadão como um subversivo e imputá-lo todas as punições possíveis sem respeitar nenhum dos poderes que compunha o Estado brasileiro. Hoje, quando assistimos de forma complacente uma audiência de custódia contra um membro de um poder autônomo da república ser efetuada a mando de um membro do STF (também ele um desses poderes autônomos da República) acho que é suficiente para acender a luz amarela da democracia brasileira. Não se trata, portanto, de defender a não punição de Daniel Silveira ou, como dizem os mais jovens, “passar pano” para o “bombado”, mas perguntar se não seria mais democrático que esta função se desse no âmbito da instituição a que o deputado pertence. Afinal, ao serem eleitos pelo sufrágio universal, é sobre os membros do Congresso que a sociedade tem maior poder de exercer sua pressão popular e não sobre o STF e seus membros indicados e “vitalícios”.
Nos último quinze anos a esquerda tem passado por um longo e tenebroso inverno. Ao chegar ao poder, com o PT, foi exposta às particularidades e natureza da gestão pública. Teve que lidar de forma prática com o que ela somente conhecia em teoria. Como diz o velho ditado: na prática a teoria é outra. A intelectualidade de esquerda, petista ou não, foi desafiada a responder questões demandadas cotidianamente por essa nova experiência de lidar com a dinâmica da ordem liberal e ter que se enquadrar às diretrizes “determinadas” pelas estruturas do Estado burguês. O caso Daniel Silveira é somente uma metáfora superdimensionada (em forma de tragédia e farsa) desse histórico dilema vivenciado pela esquerda brasileira.
Em suma, esqueçamos a disputa no varejo da política, pois concentrar todas as nossas energias sobre uma figura desprezível como Daniel Silveira é tergiversar sobre o que realmente interessa, ou seja, o atacado da política que diante de um país empobrecido e menos democrático se materializa no desafio de reconstruí-lo em outras bases a partir de 2023. Até lá, todo cuidado é pouco ao andarmos sobre a linha tênue que separa a sobrevivência dentro da democracia liberal e o risco de servirmos à sua destruição como inocentes úteis.
*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Notas
[i] Rouanet, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[ii] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar,2018.
[iii] Idem.
[iv] https://www.conjur.com.br/2021-fev-17/streck-deus-morreu-agora-tudo-prisao-deputado.