O compromisso democrático

image_pdf

Por MARCUS IANONI*

Da frente única antipetista à frente ampla com Lula: o resgate democrático do Planalto

Como várias análises reconhecem, a eleição presidencial de 2022 marca uma virada no processo político de regressão democrática que estava em curso no Brasil, sobretudo, desde 2016, com a deposição da ex-presidente Dilma Rousseff. A principal variável nova, resultante das urnas, é a sinalização de que a cambaleante democracia brasileira passa a recuperar o vigor capaz de reverter a trajetória de decadência a que havia sido jogada, em especial, pelo bolsonarismo, movimento de perfil neofascista, que colonizou várias instituições do Estado nos últimos quatro anos e instaurou o caos na sociedade.

A eleição de Lula apoiou-se, desde o primeiro turno, em uma coalizão qualificada como sendo de frente ampla, pelo seu propósito de unir partidos e atores sociais até então adversários em torno do resgate democrático do governo federal e da nação. Dez partidos compuseram a coligação registrada no TSE: Federação Brasil da Esperança (PT, PCdoB e PV), PSB, Federação PSOL Rede, Solidariedade, Avante, Agir e PROS. O PCO também apoiou Lula desde o início. No segundo turno, juntaram-se mais 4 agremiações – PDT, Cidadania, PCB e PSTU –, totalizando 15 partidos.

Além disso, o líder petista contou com o sólido apoio da candidata presidencial e senadora do MDB, a senadora Simone Tebet, assim como o PSDB e o União Brasil liberaram seus diretórios para apoiarem quem quisessem. Em São Paulo e Pernambuco, por exemplo, o PSDB fez o L. Nove ex-presidenciáveis apoiaram Lula no segundo turno, entre os quais Fernando Henrique Cardoso. Agora, com o governo de transição em atuação, o MDB oficializou sua participação nessa etapa-chave e indicou mais três de seus quadros, além da senadora já integrada.

De novembro de 2019, quando saiu da prisão, até 30 de outubro de 2022, Lula, líder popular e carismático, transformou veto em voto e em aliados. Converteu em voto na frente ampla o veto que recebeu em 2018, quando, em contexto de extremado antipetismo e lawfare, foi preso e impedido de concorrer ao pleito. Na ocasião, os liberais se uniram em frente única contra o PT, contra a esquerda. Desde meados deste ano que finda, uma das principais novidades da conjuntura foi a ruptura de uma parcela das lideranças políticas e sociais liberais com a transigência em relação ao autoritarismo bolsonarista, evidenciada, já antes do pleito, em iniciativas como a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito! A locomotiva desta ruptura foi a chapa Lula-Alckmin, que PSB e PT formalizaram desde abril-maio.

Não é pouca coisa, muito pelo contrário, o país ter transitado da frente única antipetista à frente ampla com Lula, após transitar na corrosão democrática aberta pelo golpe de Estado de 2016 e aprofundada no (des)governo de Jair Bolsonaro, que, entre outros, não passou pelo teste da crise da pandemia, que também contagiou a economia, maltratada pelo negacionismo sanitário, por Paulo Guedes, pela sede de reeleição do capitão, pelo orçamento secreto do centrão etc.

As situações de crise são propícias a mudanças em três elementos-chave extraídos da análise do conceito de Estado: regime político, políticas públicas e coalizões. Regime refere-se às regras do jogo político institucional, à formação e troca do governo e à sua duração, às liberdades e direitos existentes ou não etc. As políticas públicas dizem respeito às propostas e decisões governamentais sobre temas de interesse público, destacando-se, obviamente, o tema da economia, pelo seu impacto na renda dos trabalhadores, das firmas e do próprio Estado.

Por fim, seja para decidir sobre as regras político-institucionais ou sobre as políticas públicas, os agentes do Estado (políticos e burocracia de carreira) precisam de apoio, que advém de coalizões, no sentido amplo do termo. Um partido, por si só, é uma coalizão entre atores, eleitores, grupos sociais etc, constituída tanto formal quanto informalmente. Não raro, partidos coalizam-se entre si. Examinando as coalizões em perspectiva ampliada, elas são político-institucionais e sociopolíticas. Os executivos, parlamentos e partidos não são ilhas à parte do mercado e da sociedade.

A história mostra que o compromisso democrático dos atores é uma barreira contra a autocratização e assim se deu nessa eleição presidencial no Brasil. Na Grande Depressão, Hitler, após se eleger, em 1932, pressionou exitosamente o presidente Hindenburg, com o apoio ativo da grande burguesia, para ser nomeado Chanceler da Alemanha, em um contexto de divisão entre a social-democracia e o Partido Comunista, devido à recusa da unidade dessas organizações dos trabalhadores pela Terceira Internacional, já controlada pelo stalinismo. Assim se abriu o caminho para a frente única fascista.

Nessa mesma grande crise, a coalizão do New Deal, costurada em torno do presidente Roosevelt e dos Democratas, conciliou demandas de grandes empresários urbanos e rurais e dos trabalhadores, que tiveram seus direitos reconhecidos (organização sindical, barganha e ação coletivas, seguridade social). Nessa mesma crise, enquanto no Brasil desenrolava-se o processo político da Revolução de 1930, formou-se no Reino Unido, em 1931, o inusitado Governo Nacional, uma coalizão entre o Labour, os Tories e os Liberais, que durou até 1940 e causou um impacto político-institucional democratizante, respaldado pelo big business, mas que não bloqueou algumas conquistas relevantes dos trabalhadores, como o Holidays with Pay Act 1938, que garantiu as férias remuneradas, só abolidas pelo Statute Law (Repeals) Act 2004, no governo de Tony Blair.

No Brasil do pós-guerra, fatores externos e internos – nesse caso, pode-se destacar o Manifesto dos Mineiros e o próprio fato do país, então, ser uma ditadura que lutara na trincheira dos Aliados – reconfiguraram, por meio de pressões civis e militares, a relação de forças e conduziram Vargas à renúncia, abrindo-se a democracia populista.

A crise do capitalismo neoliberal, aberta na Grande Recessão (2007-2008) e desdobrada na crise da dívida europeia e na desaceleração dos países emergentes, foi e tem sido o esteio de diversas modalidades de autocratização, inclusive de perfil neofascista, como se pode conceber o trumpismo e o bolsonarismo. O desempenho ruim ou insatisfatório da economia, a austeridade fiscal e o correlato aumento da desigualdade alimentam a emergência, em vários países, inclusive na Europa, de lideranças políticas conservadoras e autoritárias, que sustentam discursos xenófobos, racistas, de exclusão dos estrangeiros, eurocépticos, nacionalistas, anti-imigrantes, anti-islâmicos, misóginos e assim por diante.

Trata-se da busca de uma saída para a crise do capitalismo neoliberal, uma alternativa que é, por um lado, socialmente restritiva, em termos de políticas públicas e, por outro, politicamente contrária ao regime da soberania popular, mas que, dado o apelo normativo do poder do povo, almeja uma legitimidade de massas para o autoritarismo: America First, Nós somos a maioria etc.

Note-se que, no contexto da crise da dívida europeia, o UK Independence Party (UKIP) cresceu no Reino Unido, onde também surgiram alguns líderes fascistas, como Nick Griffin, do British National Party, ocorreu a vitória do Brexit em 2016 etc. Na Alemanha, o neonazismo emergiu, sobretudo com o Alternativa para a Alemanha (AfD), criado em 2013. Porém, nesses dois países, apesar da gritaria de alguns grupos de extrema direita, o pacto democrático bloqueou seu desenvolvimento, ao passo que, nos EUA e no Brasil, a democracia foi colocada em risco. Na Alemanha, destacam-se, nesse período, vários governos de grande coalizão entre CDU/CSU e SPD.

Em todos os exemplos acima mencionados, as crises rearranjaram as três variáveis do Estado: regime, produção de políticas públicas e coalizão de sustentação. Nem sempre a mudança é de regime. Pode haver mudança no regime, ou seja, mais ou menos democracia ou autoritarismo. No rearranjo do Estado, tendem a mudar e mudam também o leque de políticas públicas e as coalizões. Nas políticas públicas, nem sempre a mudança é de paradigma, como no caso da passagem da ortodoxia neoclássica para o keynesianismo, na grande depressão. Nos governos de Lula (2003-2010), por exemplo, a política macroeconômica flexibilizou o tripé (metas de inflação e de superávit primário e câmbio flutuante), sem romper com ele.

Apesar do marco político que a vitória de Lula representa, a extrema direita mostrou força social e partidária. Sua representação no Congresso conquistou um relativo aumento, capitaneado pelo PL, embora a Federação Brasil da Esperança também tenha crescido, ainda que menos. A vitória eleitoral da frente ampla possui grande significado, mas foi apertada, suada, difícil. Em todo o caso, a vontade da maioria dos eleitores apontou para a reconstrução da democracia e da economia.

O desafio é que a frente ampla alavanque a transição, a retomada gradual do desenvolvimento político, econômico e social do país. É um desafio imenso, dado o contexto internacional desfavorável, o caráter heterogêneo e eclético da coalizão ampliada em construção, a avareza e irracionalidade do mercado e, entre outros, o fato de que a polarização da extrema-direita contra os democratas não está dando sinais de trégua, haja vista as ocupações de rodovias e as demandas golpistas dirigidas aos quartéis e patrocinadas por empresários, o messianismo apocalíptico atribuído ao futuro governo etc.

Mesmo assim, a sustentação da democracia requer desempenho. Por sorte, Lula é um animal político e não há hoje no Brasil nenhum líder mais capacitado que ele para exercer a arte da política democrática no sentido de colocar a frente ampla a serviço da nação como um todo, e não da plutocracia, como fez a coalizão bolsonarista, altamente elitista. O espaço aberto para a ação política de envergadura nacionalmente ampliada é a grande vitória que as forças civilizadas e progressistas conquistaram, após aprenderem tragicamente que a unidade dos liberais em torno do autoritarismo significou sinal vermelho para a democracia.

Na verdade, a eleição presidencial mostrou que o sinal verde para a democracia neste país politicamente polarizado é vermelho, ou melhor, rosa. O Brasil está ingressando na Segunda Onda Rosa da América Latina.

*Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
11
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
12
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES