Por GUSTAVO TORRECILHA*
A verdadeira crise não está no gênero ou no tema, mas na capitulação da ambição literária. O que se exige é que a obra transcenda sua história para dialogar criticamente com a própria tradição que a possibilita
1.
Uma questão que ganhou destaque nos últimos dias foi a discussão acerca do estado da literatura contemporânea. De um lado, a crítica com relação à ausência de preocupações formais, o que por sua vez, ensejou também críticas vinculadas à preponderância da autoficção nas obras mais destacadas da contemporaneidade.
Ambas as críticas podem convergir na medida em que a crise da literatura contemporânea (que se faz presente muito mais no âmbito do discurso teórico e acadêmico do que no do mercado editorial) diz respeito a essa ausência de qualquer tipo de reflexividade da obra, que não é pensada mais como uma intervenção no desenvolvimento histórico dessa arte, mas apenas como mais uma história ou mais um livro em abstrato, que se encerra em si mesmo e que não desenvolve ou expande nada para além de si.
A primeira crítica começou com o ensaio de Walnice Nogueira Galvão no jornal Folha de S. Paulo, que, como o próprio título já indica, argumenta que o conteúdo predomina sobre a forma na literatura brasileira de hoje: “o que se escreve e o que se lê são definidos pelo conteúdo. Quanto à estética, ao trabalho com a forma, aos anseios da vanguarda, ao fermento da experimentação… Tudo isso fica no horizonte do futuro, e assim mesmo, talvez”.[i]
Essa argumentação impulsionou a fala de Aurora Bernardini que, em entrevista também à Folha, critica o mercado editorial e a escrita que, baseada apenas no conteúdo, deixa de lado a forma.[ii]
Disso resultam obras que até poderiam ser interessantes, mas que não são literatura. Ela cita como exemplo Itamar Vieira Junior, Annie Ernaux e Elena Ferrante, e, apesar de ter elogiado as obras, a repercussão da entrevista se baseou quase que exclusivamente na manchete chamativa de que esse autor e essas autoras não são literatura, o que provocou diversos debates e respostas, cuja maioria sequer discute o ponto mais interessante do debate: uma escrita baseada no conteúdo e que não se importa com o desenvolvimento da forma.
Ainda que discorde desse ponto lateral do debate, mas que ganhou a atenção nas discussões em redes sociais, a opinião de Eduardo Cesar Maia, publicada também na Folha após o texto de Aurora Bernardini, ressalta também a “parca atenção que se tem dado ao engenho imaginativo e à qualidade verbal dos textos literários”.[iii] Por outro lado, aponta também como a mesma crítica à prevalência da dimensão do conteúdo já fora feita no passado a um formalismo exacerbado. Ele conclui, no entanto, que toda obra possui um grau de estilização e que isso já inseriria uma dimensão formal, ainda que diminuta.
Esse grau de estilização, entretanto, por mais que abarque uma questão formal da literatura, é insuficiente quando se pensa nas demandas feitas pela arte na contemporaneidade. Por isso, não se deve tratar apenas de uma rejeição pura e simples de uma literatura conteudista ou formalista. O problema desse tipo de literatura contemporânea está muito mais no fato de que ela se propõe a ser pouco (ou nada) para além de sua dimensão individual enquanto obra.
Falta uma reflexividade imanente da obra em sua dimensão singular diante da universalidade da literatura e da arte – o que pode ser atingido tanto pela via da forma quanto do conteúdo – e a crítica ao conteudismo parece ser derivada das visões construídas pelo modernismo, que colocaram questões formais como primordiais nessa reflexão do que é o fazer artístico.
2.
Outra crítica que surgiu na esteira desses problemas apontados na literatura conteudista contemporânea foi a de Douglas Rodrigues Barros na Revista Cult, direcionada à autoficção como esse conteúdo preponderante. Mas para o autor, que faz referência ao debate levantado por Aurora Bernardini e sua repercussão, não se trataria de uma crise da literatura, mas da ficção que sustentava a forma do romance; e recusá-la não seria uma mera escolha estética, mas uma condição contemporânea que acelerou incessantemente o tempo social e “corroeu nossas relações mais íntimas, enquanto o excesso de informação atrofiou a capacidade de observação reflexiva”.
Como resposta, surge a supervalorização do eu como meio de identificação entre obra e leitor e a autoficção como “modelo genérico de participação no mercado editorial”.[iv] O mercado editorial é central para a crítica que se queira fazer a qualquer forma preponderante da literatura contemporânea.
Uma referência de Douglas Rodrigues Barros é ao livro Imediatez ou estilo do capitalismo tardio demais de Anna Kornbluh. Não se trata de negar a importância e a representatividade que têm ganhado esses grupos minoritários, mas sim de constatar como esse conteudismo não reflexivo e a autoficção convergem para gerar uma literatura focada mais no eu do que na literatura, que se torna confortável, pouco interessante ou inovadora e como o mercado editorial presente se utiliza disso para se reproduzir.
Obviamente essas inclusões são celebradas, mas apenas na medida da representatividade e não do que essa representatividade pode significar para os modelos e convenções da literatura atual predominante. Já na recepção, a completa ausência de qualquer aprofundamento e a discussão apenas baseada nas histórias narradas mostra essa falta de preocupações com o estado da arte literária contemporânea. O mercado editorial prospera nessa celebração da literatura taken for granted. Não há debates mais aprofundados sobre que é a literatura ou sobre o que configura uma obra literária bem sucedida e relevante, especialmente tendo em vistas as exigências feitas a elas desde a aurora da época moderna.
3.
A literatura e a arte moderna são compreendidas na medida em que possuem uma reflexividade em si mesmas. Afinal, entender-se como moderno é uma compreensão de si mesmo e de seu próprio desenvolvimento ao longo da história: algo só é moderno em relação ao que o sucedeu. A reflexividade pode ser pensada no sentido de uma obra que reflete sobre o que é ser uma obra, mas também no sentido mais literal, de uma obra que reflete (como em um espelho) seu próprio conceito.
E sendo esse conceito apreendido com base em seu desenvolvimento histórico ao longo dos séculos, a arte e a literatura, como sujeitos, refletem todos esses estágios em si mesmas e em suas produções mais recentes. É nesse sentido que se fala que um pintor, ao pintar um quadro, não pinta apenas o seu quadro, mas também refaz todas as grandes pinturas da história; um texto literário, semelhantemente, não se resume apenas àquele texto, mas reflete em si todo o desenvolvimento da história da literatura, ainda que não necessariamente de modo referencial ou explícito, mas na medida em que as próprias condições de sua produção em sua própria época estão de alguma maneira presentes na obra.
Se isso já era feito por um poeta moderno como Goethe, cujas obras refletiam o desenvolvimento de uma história que passa por autores como Eurípedes, Hafez e Shakespeare, certo modernismo radicaliza ainda mais essa reflexão, tomando a forma por conteúdo de suas obras em uma reflexão sobre as questões formais que estão implicadas na realização de uma obra.
E não à toa, o romance já havia se tornado a forma primordial da literatura moderna justamente por sua ausência de forma pré-definida e a abertura de possibilidades infinitas. Mas não apenas o romance passa por essa apropriação modernista – basta pensar aqui nos dramas de Samuel Beckett. Já com relação ao pós-modernismo, ainda que ele não possua o mesmo teor programático do modernismo, lidando de modo mais livre e até mesmo mais lúdico com as formas, é de se notar que as melhores obras dessa época possuem essa reflexividade em si.
Um exemplo é David Foster Wallace, “clássico” do pós-modernismo e cujas obras têm por objetivo tensionar e experimentar com a literatura e as possibilidades legadas pela sua própria história.
4.
É isso que a literatura contemporânea vinculada à autoficção e ao apagamento de qualquer reflexividade não faz – pelo menos não de modo suficiente, na medida em que toma a própria arte literária como algo imediato e dado. Tratam-se de histórias em abstrato e que são mais bem recebidas pelo público, pela crítica e pelo mercado na medida em que se baseiam principalmente na experiência dos autores e nessa criação de uma proximidade confortável.
Mas isso não significa que toda autoficção seja indiferente com relação à capacidade reflexiva da literatura e sua compreensão de si mesma; exemplos são os dois romances de Elif Batuman, The Idiot e Either/Or. Embora ambos relatem de modo ficcionalizado as experiências da autora durante seus primeiros anos em Harvard (e todas as relações familiares, amorosas, de amizade, o descobrimento de novas disciplinas e novos caminhos pelo mundo, etc.), a referência é clara às obras de mesmo título, respectivamente, de Dostoiévski e Kierkegaard.
A própria dimensão formativa da personagem principal como escritora em um ambiente universitário também insere elementos que discutem a literatura em si – por via do próprio conteúdo. Aqui, a autoficção se encontra com a reflexividade que a literatura a partir da modernidade passa a exigir e os paralelos com os textos que emprestam os títulos às obras servem para que a narrativa não se resuma à mera autorreferência subjetiva de um relato pessoal ficcionalizado.
Pode ser que essas obras, recentes, não venham a ter maior relevância na posterioridade, mas pelo menos na contemporaneidade elas mostram algo a mais e um caminho possível para a que a tendência da autoficção busque ao menos superar a mera subjetividade.
Algumas objeções aos textos e preocupações de Aurora Bernardi levantaram a questão da estilização presente em toda obra literária. E de fato qualquer obra estará impregnada pela subjetividade de seu autor e terá um estilo próprio. Mas a questão formal não pode se resumir apenas ao estilo. E nem o conteúdo pode ser contraposto de modo absoluto à forma, como se não se relacionassem dialeticamente.
Por isso é mais interessante pensar nessa dimensão da reflexividade, na medida em que ela incorpora uma compreensão de forma e conteúdo que vai além de uma mera questão estilística ou pessoal, mas que pensa também as próprias possibilidades e condições da arte e da literatura – e que se, no momento, poderiam exigir mais da forma e do como se faz uma obra, também, em outros momentos, já estiveram mais relacionadas à questão do conteúdo e do que poderia se tornar assunto.
Por fim, é de se ressaltar a capacidade que todos esses ensaios, entrevistas e opiniões tiveram para contribuir para que essas questões levantassem um debate que tem tomado, nos últimos dias, os meios de comunicação, seja nas publicações principais, seja nos comentários vinculados a ela. Pois embora pouco interesse ao mercado editorial uma reflexão mais paciente e detida sobre a literatura, ela é interessante para a formação de escritores, leitores e todos vinculados a essa esfera.
*Gustavo Torrecilha é doutorando em filosofia na Universidade de São Paulo (USP).
Notas
[i] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/05/conteudo-predomina-sobre-a-forma-na-literatura-brasileira-de-hoje.shtml
[ii] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/08/itamar-ernaux-e-ferrante-sao-interessantes-mas-nao-literatura-diz-aurora-bernardini.shtml
[iii] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/09/opiniao-de-aurora-bernardini-e-problematica-mas-acerta-no-diagnostico.shtml
[iv] https://revistacult.uol.com.br/home/eu-eu-mesmo-e-mais-eu-crise-da-ficcao-literaria-e-crise-da-imaginacao/
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