Por MARCIO LUIZ MIOTTO*
Posições sobre o mundo podem ser manipuladas caso se tenha o conhecimento devido das formas pelas quais as pessoas se relacionam com o mundo
Certas mudanças culturais ocorrem não exatamente no nível explícito da linguagem, mas na soleira dela, naquilo que não se discute ou que não se pode discutir, ou que é difícil de enxergar e torna a discussão pesada, enfadonha, sem propósito. Algo dessas mudanças é o que presenciamos nos debates políticos recentes, por exemplo em torno das eleições. Pois um “debate” político parece carregar hoje algo mais do que já carregou em outros tempos.
Vejamos: alguém vem nas redes sociais com um meme repleto de fake news pronto a defender certos candidatos e a criticar por exemplo Lula, imputado de inúmeros termos pejorativos, como “nove-dedos”, “ladrão” e outras coisas mais. Em geral, há duas respostas para isso: concordar ou ficar calado.
Mas experimentemos uma terceira opção: responder ao meme apontando, com fatos e razões, que ele é mentiroso. A reação possível a isso é tripla: a primeira é a pessoa empreender uma espécie de silêncio inibidor e ficar calada, dissuadindo a continuidade da conversa. A segunda é a pessoa encerrar a conversa apelando a um respeito inibidor, isto é, a seu direito de manter a própria opinião mesmo que esteja errada.
A terceira é inibir o outro partindo para o ataque, de duas formas: ou com ataques ad hominem, ou com o típico “grito de internet”, aquele que apenas retoma o que se disse antes com palavras em caixa alta, palavras de ordem ou estereótipos (é como se, na opção do ataque, ou a pessoa apontasse o dedo na cara do interlocutor para desviar a atenção, ou tapasse o ouvido e começasse a gritar).
A conversa então termina. E se ela não termina, a continuidade dela não segue a definição corrente de uma “conversa”. Não importa, aqui, buscar um ponto comum entre os interlocutores, ser convencido ou convencer o outro, apresentar fatos, razões e argumentos. O que importa é falar por último. E ter falado por último indicará não um consenso, mas uma vitória.
Todas as opções acima mostram algo muito claro: não há qualquer troca. Ou há adesão pura e simples do interlocutor às teses que defendo, ou há ruptura com o outro sob os modos do silêncio sem aceitação ou da vitória que, ou anexa o outro sob minhas ideias ou o aniquila como interlocutor. Não há razões apresentadas ou compartilhadas e toda e qualquer razão é reduzida a uma simples opinião.
Essas atitudes já existiam na cultura geral e na cultura brasileira em particular. Mas elas não existiam predominantemente quando alguém pretendia cultivar algum debate de tipo político. Elas já existiam comumente em espaços cívicos cotidianos como, por exemplo, o do futebol ou o da religião. Nessas esferas – para utilizarmos esses exemplos – não há o uso do convencimento, e sim da pura e simples adesão. E quando a adesão não é possível, o que ocorre é certa negação do outro, embora provisória e sob espaços delimitados e até recreativos (como no esporte), sem que a figura do outro seja exatamente aniquilada (salvo em casos extremos, como o da perseguição religiosa ou do fanatismo esportivo).
Isso porque no esporte há rivais e na religião há crentes e não crentes, mas tais coisas são temporárias e permanecem restritas em suas devidas esferas: presumivelmente eu aceito a existência do rival – pois é rival apenas no esporte – e também a do outro crente – que me é diferente apenas na esfera da religião.
Mas esses artifícios foram transplantados para a política. E se o esporte visa a vitória sobre rivais e a religião visa a minha crença sobre as demais, a política virou um terreno no qual rivalidades ou crenças não se aplicam mais a espaços delimitados, cívicos ou recreativos, mas à existência mesmas das pessoas e seus modos de vida. Rivais devem ser calados, cancelados, postos fora de circuito, e apenas pode haver espaço para quem tiver uma crença igual à minha (não há mais, propriamente dizendo, sequer discussões sobre propostas partidárias, pois mesmo tendo seu próprio teor de dogmatismo, ao menos eram discussões).
Essa operação tem custos reais. Transformar o contato com o outro num espaço de adesão ou aniquilamento em política significa acabar com a política no seu cerne, pois acaba-se aí com qualquer pretensão de um debate democrático ou qualquer coisa que se assemelhe a ele. No nível da própria linguagem e de seu uso cotidiano, qualquer coisa que lembre uma democracia deixa de ser democracia, isto é, deixa de conter os ingredientes (mesmo em tese) básicos de isonomia e isegoria, do uso livre e igual da palavra e da busca de um ambiente comum. Todo princípio de comunidade é substituído pelo particular, e não à toa as políticas partidárias também cederam lugar nos últimos anos a lobbies particularistas como os da “Bala-Boi-Bíblia” (ou, mais recentemente, dos proprietários de armas).
Mas essa passagem dos elementos da crença e da rivalidade, incentivados por um particularismo existencial, não ocorre por acaso e é acompanhada da tecnologia informática, isto é, do uso dos celulares e das redes sociais. E isso significa comunicação rápida, o uso de tecladinhos, o horror a ler textos argumentativos e a exploração da linguagem do meme. Nas redes sociais, o contato com o outro resume-se aos follows e likes, isto é, mais uma vez à simples adesão e concordância do outro, ou pelo contrário, aos blocks, ao banimento e ao “cancelamento” do outro como meu interlocutor. Tudo faz com que o outro e suas informações se reduzam ao “meu” simples aprazimento, sem negociação possível. O que é racional, argumentativo, merecedor de exposição e ponderação perde lugar nas redes sociais, pois suas plataformas são feitas para trocas imediatas.
Só que, além de as relações de rivalidade e crença terem sido transpassadas para a política, e além da política encontrar um espaço bem curto de expressão nas redes sociais, as pessoas também mudaram seu comportamento para com as redes sociais: estas servem cada vez menos como instrumento de comunicação complementar e cada vez mais como paradigma de comunicação cotidiana (que o diga o WhatsApp).
Dez, ou vinte anos de redes sociais e semelhantes, não apenas mudaram hábitos, mas formaram pessoas, e pessoas que se expressam no mundo e votam, mesmo que criadas sob telas de celulares e tablets e sob likes e follows. É ponto pacífico, em Psicologia, que isso não diz respeito ao simples uso que a inteligência humana faz de certos instrumentos, pois a inteligência também é condicionada e formada pelos instrumentos que utiliza.
É sob fatores como os descritos acima que as discussões políticas de 2022 parecem carregar algo mais do que elas sempre dizem. Elas não dizem respeito apenas a escolher Bolosnaro ou Lula, ou sobre “tios” meigos e pacíficos que de repente se tornaram raivosos consumidores de WhatsApp e de robôs ocasionais para balões de ensaio em estratégias de microssegmentação. Há uma questão de linguagem e de concepção de mundo que implica formas de se relacionar com o outro e, por consequência, também escolhas políticas.
Já existe literatura farta a respeito disso, e cito apenas o livro Os engenheiros do caos, de Giuliano Da Empoli, quando ele demonstra que há campanhas muito bem-sucedidas nas redes sociais para orientar a opinião pública. Um exemplo impressionante contido no livro é o das estratégias de microssegmentação empregadas para que pessoas tanto favoráveis quanto contrárias à caça votassem a favor do Brexit. Tendo em mãos bancos de dados de milhões de comportamentos em redes sociais, foi possível que os marketeiros da Cambridge Analytica orientassem pessoas favoráveis à caça para votar a favor do Brexit devido à existência de países da União Européia contrários à caça. Quanto aos contrários à caça, os marketeiros apenas empregaram a estratégia inversa, mostrando publicidade e conteúdos ligados a países favoráveis à caça. O que esse exemplo mostra? Que posições sobre o mundo podem ser manipuladas caso se tenha o conhecimento devido das formas pelas quais as pessoas se relacionam com o mundo, por vezes independentemente do conteúdo efetivo de suas crenças ou dos próprios fatos.
Eis, aí, o cerne: não nos comportamos mais politicamente como o fazíamos há alguns anos. Somos ainda mais particularistas e sectários, e mais capazes de manter relações de simples adesão ou rivalidade com os outros, recusando tudo o que diz respeito à discordância e à diferença. Termos como “cancelar alguém” são cotidianos e colorem não apenas memes e palavras de ordem, mas também relações efetivas. A violência verbal das redes sociais cada vez mais se traduz em violência física, uma vez que palavras são ações como quaisquer outras. Distanciamo-nos cada vez mais dos outros e de uma esfera comum não apenas sob os conteúdos do que falamos, mas sob as formas mesmas de o dizer.
O político que souber usar essas nossas novas – digamos – “pré-disposições”, tornando-as objeto de estratégias de microssegmentação baseadas em redes sociais, estará sempre em vantagem – no caso, uma vantagem que sempre atenta contra os princípios mesmos da democracia.
*Marcio Luiz Miotto é professor de psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).