O decênio de Junho de 2013

Imagem: Banski
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Por GLAUBER FRANCO*

Classes médias, ideologia e protestos de rua na crise brasileira

O debate das classes médias também explica a crise brasileira que foi atravessada pela alta dos protestos de rua entre 2013-2016. E, por isso, são relevantes para o balanço do decênio das manifestações de Junho de 2013.

Acontece ainda um intenso processo reacionário-conservador de ultraneoliberalismo e neofascismo que levam as classes médias além das urnas: as contrarreformas de Michel Temer entre 2016-2019, as eleições da extrema-direita em 2018 e o governo de Jair Bolsonaro entre 2019-2023.

As contradições dos governos petistas e suas expressões de crise explicitam e privilegiam uma hipótese para as classes médias brasileiras em geral, escrutinadas pelo marxismo. Não deixando de lado as classes sociais fundamentais e suas tendências no capitalismo pós-1990, é uma difícil tarefa crítica da relação do caráter dos protestos de rua com o governo.

A anticorrupção, o antipetismo e os pedidos de impeachment da presidenta Dilma Rousseff evidenciam um padrão nos complexos ideo-político das classes médias, especialmente após o ressurgimento do MBL (Movimento Brasil Livre) pelo MRL (Movimento Renovação Liberal) em 2014 e do VPR (Vem Pra Rua) em 2015.

 

Uma hipótese marxista para as classes médias na crise brasileira atual

Criticamente a definição das classes médias por faixas de renda vendidas em salões diplomáticos, para uma hipótese marxista contemporânea elas devem ser multiplamente determinadas e levar para sua fundação relações complexas e históricas. Levar em causa as imbricações e as desigualdades da divisão do trabalho e o ganho de autonomia frente o clássico conceito bipolar das classes sociais (CAVALCANTE, 2012).

Nas transformações econômicas e sua assimilação ideológica, a ideologia é importante para as classes médias brasileiras em geral (BOITO-JUNIOR, 2016). A crise ideológica no capitalismo em geral é instaurada quando as “forças produtivas” se desenvolvem constantemente enquanto as “relações sociais de produção e sua manifestação e justificativa ideológica” permanecem estáticas (IASI, 1999).

Só que é preciso entrar na disputa conceitual acerca delas sobretudo quando se tem o avanço de teorias “pós-capitalistas” ou das “novas classes médias” (NERI, 2011). Um cenário que reforça a crítica ao avanço desmedido da “desmaterialização” (ANTUNES, 2018). Portanto, para uma crítica de grande liga histórica no capitalismo contemporâneo, a classe importa e guarda uma unidade heterogênea. É importante, diante disso, um recorte com perspectiva critica a “desontologização do trabalho” no capitalismo (ANTUNES, 2018).

Tendo em vista essa perspectiva crítica, é levado em conta aqui as classes médias que são constituídas por determinações e relações complexas e históricas. Que envolvem o assalariamento superior (portanto, assalariadas); o trabalho intelectual supervalorizado (tecnoburocratas) e não-manual; a desigualdade racial anti-negro e os privilégios do branco; o acúmulo de títulos escolares e universitários; a vida nos espaços urbanos com infraestrutura; o acesso privilegiado ao Estado (com influência e “salário indireto”) e ao consumo no mercado; a posse de cargos, poderes e funções burguesas de administração da propriedade burguesa; e a especulação em pequenas atividades financeiras. Marcadores de classe que mais do que simples diferença e identidade, apresentam contradições e desigualdades de longa data histórica.

Tendo o urbano como seu principal espaço de reprodução social (OLIVEIRA, 2003; 2013), elas se apresentaram com muitas dessas características taxativas nos protestos de rua na guinada liberal-conservadora a partir do dia 19 das manifestações de Junho de 2013. Vestiram camisas verde-amarela e rasgaram qualquer sinalização vermelha, não só estetizadas pelo espírito dos megaeventos no Brasil, mas de um patriotismo vulgar e anti-político (CAVALCANTE e ARIAS, 2019). Nas manifestações contra e a favor o impeachment da Dilma entre 2013-2016(GALVÃO e TATAGIBA, 2019), entre a anticorrupção e a defesa do funcionalismo público. Em geral contra as contrarreformas ultraneoliberais de Michel Temer, que relativamente afetaramo valor, a estabilidade, a formalização e a autonomia dos seus cargos, empregos e títulos, mas a favor de muito dos projetosneoconservadores e contra o Estado parasitário, corrupto e populista (SAES, 2001; CAVALCANTE e ARIAS, 2019). E contribuíram com as eleições da extrema-direita e sua escalada neofascista pelo bolsonarismo em 2018 na figura de Jair Bolsonaro, a personificação caricatural do “homem médio” (CAVALCANTE e CHAGURI, 2019).

Anterior à crise brasileira que deteriora os indicadores econômicos e sociais, mas potencializada e descontinuada por ela, os protestos de rua já vinham acontecendo desde 2012. Do mesmo modo que não se encerram com o impeachment da Dilma Rousseff em agosto de 2016 (GALVÃO e TATAGIBA, 2019).

Segundo a base de dados de Galvão e Tatagiba (2019), 2012 registrou um aumento de 140% em relação a 2011, apontandoa elevação das insatisfações com o aviso de “reajuste” das tarifas de ônibus desde janeirode 2013. Em 2014 diminuem por conta da eleição presidencial, mas, demonstrando o financiamento e a militância das direitas nos protestos de rua, o VPR ainda levou cerca de 10 mil pessoas pouco antes das votações. Depois da diminuição, os protestos de rua voltam com a campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff a partir de 2015, não atingindo a marca de 2013 novamente. As classes médias, nisso, surgem mais dominantemente na guinada liberal-conservadora em 2013 e não saem de cena, sugerindo o estudo mais recortado nessas características.

Anterior a deterioração dos indicadores econômicos e sociais, as políticas dos governos petistas vinham desafiando os nexos de reprodução das classes médias e atentando seus potenciais ideopolíticos. Se na década de 1990 as classes médias apoiaram as eleições do Lula da Silva metalúrgico e da grande indústria frente a “liofilização organizacional” e o “enxugamento empresarial” com a crise do capitalismo nacional-desenvolvimentista (ANTUNES, 2003; ALVES, et al), a partir de 2003 as classes médias se relacionam com um PT transformado.

Desde a “crise do mensalão” a partir de 2005, o consequente surgimento do “Endireita Brasil” em 2006 e os protestos de rua do “Cansei” em 2007, a Lava Jato já estava sendo canalizada no fomento da anticorrupção pelas classes médias. Os membros da operação com seus altos salários, status e trabalho intelectual supervalorizado, detém autoridade e se inserem na burocracia estatal, tal como Sergio Moro, que se tornaria o “superministro da justiça” em 2018 pelo presidente Jair Bolsonaro. Mas, sobretudo, são especialmente membros formados no antipetismo, não correspondendo necessariamente aos interesses da burguesia, colocando o lavajatismo na disputa pelas classes médias (BOITO-JUNIOR, 2016; CAVALCANTE, 2018).

São movidas por complexos ideopolíticos da anti-corrupção, da meritocracia e da supervalorização do trabalho não-manual em meio ao governo de Dilma Rousseff (CAVALCANTE, et al). Não se trata apenas das classes médias que são contra as medidas nacional-desenvolvimentistas petistas, expondo suas características anti-igualitaristas históricas quanto aos benefícios ao proletariado, mas também das classes médias que são contra as medidas neoliberais, expondo sua necessidade de defender o funcionalismo público — à esquerda e à direita. Veja, vai muito além do ridículo político delas representado no oportunismo de grupos como o “Revoltados Online”, que surgem a partir de Junho de 2013

Uma das questões que se encontra em seu estudo em geral é até que ponto as classes médias reagem contra as políticas (no caso, petistas) de diminuição das desigualdades, demonstrando seu afastamento do proletariado e sua autonomia de classe frente a “desclassificação”? O medo da proletarização, tanto da “subida” do proletariado, quanto da “descida” ao proletariado, assim como, de igual maneira, a ambição de “subir à burguesia” (CARDOSO, 2020), as tornariam potencialmente reacionárias-conservadoras? E mais, permitem o avanço neofascista burguês? (POULANTZAS, 2019; BOITO-JUNIOR, 2019).

 

Natureza e contradições dos governos petistas

No capitalismo atual a relação das classes médias com a crise brasileira e as políticas petistas não se explica sem trazer o continuum neoliberal pós-1990, que força os governos petistas a desenvolverem estratégias e medidas táticas ímpares.

Depois de perder três eleições consecutivas, o PT se vê diante da crise do modelo neoliberal e assina a “Carta ao Povo” em 2002, dando lugar no Brasil ao debate político entre social-democracia e social-liberalismo europeu do pós-1989. No Cone Sul, Collor e FHC entre 1990 e 2002 legam no mainstream econômico uma década de discursos neoliberais e a hegemonia financeira a partir de reformas de Estado, uma nova direita em aparelhos privados sociais e a desregulamentação do trabalho de difícil contorno – e cheio de armadilhas. Forjou-se o mito do “plano Real” como um dos seus maiores feitos – seguindo os moldes do Euro. Só que o neoliberalismo conduzido pela aliança política no Brasil entre PSDB-PFL entra em crise, dando lugar ao resgate de outros projetos pelo PT (ALVES, et al).

Contudo, a natureza dos governos do PT ainda está em disputa, que adentra e vai além de dilemas. Não sem descontinuidades, existem teses de que seus governos entre 2003-2016 são essencialmente neoliberais, tendo como mito a avaliação da “posição do meio” típica da visão de “harmonismo de classe” desde Getúlio Vargas na particularidade brasileira. De modo que seu hibridismo entre neoliberalismo e neodesenvolvimentismo tem em síntese a sobredeterminação do receituário do Consenso de Washington, que sinaliza que o “pós-neoliberalismo” não é anti-capitalista (ALVES, et al). Mesmo com seus ganhos, acabam escoando grande parte da sua organização no câmbio flutuante, no superávit primário em cima das políticas de proteção ao trabalhador e na manipulação da taxa de juros para pagamento da “dívida pública” (ALVES, et al).

Esse desenvolvimentismo constitui um arcabouço triplo de programas de incentivo estatal a monopolização da economia, especialmente com os bancos públicos; programas de investimentos públicos em infra-estrutura; e programas estatais de transferência de renda visando a valorização do mercado interno de consumo. Aposta-se especialmente no círculo vicioso do consumo do pobre, que acaba não tendo um “planejamento de longo prazo” nos limites capitalistas (ALVES, et al).

Nisso, as contradições dos governos petistas entre 2003-2016 recrudescem nos governos Dilma Rousseff a partir de 2011que seguiu o fim da alta dos preços das commodities que favoreciam o Brasil, contraditoriamente após o auge de crescimento econômico (7,5%) em 2010. Tem a forte queda da lucratividade por causa dos longos efeitos da redistribuição da renda em favor do trabalho, do “ensaio desenvolvimentista” e a tentativa de reduzir a taxa de juros pelos bancos públicos contra os efeitos da crise, levando a múltiplos ataques contra o PT(MARQUETTI, HOFF e MIEBACH, 2016). Aqui, por exemplo, é enfraquecida a tese da demanda agregada que produziria o encasquetamento da “nova classe média”.

Mas, existem inflexões nas teses desse tipo. As características do “reformismo fraco”, com pacto conservador e pouco mobilizador em aliança a disposição estratégica e fisiológica de setores organizados da grande “burguesia interna” em torno do contexto do governo do PT pode mostrar que FHC e Lula apresentam grandes rupturas. Não é mero continuísmo neoliberal do agronegócio com o rentismo financeiro. O presidente Lula da Silva tem o desenvolvimento sob um modelo “liberal-desenvolvimentista” e de “dinâmica moderada e instável” (SINGER, 2012; BOITO-JUNIOR, 2018).

Dentro desse debate ainda, é enfraquecida a ideia da incompatibilidade entre o “núcleo de políticas neoliberais” com as “medidas de caráter desenvolvimentista”, no falso antagonismo entre “Estado” e “mercado” que dificultaria esse hibridismo (MORAIS e SAAD-FILHO, 2011). Há especialmente a estratégia da complementaridade entre os dois complexos, havendo competitividade internacional com incorporação de progresso técnico aliado a equidade social (MORAIS e SAAD-FILHO, 2011).

É possível dizer que a década de “conciliação política” fortaleceria o avanço da extrema-direita e sua escalada neofascista em detrimento do recuo da direita tradicional. Daria lugar a classes médias reacionárias em aliança com uma “frente burguesa anti-desenvolvimentista” e a polarização política em torno do eixo PT x anti-PT (GALVÃO e TATAGIBA, 2019), sinalizados com a queda de 27 pontos percentuais no IBOPE depois das manifestações de Junho de 2013.

Trata-se também das consequências lógicas do “centrão” acumuladas desde 1993, após o impeachment de Collor, como requisito de “governabilidade” e “blindagem parlamentar”. Fomentaria a mídia tradicional com pautas intermináveis de fantoches políticos e o círculo vicioso de beneficiamento da alta classe política no judiciário, legislativo e executivo. Provoca as contradições do “reformismo fraco”, que não ataca profundamente as desigualdades estruturais e leva a pressão dos movimentos sociais por radicalidade anti-capitalistas.

Contudo, disputando esse debate, surgem teses de que os governos petistas entre 2003-2016 não se resumem a esse continuísmo neoliberal, mas em um “transformismo”, criticando a “não contemporaneização” do socialismo. Os governos petistas apresentam um ciclo histórico, o ciclo da “Estratégia Democrática e Popular” posterior “Estratégia Nacional e Democrática” protagonizada pelo PCB no século XX. Portanto, essa estratégia em relação aos governos petistas não se esgota e não é rebaixada, mas é encerrada, já apontadas na sua criação suas contradições internas (MARTINS, PRADO, FIGUEIREDO e MOTTA, 2014). 

No resgate da revolução brasileira, entende-se a “correlação de forças” que possa comandar o Estado de dentro para promover cooptações de classe e programas anticapitalistas, antimonopolistas e antilatifundiários (MARTINS, PRADO, FIGUEIREDO e MOTTA, 2014). Ressalta-se a democracia como contraditória e o uso estratégico da sua noção: reúne forças populares, mesmo que na tática reformista; mas entende que é burguesa, tem hegemonia de classe e sua República tem interesse de classe – sendo um mito a neutralidade das instituições. Aliás, compreende a luta dentro das instituições pela hegemonia das classes trabalhadoras no alargamento da democracia e na noção de “Estado ampliado”.

Não deixa de levar em conta o inventário de uma longa contradição brasileira da sobredeterminação de uma estrutura agrária tradicional e o imperialismo, por um lado, e os vetores que apontam para o desenvolvimento de um capitalismo nacional, por outro, para a estratégia. Por exemplo, a indexação da agricultura à flutuação das bolsas internacionais de commodities favorece o agronegócio exportador e aumenta o custo do abastecimento alimentar interno, dependente da importação.

Nesse caso, é travada a contradição entre as políticas para o agronegócio e o mercado financeiro internacional (altos subsídios e liberação de legislação para desmatamento e agrotóxicos) apoiada pelas classes médias defensoras do câmbio desigual, e o Bolsa Família ao proletariado, que tem alta no preço dos alimentos no mercado interno e pela agricultura familiar, alavancada consequentemente pelo MST.

 

Classes médias, ideologia e protestos de rua na crise brasileira

É justamente em todo o debate sobre a natureza e desenvolvimento dos governos petistas entre 2003-2016 que surge grande parte da hipótese de que as classes médias foram aos protestos de rua entre 2013-2016 por causa das suas contradições – que não se resume a uma questão de forma de governo.

As políticas de acesso à Universidade aumentaram a concorrência entre os diplomados no mercado e nos concursos públicos, que possibilitou contraditoriamente o aumento da formação e frustrou com a falta de formalização de empregos. Programas como o “Bolsa Família” acirraram a luta pela destinação dos impostos do “cidadão pagador de impostos”. Programas como “Minha Casa, Minha Vida” desvirtuaram o acesso privilegiado ao Fundo Público pelas classes médias no âmbito da infraestrutura e do “sonho da casa própria”. A aprovação de legislações para os serviços pessoais em geral afetou as hierarquias sociais e os “salários indiretos”, caricaturadas entre “patroas” e “empregadas domésticas”.

A valorização do salário mínimo e a criação de políticas de acesso ao crédito inseriram as classes proletárias em espaços tidos “como de direito” das classes médias. Aconteceram a escalada no mercado de consumo, nas universidades e na disputa por melhores empregos, explicitando o “medo do ascenso e descenso social” ao coexistir em suposta horizontalidade com o proletariado. O caráter contraditório do acesso ao consumo levou aos “rolezinhos” nos shoppings, “espaços de direito” das classes médias. Potencializou a identidade política e diversifica o proletariado ao mesmo tempo que demonstrou os limites da inclusão, ao serem expulsos dos espaços pelas classes médias (CAVALCANTE, et al; BOITO-JUNIOR, et al).

A ideologia da anticorrupção é estabelecida fortemente nos projetos políticos, historicamente contra Getúlio, contra Jango, e até mesmo contra JK e Collor, e contemporaneamente contra Lula e Dilma. É uma criação da própria burguesia que mantém uma relação ambivalente: ao mesmo tempo que lança a ideologia da anticorrupção como estratégia de hegemonia de classe, a teme se radicalizar contra si própria (BOITO-JUNIOR, 2016).

Nos complexos sociais do trabalho manual e não-manual, as classes médias defendem uma educação fora do âmbito burguês explorador e a partir de uma oposição com o trabalhador manual. Usa do “prestigio do trabalho intelectual” para sua superioridade econômica e social em relação ao proletariado. São defensoras do “Mito da Escola Única” (SAES, et al), que constrói o mito de uma educação que coexistem diferentes classes e independentes das suas condições objetivas, mas que só ascendem socialmente os mais capazes e detentores de dons, perpassado pela ideologia da meritocracia. Nessa defesa, todos tem acesso à educação igual, mas apenas alguns se sobressaem, vencem e são escolhidos. O que explica muitas vezes serem favoráveis a sistemas de educação e saúde públicos e gratuitos (CAVALCANTE, 2015).

Desse modo, como não têm número para vencer as eleições, tal como nas eleições Dilma x Aécio, contribuíram no atropelamento dos processos democráticos frente ao proletariado. O conchavo Aécio-Cunha e as “pedaladas fiscais” foram o mote perfeito, especialmente por causa do uso de bancos públicos para a diminuição da taxa de juros, por viabilizar a criminalização das políticas sociais por um Estado interventor que se endivida para os pobres e por abrir a disputa no Congresso.

Com as contrarreformas ultraneoliberais do vampiro temerista, arquitetadas no “Ponte para o Futuro” (PMDB) pouco antes do impeachment, as classes médias meritocráticas e da anticorrupção são representadas pela “PEC do Teto de Gastos” mesmo diante de toda a flagrante contraditoriedade com suas bases de reprodução econômica. A PEC contribui para a separação do “Estado”, que gasta muito para corromper o pobre, com o “Mercado”, burlado pela transgressão da concorrência. E também não altera a obrigação do Estado de pagar suas “dividas”, decorrentes do seu uso com os pobres. 

Não só isso, no universo ideológico das classes médias a PEC não toca nas suas pequenas atividades financeiras e protege seus impostos dos gastos com os pobres, “não-merecedores”. Para a sua “subjetividade empreendedora”, possibilitada por sua autonomia na empresa flexível, a contrarreforma trabalhista proporciona a ilusão da “ausência de gastos trabalhistas”, além de contribuir contra o fortalecimento dos sindicatos, que fazem o uso indevido dos seus impostos e influenciam nas “eleições neutras”.

Mas, as classes médias que são favorecidas por um funcionalismo forte são frontalmente atacadas pela PEC e também pela “Lei da Terceirização”. Acontece a precarização e a paralização de criação de cargos e empregos nos serviços públicos, desestabilizando as suas vantagens em concursos públicos e universidades e intensificando a concorrência com o proletariado. As classes médias compõem com a classe trabalhadora em geral os protestos de rua a partir de 17 de maio 2016 no “Fora, Temer” e demonstram a tática dos “panelaços”.

Toda a emersão da ideologia da anticorrupção pelas classes médias se reproduziria fortemente contra Michel Temer entre 2016-2019, expressos com sua prisão pelo lavajatismo. Ele foi um presidente interino impopular também entre classes médias, mesmo com seus esforços de se aproximar do movimento “Desocupa!” do MBL contra os secundaristas nas pautas neoconservadoras. A luta contra os secundaristas mobiliza especialmente os ideais do “Mito da Escola Única” das classes médias em torno do movimento “escola sem partido”.

O MBL e o VPR, movimentos que representam complexos ideológicos das classes médias junto com o lavajatismo, mesmo que relativamente desalinhados chamariam protestos de rua em dezembro de 2016. Reivindicavam “10 medidas” que não demonstravam as insatisfações generalizadas de frente para as contrarreformas temeristas. Mas, não aleatoriamente, a anticorrupção seletiva e moralizada ainda acaba sendo a ideologia dominante, com a pauta das “dez medidas contra a corrupção”, dentre outros projetos neoconservadores.

 

Classes médias, neofascismo e Jair Bolsonaro

O “ensaio neodesenvolvimentista” de Dilma Rousseff aprofundou a queda da taxa de lucro nos ganhos com o trabalho. Potencializado a partir do dia 19 de junho de 2013, o reacionarismo-conservador burguês deu lugar ao ultraneoliberalismo de Michel Temer e ao neofascismo de Jair Bolsonaro e o bolsonarismo.

Embora Jair Bolsonaro tenha sido eleito por diversos trabalhadores em 2018, o “núcleo duro” de seus apoiadores se localizou majoritariamente em homens de classe média, com cinco salários mínimos e com diploma de nível superior (CAVALCANTE, 2020). Nesse processo é que surge a questão se as classes médias são aquelas que “chocam o ovo da serpente fascista” desde as manifestações de Junho de 2013 (CAVALCANTE, et al).

Só que, apesar de chocarem ou não o ovo da serpente, as classes médias estariam seguindo um caminho neofascista do chamado bolsonarismo. Bolsonaro mobilizou seu apoio entre as classes médias e governou segundo os interesses do grande capital. O fascismo encontrou apoio e espaço para crescer com as classes médias no Brasil a partir da capacidade de movimento de massa pelo bolsonarismo, que entende que a única solução é a violência sistemática contra a tentativa do proletariado de ocupar seus espaços. Sua necessidade de atentar contra o regime democrático e a ruptura institucional fez Bolsonaro mobilizar de maneira massiva até mesmo na pandemia (CAVALCANTE, 2020; 2021; BOITO-JUNIOR, et al).

Bolsonaro articulou “conservadorismo moral de base religiosa cristã” e “patriotismo entreguista” para a viabilização eleitoral de um programa econômico neoliberal radical em 2018, no seu lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”(CAVALCANTE, 2020). Ele é sincreticamente simbolizado pela alcunha “mito”, uma expressão messiânica, salvacionista, anti-sistema e patriótica de uma cultura política do “suspiro do oprimido”.

A representação e a manipulação ideológica do “partido Brasil”, como unidade totalitária indivisível, estetizada pela camisa da seleção verde-amarela, caracterizou no bolsonarismo a pauta do “sem partido” e do anti-Estado contra a divisão de classes criada pela PT (CAVALCANTE, 2020).

Jair Bolsonaro, diferente de Lula, Dilma e Temer, contornaria relativamente a ideologia da anticorrupção com os discursos anti-sistema e a redução em miniatura do Estado a um ambiente familiar e privado – já que não tinha experiência nas ruas. O “homem médio” contra o sistema.

A meritocracia em Paulo Guedes e a moralidade do Exército Brasileiro e de Sergio Moro agiriam em muitos fronts. Antes da crise Bolsonaro-Moro, Bolsonaro canaliza a anticorrupção com “verniz racional-legal” do lavajatismo que se estendia também ao procurador Deltan Dellagnol, contra a politização do Estado que deve ser apolítico e técnico – isto é, anti-político. As táticas pelas redes sociais e de canais diretos com seu público ao estilo Steve Bannon, aliado a ataques a grande mídia tradicional, colaborariam com seu imaginário anti-sistema.

Na extrema-direita as classes médias encontram discursos de um passado de ordem e nacionalismo populista. São remetidas ideologicamente a seu passado de estabilidade, segurança e defesa da propriedade na grande empresa fordista presente no neoconservadorismo, que responsabilidade a crise moral e o Walfare State pelo avanço popular. Na culpabilização do outro a extrema direita se utiliza da insegurança e do rancor das classes médias e projeta seu ódio naqueles que ascenderam a um lugar social e político que lhes era até então inacessível.

 

Considerações finais

Como está sendo defendido, a discussão não é sobre as classes médias de conjunturas ou de formas de governo, tal como as “novas classes médias”. Trata-se das classes médias de longa duração histórica e que foram aos protestos de rua particularmente nas contradições do PT. Elas defenderão suas bases de reprodução sócio-históricas, que se preservam fortes e consistentes no terceiro governo de Lula da Silva, tal como a anticorrupção, a meritocracia, o trabalho intelectual supervalorizado, o assalariamento superior e as regiões urbanas com infraestrutura.

Nesse terceiro governo as contradições petistas que envolvem as classes médias ainda estão armadas. Jair Bolsonaro e o bolsonarismo neofascista ainda conseguiu mobilizar o homem, branco, de mais de 5 salários e com ensino superior no acirramento das eleições de 2022.

*Glauber Franco é mestrando em filosofia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Referências


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