Por Ricardo Antunes*
A brutalidade da pandemia, a “gripezinha” do mito (ou mico?), pegou o país econômica e socialmente destroçado.
O herói Crapulinski, nosso exemplo de arquétipo representante da “ralé da sociedade burguesa”, parece que começou a se desmilinguir por derrelição. É verdade que faz tempo que esse cenário vem se desenhando. Devastação na economia, explosão do desemprego, ultraprecarização do trabalho, destruição ambiental, proliferação das queimadas e da extração mineral, massacres nas comunidades indígenas, xenofobia, homofobia, racismo, tudo isso e muito mais sempre esteve presente nesta variante achincalhada de Trumpismo colonial. Seria muito difícil que seu derretimento, em algum momento, não viesse começar a se acelerar.
O culto da ignorância, o desprezo pela ciência, a privatização da res publica, com a consequente destruição da saúde, da educação e da previdência, tudo isso fortemente respaldado pelo ideário e pela pragmática demencial de amplos setores do empresariado, que só queriam ver a força de trabalho ralando para lhes dar mais produção e lhes garantir a “boa vida”, que tão enfaticamente o nosso Crapulinski sempre achava um jeito de defender. Não sem acrescentar que os beneficiários seriam os “mais pobres”.
E veio, então, o inesperado. A brutalidade da pandemia, a “gripezinha” do mito (ou mico?), pegou o país econômica e socialmente destroçado. Se não bastasse a crise econômica esgarçando ainda mais o tecido social brasileiro, ampliando a corrosão e devastação do trabalho, a pandemia letal do coronavirus encontrou aqui seu cenário ideal: na presidência, um indigente e ignóbil, praticante fidelíssimo do culto da ignorância, do “santo nome em vão”, sempre em linha de depravação, algo que não encontra paralelo em quase nenhuma parte do mundo.
A primeira crise veio com o Ministro da Saúde, Luiz H. Mandetta. Desde logo, é preciso dizer que se trata de um médico neoliberal que desde o início imaginou fazer uma gestão negocial e privatista na saúde. Com a eclosão do coronavirus, entretanto, tomou um banho de realidade, tendo sido sustentado e enquadrado pela dignidade do que se conseguiu a muito custo e trabalho se preservar no S.U.S.
A recente deposição de Mandetta, que poderia ser o mote para a explosão do Fora Bolsonaro!, parece ter inflado o ego do Crapulinski. Imaginando-se fortalecido, depois do ato dos “boçais-do-bolsonaro” no dia 19 de abril, chegou a vez de começar a arquitetar as demissões de seus ministros considerados mais fortes, o da Justiça em primeiro lugar, que lhe fazia uma incomoda sombra eleitoral junto ao eleitorado da extrema direita e da direita.
Para acobertar as práticas clandestinas de seus parceiros nas milícias e nas falanges, que defendem a ditadura militar, a tortura, a brutalidade, o vilipêndio e o abjeto, e também para preservar a sua matilha familiar, o presidente-de-tipo-lumpen jogou a cartada de risco mais forte até o presente. Emparedou ninguém menos que Sergio Moro, o juiz que tinha um faro infalível somente em direção ao PT e seus partidos aliados durante seus governos. Algo que já vinha sendo urdido desde os fins do ano passado e que, depois da demissão de Mandetta, parecia encontrar seu momento oportuno.
Parece que o tiro saiu pela culatra. Moro saiu soltando petardos que municiam mais de um impeachment, além de ajudar a esfacelar ainda mais a base de apoio de Bolsonaro na extrema direita. Para não recordar as tantas afrontas anteriores, este episódio que resultou na demissão de Moro atesta: primeiro, que a motivação foi adulterada (não houve o “a pedido” formal do atual Diretor-Geral da Polícia Federal); segundo, a assinatura digital de Moro foi adicionada sem a sua concordância; terceiro, e que tem a potência de bomba muito explosiva, como se deduz das palavras do ex-Ministro: “O presidente me disse mais de uma vez que queria ter uma pessoa da confiança pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência. Seja diretor, seja superintendente. E não é o papel da polícia federal prestar esse tipo de informação” (veja aqui).
Assim, a demissão de Moro parece endereçar o governo Bolsonaro em rota cada vez mais próxima ao abismo. Será difícil para a Câmara (com seu pacato líder Rodrigo Maia) permanecer obstaculizando esse clamor crescente na sociedade (com exceção do que resta das falanges fascistas) e que ganha nova impulsão com os inúmeros desdobramentos políticos e institucionais que já começaram após a explosiva denúncia do ex-juíz da Lava Jato. Imaginar que a intervenção na cúpula da Polícia Federal era por causa do atentado sofrido pelo ex-capitão ainda candidato, ou ainda pelas perseguições ao seu filho “04”, conforme as próprias palavras de Bolsonaro em sua resposta a Moro, se assemelha mais a uma história de carochinha….
Qual será, então, a posição dos ministros militares, que imaginavam poder controlar o intempestivo? A primeira reação destes ministros de farda foi se postar ao lado de Bolsonaro, em sua defesa aos ataques de Moro. Irão, então, continuar participando desse governo das cavernas e das trevas?
E como se comportará a “tutela militar” que até o presente vem respaldando a autocracia de Bolsonaro?
E, por fim, as oposições? O que mais vão esperar, para fazer deslanchar o já tardio impeachment de Bolsonaro, que está levando o país para uma monumental cova coletiva?
*Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia no IFCH/UNICAMP. Autor, entre outros livros, de Politica della Caverna. La Controrivoluzione di Bolsonaro (Castelvecchi, Itália, 2019).