Por WAGNER ROMÃO, CARLA BEZERRA & MAIRA RODRIGUES*
Bolsonaro segue em seus objetivos anti-democráticos de reduzir ao máximo os espaços de debate, participação e controle da sociedade sobre as políticas públicas
No dia 11 de abril de 2019, pelo Decreto 9759/2019, Jair Bolsonaro promoveu a extinção dos órgãos colegiados (conselhos, comitês e outros mecanismos) que possibilitam a participação da sociedade civil na administração pública federal. O objetivo era claro: mostrar à sua base política que não pouparia esforços em acabar com todos os “ativismos” – expressão que utiliza desde sua campanha eleitoral em 2018 para designar as manifestações públicas e os movimentos sociais que divergem de sua estreita visão de mundo – que pudessem incomodá-lo no exercício do poder central da República.
O Decreto não é um capítulo menor da estratégia bolsonarista de destruição do Estado e de imposição de um modo autoritário de gestão pública. Os conselhos nacionais são colegiados que promovem a gestão democrática das políticas públicas, prevista na Constituição Federal de 1988. A maioria deles, no entanto, se ampara em uma legislação frágil, baseada em decretos do Executivo e não em leis aprovadas no Parlamento. Algumas das exceções são o Conselho Nacional de Saúde (Lei nº 8142/1990), o Conselho Nacional de Assistência Social (Lei nº 8742/1993), o Conselho Nacional de Educação (Lei nº 9131/1995) e o Conselho Nacional dos Direitos Humanos, criado por João Goulart quinze dias antes do golpe de 1964 e que foi reformulado pela Lei 12.986/2014. Estes conselhos sofreram alguns ataques ao longo destes dois anos, como pressões e mudanças na representação governamental, mas não tiveram sua legislação alterada.
O Decreto gerou uma ampla mobilização da sociedade civil e de partidos políticos de oposição ao governo Bolsonaro. Esse processo foi capaz de limitar, em parte, a capacidade destrutiva de tais medidas. Já em 22 de abril daquele ano, o Partido dos Trabalhadores entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6121 junto ao Supremo Tribunal Federal com vistas à derrubada do Decreto. O STF deferiu parcialmente a medida cautelar, afastando a possibilidade de que o chefe do Executivo possa extinguir colegiado cuja existência encontre menção em lei, o que era previsto no parágrafo único de seu Art. 1º.
Como a maioria dos conselhos com participação da sociedade civil são mencionados em leis sobre a estrutura de governo, Bolsonaro teve que alterar sua estratégia inicial de extinção, para a estratégia de esvaziamento do Conselhos em termos de funções ou em termos de representatividade social. Assim, o governo passou a editar decretos específicos para alterar a regulamentação de cada um dos mais de 90 conselhos com participação social. Essa série de novas regulamentações acarretou drásticas mudanças que interromperam mandatos eletivos e, em muitos casos, praticamente tornam nula a função do Conselho, mantendo apenas a sua existência formal.
Conselhos fundamentais para a formulação e monitoramento de políticas públicas tiveram suas funções originais alteradas e a representação da sociedade civil diminuída ou anulada. No caso do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CNPD), o Decreto 9926/2019 excluiu toda a representação da sociedade civil. Só restaram membros do governo e um representante dos conselhos estaduais do setor.
Outro caso dramático é o Conselho Nacional de Combate a Discriminação e e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), que manteve apenas a primeira sigla e teve o termo LGBT excluído do seu nome e das suas atribuições, que passaram a se referir genericamente a “combate a discriminação”. Além desse apagamento de todo um segmento da população, houve uma drástica redução de quinze membros da sociedade civil, para apenas três. Embora as entidades indicadas para essas vagas remanescentes ainda sejam ligadas a organizações que atuam no tema da diversidade sexual, há uma significativa perda de poder, legitimidade e representatividade política.
Com essa nova estratégia, que envolve um trabalho minucioso não apenas de novos decretos, mas de alterações infralegais, entre portarias, resoluções e regimentos, Bolsonaro conseguiu afetar o funcionamento até mesmo de conselhos criados há décadas. .O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), regulado originalmente pelo Decreto 99.274/1990 teve poucas modificações em sua composição ao longo de quase 30 anos de existência. Mas, com o Decreto 9806/2019, viu sua composição reduzida de 96 para 23 representantes, sendo que destes apenas quatro representam a sociedade civil e são definidas por sorteio. Trata-se não apenas de redução da representação da sociedade civil, mas também de uma forte retração da própria capacidade do Estado em produzir ações e viabilizar processos deliberativos internos, algo absolutamente coerente com a conduta do próprio ministro do Meio Ambiente.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), criado pela Lei 8.242/1991, é outro caso de conselho com larga trajetória de atuação que foi afetado. O CONANDA é uma peça chave do sistema de proteção instituído pelo ECA, responsável por sua articulação e financiamento por meio da gestão de um Fundo Nacional. Porém, sua composição estava prevista somente em Decreto, o que levou o governo a reduzir a composição de 28 para 18 membros, dentre outras limitações ao seu funcionamento, que o descaracterizam.
Essa situação também foi levada ao Supremo Tribunal Federal mais uma vez, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (APDF) 622. Nela a Corte proferiu sentença no sentido de reconhecer que a destituição de conselheiros e a redução de membros da forma de forma não motivada ferem os princípios constitucionais da igualdade e da participação popular direta, restabelecendo o mandato dos antigos conselheiros até o seu termo final e outras garantias de autonomia da representação da sociedade civil.
Esses casos oferecem um panorama de como Bolsonaro segue em seus objetivos anti-democráticos de reduzir ao máximo os espaços de debate, participação e controle da sociedade sobre as políticas públicas. Embora não tenha logrado seu objetivo inicial de forma direta em face das resistências sociais e institucionais, ele prosseguiu trabalhando no limite da legalidade, alterando minúcias de regulamentos, mesmo em casos consolidados há décadas. Tais medidas, além de seu nítido ataque à princípios democráticos, acabam também por afetar a capacidade do estado de produzir políticas públicas. Não por acaso, não apenas os conselhos mencionados acima foram afetados e enfraquecidos, mas também as políticas públicas com as quais se relacionam, como meio ambiente e direitos LGBT.
Nesta semana de 11 a 18 de abril, cerca de 300 entidades da sociedade civil realizarão a Semana de Descomemoração dos dois anos do Decreto 9759/2019, com audiências públicas, lives e atos em todo o Brasil. A proposta é fortalecer a luta pelo protagonismo da sociedade civil na formulação, monitoramento e controle social das políticas públicas e contra o Decreto. Também de chamar atenção à sociedade e aos agentes políticos para a gravidade do que vêm acontecendo na adminstração pública federal, e ao STF para que proceda ao julgamento final da ADI 6121 e da APDF 622 com o máximo de celeridade. O Manifesto-Ação da rede de entidades pode ser lido no link https://bityli.com/descomemora9759.
*Wagner Romão é professor de ciência política na Unicamp.
*Carla Bezerra é doutora em ciência política pela USP.
*Maira Rodrigues é professora visitante na UFABC.