Bolsonaro sangra

Imagem: Daria Sanikova
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Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

Bolsonaro não deveria ter sequer existido na política brasileira, quiçá ter se elegido presidente da república

O Brasil está à venda, pelo menos formalmente, desde a famosa reunião “vazada” em abril/2020, no Palácio do Planalto, com todos os ministros da época, onde o famigerado agora ex-ministro do meio-ambiente, o Sr. Ricardo Salles, conclamou a todos para passar a “boiada”, enquanto o mundo só falava da pandemia. Obviamente, referia-se o senhor ex-ministro do meio-ambiente ao projeto neoliberal e neofascista do governo Bolsonaro de promover todas as ações visando a destruição do país e, por conseguinte, sua venda fatiada, a depender das melhores ofertas para cada pasta. De lá pra cá, para qualquer mineral que pensa um pouco, como diz Mino Carta, essa rotina já virou senso comum. Contudo, por pior que pareça o cenário de futuro para esse país tropical sempre desconectado com o seu tempo histórico, rasgos de luz se fazem notar e sagram o governo Bolsonaro.

De fato, é bem possível que o mais recente episódio do “vacinagate”, talvez o maior esquema de corrupção já descoberto em solo nacional, fruto das investigações da CPI da pandemia pelo Senado Federal, deixe os oligarcas do “centrão” sem opção a curto prazo para defender o atual governo. Defenestrações no governo já se fazem presente. O próprio líder do governo, Deputado Ricardo Barros, citado pelos irmãos Miranda, só está ainda nessa condição pelo medo do governo de se inviabilizar politicamente de maneira tão repentina. Mas o superior hierárquico do servidor Lupis Ricardo Miranda foi exonerado, bem como a encarregada do PNI – Programa Nacional de Imunização – Francieli Fatinato pediu demissão.

Para o cidadão que acompanha minimamente os acontecimentos políticos do país, especialmente após a redemocratização, a trajetória desse atual imbróglio do governo bolsonarista levaria, da mesma forma que os Governos Collor e Dilma, ainda que esses dois tenham tido a base das denúncias completamente distintas, ao inevitável processo de “impeachment”. Todavia, nessas linhas que seguem, tentarei esclarecer que o dito popular “calma, que o andor é de barro” é mais verdadeiro do que nunca.

Nesse sentido, o primeiro aspecto a considerar é o próprio governo Bolsonaro. Coalhado de militares por todos os níveis do governo, a própria ex-presidenta Dilma Rousseff reconheceu que não será fácil tirar essa multidão de fardados exercendo cargos civis e devolvê-los para a caserna. A virulenta infiltração de militares pelas vias respiratórias do Estado brasileiro está em sepse, mas não será qualquer antibiótico que a fará refluir. Todos os que já conviveram com algum tipo de infecção grave sabe que, por mais certeiro que for o remédio, a dose precisa estar bem administrada. Portanto, é preciso muita calma nessa hora. Um passo em falso, seja nas crescentes manifestações de rua, seja nas pressões já majoritárias das redes sociais, ou mesmo nas articulações políticas internas dentro dos outros poderes da República, e tudo pode virar um caos. Aliás, não por acaso, o governo Bolsonaro anseia por isso.

O segundo aspecto a considerar é o próprio momento pandêmico. Por mais que os movimentos sociais de rua estejam se avolumando, como era de se esperar, pelo completo descarrilhamento ético-moral desse governo, a saúde do povo brasileiro ainda precisa estar em primeiro lugar. Sem dúvida, junto com as manifestações, é preciso o incremento da consciência coletiva a respeito da proteção individual contra a COVID-19, além da capacidade dos líderes desses chamamentos às ruas em disponibilizar os produtos básicos de higiene. Mesmo que o impedimento do presidente seja uma causa mais que justa, ainda que difícil, já morreu gente inocente demais nesse país.

O terceiro motivo para ir com calma com esse andor é o cenário econômico do ponto de vista do capital. Bem ou mal, apesar de rateando nas suas promessas neoliberais, o ministro da economia Paulo Guedes tem conseguido feitos memoráveis para a elite globalizada que navega pelos caminhos virtuais do nosso tão singular paraíso fiscal. Aqui, diferentemente do que existe mundo afora, lava-se menos branco. A lavanderia fiscal no Brasil é, e sempre foi, feita deixando rastros de sangue, suor e lágrimas. Como o desmonte sucessivo das proteções trabalhistas nos últimos anos; a destruição ambiental causada nesses últimos 2,5 anos de governo Bolsonaro, talvez como nunca se viu em tão pouco tempo; o retorno da miséria mais execrável desde o impeachment de Dilma, ao sabor dos recordes sucessivos nos lucros dos bancos; o genocídio praticado como política de governo especialmente para as classes menos favorecidas, ainda que agora tenha aparecido a ponta do iceberg do real motivo para tal monstruosidade; e por aí vai.

O último aspecto que precisamos considerar, não estranhe leitor, é o aspecto cultural. Não vou ficar aqui relembrando a academia com Adorno, Habermas, Horkheimer etc., para não entediar a quem não tem obrigação de conhecê-los. É evidente que a cultura influencia as massas e estas revidam a influência na cultura. Melhor será, nesse momento, pegar o aviso do ministro do STF Gilmar Mendes, o qual disse recentemente que estamos banalizando o recurso legal do “impeachment”. Se ele estiver certo, cabe aqui duas reflexões: a primeira é saber que essa banalização agrada a frações de classes interessadas em esvaziar a narrativa dos movimentos populares; a segunda reflexão é compreender que se o “impeachment” virou moda no país, isso é péssimo para a nossa saúde política.

Gilmar Mendes é um juiz tarimbado, foi Advogado-Geral da União no governo de FHC e, com certeza, viu boa parte do século XX passar por seus olhos como profundo conhecedor do direito constitucional. Ele não dá ponto sem nó. Se faz esse alerta, a despeito de ignorarmos suas intenções, é melhor ouvi-lo. Obviamente, mais do que ninguém, sabe o referido Ministro que a queda de Collor de Mello teve como “start” inicial as falcatruas pessoais denunciadas pelo próprio irmão dele, o Sr. Pedro Collor de Mello. Como também sabe que o motivo inicialmente alegado para derrubar Dilma Rousseff foi um conjunto de “pedaladas fiscais” que, ao cabo, por força de um legislativo anacrônico e disfuncional, todos os presidentes acabam precisando fazer inúmeras vezes. O próprio governo Bolsonaro já incorreu na mesma ilegalidade várias vezes ao longo desses últimos anos.

Por conseguinte, o alerta emitido por Gilmar Mendes deve ser visto por um outro prisma, a saber, o do espetáculo. E ninguém melhor do que Guy Debord para clarear nosso entendimento sobre esse assunto. Antes, é bom frisar que não estou dizendo que Gilmar Mendes fez o alerta através do arcabouço intelectual de Debord. Apenas esclareço que a frase de Gilmar Mendes pode ser melhor compreendida se tomarmos como referência esse pensador marxista francês. Assim, faço votos que as próximas manifestações de rua contra esse governo de clara inclinação fascista, a começar por este sábado, dia 03/07/2021, seja um paradigma na mudança de entendimento sobre os reais motivos dos atuais protestos.

Realmente, a junção de atores tão díspares como o Movimento Brasil Livre – MBL – que fez parte do grupo original de apoio ao atual presidente e o PSOL de Guilherme Boulos, para não mencionar os já tradicionais partidos como PT, PSDB, etc., se por um lado agiganta a pressão em torno do “impeachment” do presidente, por outro acende a luz amarela da falta de coerência política desse país, já tantas vezes decantada. Não podemos banalizar um instrumento legal como esse sob as luzes do mero espetáculo. Pois, como disse DEBORD (1997): “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação”.

É evidente que Bolsonaro não deveria ter sequer existido na política brasileira, quiçá ter se elegido presidente da república. Por outro lado, historiadores como Eric Hobsbawn sabem que personagens como ele não aparecem do nada, como fantasmas prontos para incorporarem-se na vida de outras pessoas. As condições materiais da sociedade, interna e externamente, propiciam e justificam tanto a elevação de líderes de todos os naipes políticos, quanto os apoios oferecidos a eles, de acordo com os interesses dominantes desses momentos históricos. Nesse sentido, comentando sobre os aspectos que deixaram o que chamou de “Breve Século XX” no seu final qualitativamente diferente, HOBSBAWN (1995) esclarece: “A terceira transformação, em certos aspectos a mais perturbadora, é a desintegração de velhos padrões de relacionamento social humano, e com ela, aliás, a quebra dos elos entre gerações, quer dizer, entre passado e presente”.

Se o processo de “impeachment” é essencialmente político, e de fato é (infelizmente nos últimos 30 anos estamos indo em direção ao terceiro pleito), talvez a consequência menos visualizada seja a da transformação do nosso sistema de governo, legalmente presidencialista, para o subterrâneo do parlamentarismo não oficial. Em si, os dois sistemas de governos são plenos de direitos desde que um deles esteja em vigor pelas leis do país. Mas estamos, no frigir dos ovos, aumentando o poder do que não é autorizado pela nossa constituição, o parlamentarismo, em detrimento do outro que vigora na nossa carta magna, o presidencialismo. Ou seja, estamos invertendo nosso sistema de governo, pelo menos a cada 10 anos nas últimas 3 décadas, sem o respaldo constitucional, incentivados pelo espetáculo das disputas de pura imagem, tão propício ao capital, pois este se totaliza na relação entre as pessoas, mediada pelas imagens, nos termos de Debord.

Por ora, fica o desejo de que esse novo capítulo na história do Brasil seja mais uma onda avassaladora nos moldes das Diretas-Já de 1984, fruto do verdadeiro anseio por mais cidadania, do que o espetáculo que inverteu a realidade em 2013 para se tornar efetivamente um produto das forças produtivas dominantes que levaram esse país à beira do precipício. A forma-mercadoria das manifestações de rua não pode suplantar, por si só, a sobrevivência ampliada dos indivíduos fragmentados pela alienação do “humanismo da mercadoria”, segundo Debord. Em outras palavras, não basta produzir imagens monumentais de milhares de consumidores ávidos pela derrubada de mais um presidente – ainda que este pleito atual seja o mais urgente de todos – que servem apenas de deleite para os veículos de comunicação preencherem suas grades de horário.

Dessa vez, para que nunca passemos pela tragédia de algo concreto como o nacional-socialismo hitleriano, torço para que as vozes que agora se levantam em nome da injustiça social, em todas as suas facetas, reverberem definitivamente nas eleições de 2022, promovendo o ajuste de contas entre a política do espetáculo e a verdadeira política entre os comuns. A democracia agradecerá.

*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania na Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

Referência


DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro. Contraponto 1997.

HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: O breve século XX 1914-1991. São Paulo. Companhia das Letras. 1995.

 

 

 

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