Por OMAR G. ENCARNACIÓN*
Não há uma trajetória única para a legalização do aborto para os países latino-americanos
No momento em que os norte-americanos contemplam um futuro possível sem o caso Roe v. Wade, vale a pena olhar de perto para a recente revolução dos direitos ao aborto na América Latina. Após séculos vivendo sob algumas das mais draconianas leis do aborto imagináveis – como negar às vítimas de estupro o direito de interromper a gravidez e enviar mulheres para a prisão sob a suspeita de que fizeram aborto em vez de aborto espontâneo –, milhões de mulheres na América Latina têm agora acesso ao aborto legal em países como Argentina, Colômbia e México. Uma transformação tão radical no panorama do aborto na América Latina leva as pessoas a pensar o que até há pouco tempo era impensável: mulheres do Texas e de outros estados ao longo da fronteira EUA-México viajarão ao México para fazer um aborto legal, em vez do contrário.
Não há uma trajetória única para a legalização do aborto para os países latino-americanos. Na Argentina, que pavimentou o caminho, o Congresso Nacional deliberou sobre uma importante lei do aborto em dezembro de 2020. Ela permite às mulheres interromper uma gravidez durante as primeiras 14 semanas. No momento em que a lei foi adotada, o aborto na América Latina era legal apenas no “mini-estado” da Cidade do México (desde 2007) e em pequenos países com histórias peculiares. Cuba legalizou a prática em 1965, na sequência da Revolução Cubana, e o Uruguai, um país com um longo legado de liberalismo social, o fez em 2012.
Logo após a lei argentina ter sido aprovada, a mudança no México e na Colômbia veio através dos tribunais. No México, a Suprema Corte descriminalizou o aborto em nível nacional em 2021. A Corte Constitucional da Colômbia votou a favor do aborto em fevereiro deste ano. Em seguida, o Chile, um famoso país conservador (só legalizou o divórcio em 2004), onde uma nova constituição está prevista para legalizar o aborto no final deste ano.
O que permitiu esta mudança sísmica no aborto na América Latina ainda está sendo debatido. Mas destacam-se vários fatores. Para começar, o aborto legalizado faz parte de uma onda de mudança social que está varrendo a região. Enquanto a maioria dos americanos considera a América Latina um perpétuo fim de mundo, a realidade não poderia ser mais diferente. Vários países latino-americanos legalizaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo à frente dos Estados Unidos, incluindo a Argentina, em 2010, cinco anos antes da Suprema Corte dos EUA ter decidido a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
A Argentina também promulgou a lei de identidade de gênero mais progressista do mundo, em 2011. Permite a qualquer pessoa mudar o sexo atribuído no nascimento sem ser submetida a cirurgia ou a um diagnóstico de disforia de gênero. Em 2013, o Uruguai tornou-se o primeiro país do mundo a legalizar a maconha. A Colômbia legalizou a eutanásia em 2014, à frente de grande parte do mundo. O mais impressionante de tudo, talvez, é que tão recentemente quanto 2015, as mulheres presidentes lideraram as três principais economias da América do Sul – as do Brasil, Argentina e Chile.
A secularização e a democratização crescentes são as maiores tendências por trás destas mudanças dramáticas. A secularização diminuiu a barreira ao progresso social por facilitar aos políticos a adoção do aborto sem receio de retaliações por parte da ainda poderosa Igreja Católica. As ameaças de excomunhão dos bispos latino-americanos aos políticos que apoiam abertamente o aborto e os direitos LGBTQ caem geralmente em ouvidos moucos nos dias de hoje. Por seu lado, a democratização, um processo lançado por uma onda de transições democráticas que começou a criar raízes nos anos 1980, quando a região começou a se afastar decisivamente do domínio militar, desencadeou uma transformação do panorama constitucional da América Latina. Por toda a região, a transição para a democracia tornou necessárias novas constituições ou exigiu uma séria reformulação constitucional.
As constituições novas ou reformuladas da América Latina incluem um menu expansivo de direitos e liberdades individuais, bem como inovações constitucionais destinadas a proteger as minorias, o que explica porque os tribunais da região estão entre os mais receptivos do mundo aos que procuram direitos sociais. Em 2019, após o Congresso Brasileiro ter se arrastado na proteção das pessoas LGBTQI+ contra a discriminação, o Supremo Tribunal Federal brasileiro interveio e declarou a homofobia um crime semelhante ao racismo, sexismo e anti-semitismo.
Esta intervenção foi possível devido a uma característica incomum na Constituição que o Brasil promulgou em 1988, que permite ao tribunal intervir sempre que considere que os direitos de uma minoria vulnerável estão em risco. Tendo intervindo também em nome do casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção gay e direitos dos transgêneros, não é inconcebível que num dado momento no futuro o tribunal legalize também o aborto.
No entanto, em última análise, o sucesso da revolução do aborto na América Latina dependeu mais de campanhas especializadas e inteligentes do que de tendências sociológicas e vantagens constitucionais. O mais sugestivo é como progressistas e feministas na América Latina falam sobre o aborto; fazem-no de uma forma que simultaneamente avança a causa do aborto e minimiza a perspectiva de retrocesso. Em termos gerais, as ativistas norte-americanas dos direitos ao aborto enquadraram-no em termos de uma escolha pessoal.
Na América Latina, em impressionante contraste, o enquadramento tem sido mais ambicioso e idealista: como uma questão de direitos humanos. Os ativistas do aborto na América Latina – muitos deles veteranos da luta pelos direitos LGBTQI+ – têm insistido também que legalizar o aborto significa expandir a cidadania. Este enquadramento em torno dos direitos humanos e da cidadania visava capitalizar a ressonância cultural e política destes valores universais por toda a América Latina, um legado enraizado numa longa história de negação dos direitos básicos de cidadania e dos direitos humanos às mulheres, povos indígenas e outros grupos desfavorecidos. O enquadramento impulsionou o apoio ao aborto na sociedade civil, incluindo o trabalho organizado, grupos feministas, organizações de direitos humanos e o movimento de direitos LGBTQI+. Também colocou a Igreja Católica no local muito desconfortável de se opor ao progresso dos direitos humanos.
Os ativistas do aborto na América Latina chamaram a atenção também para as consequências socioeconômicas da criminalização do aborto, mostrando que a proibição do aborto cria um sistema de dois níveis que garante às mulheres ricas o acesso a um aborto seguro através de médicos privados e obriga as mulheres pobres a levar uma gravidez indesejada a termo ou a ir aos subterrâneos à procura de um aborto e serem sujeitas a processos legais por parte das autoridades públicas.
De fato, o caso legal que garantiu às mulheres colombianas o direito ao aborto argumentou que as restrições ao aborto discriminavam injustamente as mulheres pobres para as quais o aborto era mais difícil e juridicamente mais perigoso do que para as mulheres abastadas. Os ativistas do aborto na América Latina também enfatizaram os custos de saúde pública da criminalização do aborto. Uma grande questão na campanha argentina foi ligar a elevada taxa de mortalidade materna do país à falta de acesso a abortos seguros.
Os defensores dos direitos ao aborto na América Latina também tornaram a luta pelo aborto uma causa da moda – literal e figurativamente. A Argentina, onde a luta pelo aborto legalizado durou décadas, liderou o caminho ao fazer dos lenços verdes o símbolo da campanha pelo aborto. Criou o fenômeno conhecido como marea verde, ou maré verde. A ligação com as campanhas políticas anteriores das mulheres era inconfundível. Os lenços verdes tinham sido empregados em #NiUnaMenos (Nem Uma a Menos), um movimento de protesto contra a violência doméstica que mobilizou milhões de mulheres em cidades da Argentina, Chile e Uruguai.
Os lenços eram também um símbolo importante da resistência contra a ditadura militar liderada pelas Mães da Praça de Maio, o grupo de mães e avós que ganharam renome ao chamar a atenção para aqueles que desapareceram devido à sua oposição aos militares. À frente da onda verde estavam jovens mulheres, milhões das quais exibiram orgulhosamente um lenço verde nas manifestações massivas de direitos ao aborto que abalaram as cidades latino-americanas no meio da pandemia de Covid-19.
A alta visibilidade das mulheres jovens na luta pelo aborto foi crucial não só para promover a causa do aborto entre o público em geral. Em particular, as mulheres jovens destacaram-se de forma proeminente numa campanha astuta dos meios de comunicação a favor da descriminalização do aborto. Mas igualmente importante, se não mais, foi a influência das mulheres jovens em persuadir as mulheres mais velhas a mudar ou alterar seus pontos de vista sobre o aborto. Um caso em questão é o da ex-presidente argentina Cristina Fernández de Kirchner. Mesmo tendo defendido ferozmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo (ela assinou a lei), ela opôs-se ao aborto durante grande parte de sua carreira política. Mas, como senadora no Congresso argentino, cargo que ocupou desde que deixou a presidência, em 2015, mudou de posição, citando “as milhares, milhares de jovens mulheres que tomaram as ruas”.
É também vital notar que a experiência dos países da América Latina serve como um conto de advertência para o que o movimento anti-escolha dos Estados Unidos pode enfrentar na era pós-Roe. A criminalização do aborto na América Latina não o fez desaparecer; em vez disso, forçou milhões de mulheres latino-americanas a procurar abortos ilegais e muitas vezes inseguros. E foram as histórias macabras de algumas destas mulheres que acabaram por colocar a questão na linha de frente no esforço de descriminalizar o aborto. Na Argentina, a luta em torno da legalização do aborto veio à tona quando uma menina de 11 anos foi forçada a carregar um bebê até o fim. Ela foi vítima de estupro pelo namorado de sua avó. Embora a garota fosse tecnicamente qualificada para um aborto ao abrigo das então muito restritivas leis abortivas, médicos antiaborto, instituições e funcionários do governo tornaram praticamente impossível para ela interromper a gravidez.
As novas leis sobre o aborto na Argentina, México, e Colômbia são vastamente mais liberais do que muitos ativistas dos direitos do aborto alguma vez pensaram ser possível. Durante anos, os ativistas na América Latina procuraram expandir os direitos ao aborto em toda a região de forma incremental, lutando para permitir o aborto em casos em que a saúde da mulher grávida estivesse em risco ou para derrubar as leis que processavam as mulheres que tinham sofrido um aborto. Mas se depararam sempre com uma forte oposição dos legisladores conservadores e da Igreja Católica, e tiveram pouco sucesso.
Alimentado por esta oposição, o movimento popular a favor da legalização do aborto que emergiu nos últimos anos conseguiu fazer avançar grandemente os objetivos. O recente decreto do tribunal que legalizou o aborto na Colômbia autorizou o aborto até a 24ª semana de gravidez, tornando o país um dos mais liberais do mundo no que diz respeito ao aborto. A Suécia, que tem as leis mais liberais da União Europeia sobre o aborto, permite o aborto apenas até a 18ª semana (com algumas exceções para abortos mais tardios na gravidez). A lição para o movimento antiaborto norte-americano aqui é bastante clara: quando se trata de criminalizar o aborto, tenha cuidado com o que deseja.
*Omar G. Encarnación é professor de ciência política no Bard College (EUA). Autor, entre outros livros, de The case for gay reparations (Oxford University Press).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Publicado originalmente na revista The Nation.