O direito na pandemia

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Por Marcus Orione*

A política de governo de preservação de emprego e renda em tempos de coronovírus: perspectivas para o sujeito de direito

Buscaremos fazer uma leitura do conjunto de medidas do governo Bolsonaro destinadas à manutenção da renda e do emprego, em especial as Medidas Provisórias 927 e 936 de 2020, a partir do recorte metodológico materialista histórico-dialético, com destaque para a noção de forma jurídica (constituída pelo sujeito de direito e ideologia jurídica), específica do modo de produção capitalista[i].

Sendo o sujeito de direito aquele que de forma livre, igual e como proprietário vende a sua força de trabalho, as suas perspectivas estão diretamente ligadas ao modo como se processará, a partir da pandemia, a possibilidade da reiteração de práticas exatamente para preservação daquela alienação. Afinal, no capitalismo, somos convocados a vender a nossa força de trabalho e tudo que se processa, seja na produção, seja na circulação, defluiu desta sua especificidade histórica.

Portanto, a grande pergunta que deve ser feita é a seguinte: em que medida esta primeira onda do coronavírus afeta a dinâmica da reprodução do contrato de compra e venda da força de trabalho? A análise poderia se dar por muitas perspectivas (já que a forma jurídica é muito mais do que uma mera expressão do direito, possuindo conotações éticas, estéticas e assim por diante), no entanto, a nossa se encerrará nos marcos do direito do trabalho e do direito da seguridade social.

Aqui algumas questões antecedentes devem ser destacadas.

Primeiro, o que fazemos é uma crítica imanente materialista. E  o que essa crítica imanente? É a que se processa a partir da relação entre o que há de essencial no modo de produção capitalista (exatamente a reiteração de práticas que importam a compra e venda da força de trabalho: todo o dia somos interpelados, convocados mesmo a sair de casa, ir para os nossos trabalhos, comprar as nossas mercadorias com dinheiro ou cartão de crédito e assim por diante) e o que oculta essa essencialidade pela aparência. A crítica imanente, pois, busca especialmente identificar a violência que é ocultada em especial na produção (mas também na circulação) a partir da ideologia, que mais do que uma apreensão subjetiva dos fatos, tem incidência na esfera do real, enfim, nas nossas práticas diárias. Ela é aquela que, em última instância,  se ocupa da busca das mediações que produzem, no capitalismo, a troca de uma violência direta por uma outra indireta, subrreptícia e sorrateira na vida do trabalhador. Para isso, ela opera na análise das condutas reiteradas no modo de produção.

Portanto, quando se pergunta perspectivas para o sujeito de direito, há que se tomar cuidado (para a efetiva realização de uma crítica imanente) de  se operar sempre a partir de determinações que podem ser encontradas no processo histórico.

Nesta linha, iremos dividir a nossa análise a partir: 1) das perspectivas do sujeito de direito que são dadas por determinações que chamaremos de primeiro grau[ii] (que são aquelas que efetivamente já estão manifestas, ou seja, as que já se mostraram evidentes no processo histórico) e  2) das perspectivas do sujeito de direito que se apresentam como decorrências lógico/históricas das anteriores, a que chamaremos de determinações de segundo grau e que,  contendo elementos que não se manifestaram ainda, podendo ser tocadas pelo acaso ou aleatório. Encontram-se, não raras vezes, na zona limitrófe entre a crítica imanente e a análise de alternativas distopicas ou utópicas. A sua manifestação está ainda em processo de se realizar e, uma vez que ainda não se manifestaram, há um maior grau de instabilidade nas conclusões do que nas anteriores.

Se o primeiro campo de análise, o das perspectivas a partir das determinações de primeiro grau, nos permite dizer que estamos na esfera da ciência (uma ciência materialista histórico dialética e, portanto, muito mais dinâmica na análise do que aquele que também se autoproclama ciência, o positivismo); no segundo, o das determinações de segundo grau, a presença do aleatório nos remetem a dificuldades, que podem conduzir a maiores fragilidades de análise. No entanto, como se encontram amparadas por um exercício materialista histórico-dialético baseado em determinações de primeiro grau ainda assim pode lhes ser conferida algum status científico,  não se situando no campo frágil das constatações meramente utópicas ou distópicas.

É claro que fizemos aqui apenas um exercício bastante rudimentar sobre este procedimento de análise. Ainda assim, entendemos que  destacamos o suficiente para compor as premissas de nossas análises.

Dispostos os pressupostos metodológicos, passemos a operar a sua incidência no real, no que hoje temos, diante do COVID-19, como  uma política de governo “medidas de proteção do emprego e da renda da trabalhadora e do trabalhador”.

Aqui a pergunta fundamental para a análise, feita no início de nossa investigação, é a seguinte: se o capitalismo é a reiteração de práticas de compra e venda da força de trabalho a que todos somos compelidos, convocados a praticar, com o advento da pandemia, como ficam as dimensões de possibilidade de reprodução deste contrato?

Inicialmente, devemos constatar, usando de determinações históricas de primeiro grau, que as Medidas Provisórias n. 927 e 936 de 2020 estão exatamente no bojo de um conjunto de medidas que tende a buscar a preservação da reiteração de condutas favoráveis à circulação da mercadoria força de trabalho. É nesta linha que devem ser entendidas propostas, ali contidas, como a da intensificação do mecanismo do trabalho remoto, a do adiantamento de férias e de feriados e ainda a suspensão dos contratos de trabalho.

A despeito de se colocarem como de preservação da renda, tais Medidas Provisórias, no fundo, apenas se ocupam de um pretenso (e bastante precário) projeto de preservação dos empregos como forma de manutenção de uma prática tipicamente capitalista de venda da força de trabalho. Nada tem a ver com vida, dignidade do trabalhor e trabalhadoras e mesmo com renda. Basta debruçar os olhos sobre tais disposições que sequer preservam o direito fundamental à saúde em questões como as referentes às férias ou mesmo quanto aos pífios valores pífios à disposição do empregado e do autonômo a título de “benefício emergencial”.

Por outro lado, ainda na linha da observação das determinações de primeiro grau, o grande dado destas medidas foi, na mesma linha do que já ocorrera na mudança da legislação trabalhista promovida pelo Governo Temer, a da intensificação da figura nuclear do sujeito de direito enquanto proprietário isolado e com plena autonomia de vontade para fazer e desfazer das condições de vender a sua força de trabalho.

Não obstante, não as duas situações não podem ser confundidas, sob pena de se negligenciar o próprio legado do materialismo-dialético: o cuidado sempre atento com a mudança das determinações no curso do processo histórico .

Existe nas medidas do Governo Bolsonaro, em relação as do Governo Temer, uma mudança qualitativa neste processo de individualização, de autonomização do sujeito de direito. As condições históricas são outras: o capitalismo agora está confrontado com uma possibilidade real de sua devastação (ainda que isso se prolongue no tempo); talvez algo que somente possa ser comparável à ameaça à sua existência promovida pelo processo revolucionário soviético do início do Século XX.

Portanto, a partir do direito, já temos aqui uma primeira constatação fundamental decorrente de uma determinação de primeiro grau, que nos dá caldo para analisarmos as perspectivas para o sujeito de direito: em momento em que se dá a possibilidade de extermínio das práticas que levam à sua reiteração, o que fez o capitalismo de um país da sua periferia? Por mais contraditório que possa parecer, apostou todas as suas fichas na intensificação do processo de atomização do sujeito de direito, na busca da retomada mais imediata e mais incondicional possível da nossa interpelação enquanto indivíduos sujeitados à força vinculante da compra e venda da força de trabalho.

Aqui estamos diante de uma constatação proveniente de determinações de primeiro grau, que efetivamente estão se apresentando no processo histórico.

A pergunta que resta é: a que isso levará? E é exatamente aqui que entram as perspectivas do sujeito de direito fincadas em determinações de segundo grau, portanto, passíveis de uma maior instabilidade pela possibilidade do acaso, mas não totalmente descartáveis, já que baseadas nas anteriores (de primeiro grau). Logo, mesmo que se encontrem na zona limítrofe da distopia e da utopia, não podem ser inteiramente ser desprezadas, já que não ingressaram no no campo daquelas. Ainda estão fincadas no processo histórico, e não inteiramente sujeitas ao acaso, ao aleatório.

Aqui antevejo duas possibilidades

A primeira, ainda fora da distopia, seria a seguinte: o excesso de aposta na atomização do sujeito de direito, em momento tão delicado para a reprodução da compra e venda da força de trabalho, poderia levar ao rompimento com o modo de produção baseado exatamente no próprio sujeito de direito. A tensão dialética poderá produzir a ruptura da forma jurídica, com a imposição da violência (possivelmente conjugada, no início do processo, com a venda da força de trabalho, aparentando ser uma espécie de acumulação típica do capital, mas que vai aos poucos se transformando). Se este quadro se der, seria introduzida paulatinamente, no lugar da ideologia jurídica, a violência explícita e teríamos a derrocada do modo de produção capitalista, na medida em que a coerção passaria a se dar diretamente sobre os corpos e mentes das trabahadoras e dos trabalhadores, sem qualquer mediação (sem necessidade da ideologia do contrato). O sujeito de direito seria morto a partir da morte da ideolgia jurídica ou do contrato. O processo não seria da noite para o dia, implicando, no plano do direito, na relação dicotomica entre a concessão jurídica de uma autonomia privada que, na prática, não conseguiria se realizar minimamente,e a sua perda gradativa decorrente da diminuição de direitos fundamentais individuais como o de locomoção ( restrições no ir e vir), de comunicação ou de associação. Tudo sempre em nome de defesa “coletiva” em vista dos perigos do vírus.

Neste primeiro quadro, haveria uma intensificação da subsunção real do trabalho ao capital em uma velocidade mais intensa do que já vem-se se processando. Haveria o que tenho denominado de subsunção hiper-real do trabalho ao capital. O capitalismo acentua, como se fosse um grande retrato de si mesmo, todos os elementos constitutivos, não tendo mais como ocultar a violência que lhe é insíta, monstrando a sua real face, de modo a perder a máscara que a oculta. Aqui, nesta hiper-realidade, as técnicas de trabalho já totalmente dominadas pelo capital seriam usadas de forma ainda mais intensificada contra o trabalhador e a trabalhadora. A situação caminharia para a total decadência da ideologia jurídica. Já num cenário (aqui sim) mais distópico, poderia se dar que, com o fim da relação contratual de compra e venda da mercadoria força de trabalho, entraria em cena um outro modo de produção (vejam que estou falando em novo modo de produção), a que chamarei, não no sentido adotado por Rosa Luxemburgo, de barbárie. Sobre esse, para evitar os devaneios distópicos, somente temos a dizer que, com a subsunção hiper-real do trabalho ao capital, o determinante não seria mais a reiteração do contrato de compra e venda da força de trabalho, mas de algo que, com um maior grau de violência ( isto é, maior coerção direta sobre trabalhadora e trabalhador), intensifique o processo de extração de mais-valor a partir de uma exacerbação do domínio das técnicas de trabalho e de produção já absorvidos pelo capital. A transformação se daria essencialmente a partir de novas relações de produção e não das forças produtivas.

Já a segunda hipótese, embora também dada por determinações de segundo grau, se encontra menos manifesta no momento (aproximando, aqui sim, muito mais de uma utopia do que a anterior da distopia). Ainda que não não possa ser extraída, como a anterior, de uma relação com determinações mais evidentes, pela velocidade que o processo histórico toma em momentos como o presente, não pode ser totalmente descartada. Conseguem ser inferidas de fatos em estado embrionários, que não serão aqui explorados, com grau ainda instável de potencialidade.

Vejamos este cenário mais otimista consideradas as perspectivas para o sujeito de direito.

Esta alternativa é, por incrível que pareça, à primeira vista, assentada naquilo que, em condições normais, nada mais faz do que promover a reprodução do capitalismo: os direitos sociais. No entanto, para deixar claro que não se trata da mesma coisa, atribuiremos a ela um outro nome: postulação popular por demandas de natureza efetivamente coletivas. Aqui pensamos apenas naquelas que encerrem proposições que promovam a universalização. Sempre a depender das condições históricas, e isso é o que se dá nesse momento histórico específico, tais demandas sequer poderão ser chamadas de direitos pela potencialidade de quebrar com a lógica de reprodução do capital de compra e venda da força de trabalho[iii].

Insistindo: pela nova dinâmica que poderão assumir, certamente sequer é possível reservar-lhes a denominação de direitos sociais, bem como as medidas de implementação que as acompanham sequer poderão receber a alcunha de políticas públicas (que, no capitalismo, nada mais são do que formas sociais derivadas da forma jurídica ou contratual). E aqui o que os diferencia dos direitos socias, tais como conhecemos hoje, é a sua potencialidade para a ruptura e não para preservação do capitalismo. Logo, não assumiriam o nome de direito por conta de um conjunto de determinações históricas que seriam específicas para o seu advento. Em condições normais iriam reproduzir a lógica da compra e venda da força de trabalho; em tempo de coronovírus, poderiam assumir uma outra conformação no processo histórico. Há, no entanto, que se estar sempre atento ao fato de que esta tipologia, em vista de eventuais exercícios desviantes de sua finalidade, não devem ser destinados a apenas viabilizar a circulação na forma dinheiro, devendo carregar força para  a produção generalizada de bens coletivos (e não de bens públicos, já que não devem ser pensados na dinâmica da forma-estado).

Nesta segunda perspectiva para o sujeito de direito, ele também tenderia a desaparecer. No entanto, diversamente da hipótese anterior, em que se perde na contraditória busca de si mesmo e propícia o aumento da exploração da classe trabalhadora; aqui ele seria dissolvido, deixando presente uma fundamental reminiscência de sua dissolução: o ganho da percepção de que somente a inserção de novas práticas reiteradas, totalmente diversas daquelas relacionadas à compra e venda da força de trabalho, com um aparelhamento que lhe será próprio, e informadas por uma nova ideologia, será capaz de promover a universalização de um novo sujeitamento dos indivíduos.

No entanto, algo tem que ficar claro: não será um vírus que matará o capitalismo; o que promoverá a extinção do capitalismo é como, diante das atuais condições históricas postas a partir do coronovírus, a classe trabalhadora travará o combate da luta de classes.

*Marcus Orione é Professor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Texto produzido a partir da exposição feita em live realizada em 28 de abril de 2020 pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo (DHCTEM) da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (disponível em https://www.facebook.com/dhctem.usp/)

Notas

[i] Além da obra de Marx, para a compreensão do método, em especial da forma jurídica são sugeridas as seguintes leituras: PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017, EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. Coord. da Trad. Marcus Orione. São Paulo: Boitempo, 2016 e EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia (elementos para uma teoria marxista do direito). Trad. Soveral Martins e Pires de Carvalho. Coimbra: Centelha, 1976.

[ii] A divisão aqui sugerida nada tem a ver com aquela que aparece na obra de Mészáros como mediações de primeira e de segunda ordem. Um bom texto que para a compreensão de seus significados é o de MENEZES Rafael Lessa Vieira de Sá. Crítica dos direitos humanos à luz de István Mészáros 2013. 104 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.

[iii] Aqui chamamos atenção para algumas das observações, embora não fincadas num momento histórico atual, postas, em especial na sua parte final,  na obra de BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da tecnologia dos direitos sociais. São Paulo: Outas Expressões; Dobra Editorial, 2013

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