O discurso social de Lula

Imagem: Kaique Lopes
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Por EDUARDO BORGES*

Uma parcela da elite brasileira está desconectada do debate econômico contemporâneo e segue sendo fiel à sua atávica e desprezível aporofobia

Ao se livrar de Jair Bolsonaro, o Brasil se livrou de dois entulhos, um político e outro econômico. Quanto ao primeiro, se livrou de uma mentalidade reacionária, arcaica e autoritária, que naturalizou o ódio e estabeleceu as bases de uma sociedade esfacelada. Quanto à economia, se livrou do entulho representado pelo ultrapassado e arcaico ultraliberalismo defendido por Paulo Guedes e reprocessado por alguns economistas terceirizados que respondem pelos interesses do dito “mercado”.

Nos últimos dias, esse terceirizados têm ganhado certa visibilidade na grande mídia corporativa ao se posicionarem “criticamente” à chamada “PEC da transição”, a Proposta de Emenda Constitucional que ajudaria o governo Lula a pagar o Bolsa Família no valor de 600,00 reais sem ter que se submeter à regra do teto de gastos. Lembremos que o orçamento para 2023, enviado pelo governo Bolsonaro, assegura somente o pagamento no valor de 400,00 reais.

Esse primeiro grande desafio econômico do governo Lula tem se transformado em um pequeno laboratório do que tende a ser a futura relação entre o governo do petista e parcela do PIB nacional. Pois bem, nas linhas que se seguem, vamos refletir um pouco sobre o quanto uma parcela da elite brasileira está desconectada do debate econômico contemporâneo e segue sendo fiel à sua atávica e desprezível aporofobia.

Nas últimas semanas, em meio ao debate sobre o teto de gastos, a Faria Lima (centro do capitalismo brasileiro) resolveu enquadrar o presidente Lula (não esqueçamos que Bolsonaro furou o teto de gastos em 795 bilhões de reais e eles nada fizeram) alegando que algumas falas do presidente sobre o controle fiscal poderia provocar não só o desequilíbrio fiscal, mas a derrocada da economia brasileira. O tema tem gerado, inclusive, uma “guerra” de missivas públicas entre renomados economistas brasileiros demarcando bem as nuances sociais dos membros desse segmento acadêmico.

Sobre a reação destemperada dos “mercados” somente reproduz a velha tentativa do PIB nacional em tutelar presidentes e governos. Fazem isso desde o Império. Encastelados em seus palácios de vidros no conforto do ar condicionado essa gente enxerga somente números no lugar de seres humanos. Basta um pequeno esboço, de qualquer governo, em conceder aos menos favorecidos um mínimo de protagonismo no orçamento público que os abutres do “mercado” reagem sem nenhum pudor ou sensibilidade social.

A burguesia tenta embasar seu preconceito de classe e usura econômica em uma meia dúzia de supostos especialistas (verdadeiros mercenários do rentismo) formada por sujeitos de pensamento econômico completamente ultrapassado, mas que servem ao serviço sujo de criar o pânico social (incorporado de forma imbecil por uma parcela da classe média que se acha rica) necessário a manter o governante de plantão sob a tutela de seus interesses privados. Vamos aos fatos.

Eleito por parcela esmagadora dos mais pobres, o terceiro governo Lula não pode fazer uma gestão que não seja a de corresponder aos interesses desse setor da população. Diante de 32 milhões de pessoas passando fome e de um alto índice de desemprego, o Brasil precisa mudar o foco radicalmente para o social. Contudo, isso não significa agir com irresponsabilidade em relação ao equilíbrio fiscal, mas, simplesmente, ressignificar (dentro do atual debate do pensamento liberal) a ortodoxia da cartilha neoliberal.

Reproduzo a fala de Lula que tem provocado a reação dos “mercados” e de incautos de uma classe média deslumbrada que mimetiza de forma patética a “preocupação” do baronato da Casa grande: “Por que as pessoas são levadas a sofrerem por conta de garantir a tal da estabilidade fiscal nesse país? Por que que toda hora as pessoas falam: ’ é preciso cortar gastos’, ‘é preciso fazer superávit’, ’é preciso fazer teto de gastos’? Por que as mesmas pessoas que discutem com seriedade o teto de gastos não discute a questão social desse país? Por que o povo pobre não está na planilha de discussão da macroeconomia? Por que a gente tem meta de inflação e não tem meta de crescimento? Por que a gente não estabelece um novo paradigma de funcionamento nesse país?”

Entenderam o que promete ser a estratégia da oposição ao terceiro governo Lula? Perceberam que os progressistas desse país terão que travar uma batalha diária de convencimento da opinião pública de que será preciso tomar partido e defender veementemente a soberania popular contra a tentativa de imposição de poder de nossa plutocracia? Essa fala de Lula, que a princípio poderia ser considerada obvia para um governante cuja função pública é melhorar a vida das pessoas e olhar pelos mais vulneráveis, não foi vista com bons olhos por nossos capitalistas.

Durante a semana os jornalões da mídia corporativa destilaram seu elitismo egoísta através de diversos editoriais (os atos antidemocráticos dos lunáticos bolsonaristas não receberam o mesmo tratamento) matizando o risco causado pela fala de Lula. Economistas ultraliberais vomitaram suas idiossincrasias com roupagem “cientifica” criando o ambiente propício para que a elite política que flerta com a extrema direita mantenha acesa a sanha golpista. O ajuste fiscal passou a ser o grande Deus. Cientes de que podem usar do poder financeiro para desequilibrar o jogo político dentro de um parlamento fisiológico e reacionário, a elite econômica mantém acesa a velha chama de se apoderar dos poderes institucionais e acomodar o Estado aos limites de seus interesses. Fazem isso desde sempre e não demonstram escrúpulos se tiverem que apoiar golpes ou ações discricionárias.

Vamos novamente aos fatos. Lula fala de colocar o pobre no orçamento, em decorrência a Ibovespa despenca, o dólar sobe, a classe média deslumbrada se espanta, os bolsonaristas antidemocráticos ganham novo fôlego e a mediocridade intelectual dos nossos liberais fica abertamente desmascarada. Antes de apoiar explicitamente uma ação golpista, a elite econômica brasileira, capitaneada por “burros com iniciativa” como Paulo Guedes et caterva, se entrincheirou no discurso clichê do equilíbrio fiscal e endividamento versus crescimento econômico e desigualdade social, criando uma estúpida e falsa dicotomia.

Diante desse roteiro fui buscar no próprio liberalismo uma resposta que refutasse os nossos liberais. Segue, portanto, um esboço argumentativo do quanto perecemos de economistas liberais com um mínimo de qualidade intelectual. Depois da crise de 2008, que provocou uma década de crise mundial, algumas das estruturas mentais do Neoliberalismo foi fortemente questionada. Alguns dos mais importantes economistas liberais se debruçaram sobre como resolver a equação criada entre equilíbrio fiscal e desigualdade social. Uma prova cabal do quanto nossos economistas estão defasados (por ignorância ou por insensibilidade social?) foi um artigo publicado em 2016 na revista do FMI. Isso mesmo, você não entendeu errado, na revista do Fundo Monetário Internacional. O artigo foi assinado pelos economistas Jonathan D. Ostry, Prakash Loungani e Davide Fuceri,[i] sob o título “Neoliberalism: oversold?”[ii] (Neoliberalismo: exagerado?). O texto é uma verdadeira lição de realidade (nossos economistas liberais, críticos do discurso de Lula, desconhecem esse artigo?) e deixa claro o quanto o velho receituário neoliberal do Consenso de Washington está surrado tanto quanto o cérebro de nossos eminentes liberais.

O texto partiu da reflexão da realidade estabelecida a partir dos anos 80 em que as gestões macroeconômicas dos países, principalmente os da periferia do sistema, alcançariam desenvolvimento econômico se seguissem as regras da cartilha neoliberal imposta pelo próprio FMI. Passados mais de trinta anos a prosperidade não veio e a população não desfrutou dos benefícios do projetado crescimento da economia. Parcela dos liberais brasileiros, esses que hoje criticam a fala socialmente responsável de Lula, seguem conectados a essa ilusória cantilena dos anos 1980.

Apesar de relatarem alguns pontos positivos do neoliberalismo (o que torna suas críticas ainda mais insuspeitas) os autores do citado artigo trouxeram a seguinte realidade: “No entanto, há aspectos da agenda neoliberal que não foram entregues como esperado. Nossa avaliação da agenda limita-se aos efeitos de duas políticas: remoção de restrições à movimentação de capitais através das fronteiras de um país (a chamada liberalização da conta de capital); e a consolidação fiscal, às vezes chamada de “austeridade”, que é uma abreviação de políticas para reduzir os déficits fiscais e os níveis de dívida”.

As duas políticas acima citadas estão sendo agora resgatadas em forma de empolado argumento “científico” contra as falas de Lula. Demonstrando o quanto o discurso de Lula é contemporâneo, depois de chegarem à conclusão de que o receituário neoliberal aumentou a desigualdade social, os autores do artigo fazem a seguinte afirmativa: “O aumento da desigualdade, por sua vez, prejudica o nível e a sustentabilidade do crescimento. Mesmo que o crescimento seja o único ou principal objetivo da agenda neoliberal, os defensores dessa agenda ainda precisam prestar atenção aos efeitos distributivos”.

Em outras palavras: é a distribuição, estúpido! É isso que Lula quer dizer com seu discurso focado no social. Revelando a incoerência de nossos liberais que tentam conciliar austeridade econômica com crescimento econômico, vejamos o que os autores do FMI escreveram: “O aumento da desigualdade gerado pela abertura financeira e austeridade pode minar o crescimento, exatamente o que a agenda neoliberal pretende impulsionar. Existem agora fortes evidências de que a desigualdade pode reduzir significativamente o nível e a durabilidade do crescimento”.

Perceberam o quanto a agenda voltada para a questão da desigualdade social (proposta de Lula) virou pauta até mesmo entre os liberais? É melancólico ver uma parcela de nossa classe média compartilhar do discurso anti-pobre de nossa elite econômica, quando nem o centro do capitalismo já não mais compartilha dessa ideia. A agenda da esquerda brasileira nos próximos quatro anos deve ser a incansável defesa da igualdade social. Os quatro anos da dupla Bolsonaro/Guedes atingiram fortemente o mínimo de arcabouço jurídico e político que ainda sustentavam as políticas públicas de fomento à igualdade social.

Um exemplo concreto de que nossa elite econômica não se envergonha de ser mais realista do que o rei se deu em 2017 no Fórum de Davos. Na oportunidade, a então diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, fez uma fala desconstruindo o discurso do ministro da Fazenda Henrique Meireles (governo Temer). Cobrou ela uma preocupação do Brasil com a questão da desigualdade social em detrimento da ortodoxia do receituário neoliberal. Falou, pelo visto, para o deserto. Meireles desdenhou da fala de Lagarde. Qual é o temor do pessoal da Faria Lima quando rechaçam com desprezo e frieza qualquer debate razoavelmente progressista que insista em colocar o pobre e a desigualdade social como centro da discussão de políticas públicas?

Quando nossa elite e parte da classe média deslumbrada repete o mantra da “liberalização total do fluxo de capital”, veja a posição dos economistas estrangeiros: “O FMI também reconhece que a liberalização total do fluxo de capital nem sempre é um objetivo final apropriado e que uma maior liberalização é mais benéfica e menos arriscada se os países atingirem certos limiares de desenvolvimento financeiro e institucional”.

Em outras palavras, segundo o FMI, a liberalização total do fluxo de capital só deve ocorrer se antes houver um projeto soberano e autônomo de desenvolvimento financeiro e institucional dos países. Quando Lula sinaliza com a volta do PAC e do investimento em infraestrutura, é nisso que ele está pensando.

Austeridade é música para os ouvidos de nossos liberais. A mídia corporativa reproduz em suas páginas esse mantra com desenvoltura. Contudo, veja o que o centro do capitalismo mundial já está pensando sobre a bendita “austeridade”: “As políticas de austeridade não apenas geram custos substanciais de bem-estar devido aos canais do lado da oferta, mas também prejudicam a demanda – e, assim, pioram o emprego e o desemprego”.

Mas nossa elite prefere seguir renitente, virando as costas para tudo que possa beneficiar os menos favorecidos. Agora é o ajuste fiscal e a austeridade, em breve é o aprofundamento da reforma trabalhista e o fim da CLT, vamos pagar para ver? Mas a irresponsabilidade dos oráculos de nosso “mercado” concilia ignorância em relação ao debate econômico contemporâneo com uma total falta de honestidade intelectual ao descartar completamente qualquer respaldo de suas críticas no processo histórico da economia brasileira dos últimos 20 anos. Vamos mais uma vez aos fatos.

Em 2002, quando Lula assumiu seu primeiro governo, a dívida líquida do Governo Geral e Banco Gentral era de 59,5% do PIB. Vivenciavamos tempos difíceis de especulação financeira com elevação da taxa de câmbio e da dívida interna. Lula herdou de FHC um grande endividamento público, mas sua política fiscal (hoje temida pelo mercado e demais reacionários) simplesmente pagou a dívida contraída por FHC junto ao FMI (viramos credores do Fundo). O que veio em seguida, nos governos Lula e Dilma, foi uma forte redução do endividamento público atingindo em 2013 quase metade da era FHC com quase 30% do PIB. Onde estavam entre 2002 e 2013 a horda de rentistas, reacionários, bolsonaristas, e outros lunáticos quando isso tudo acontecia com a economia brasileira?

Ao diminuir o valor da relação dívida/PIB de 60% para 30%   o governo Lula foi até mais realista do que propunha o próprio FMI. No citado texto publicado na revista do Fundo, os autores ao se referirem sobre o tema assim afirmam: “A história econômica das últimas décadas oferece muitos exemplos dessas restrições, como o limite de 60% do PIB estabelecido para os países aderirem à zona do euro (um dos chamados critérios de Maastricht)”.

Ou seja, o que justifica que hoje o dito mercado e os barões da mídia corporativa tenham algum medo em relação à política fiscal de Lula? Certamente a resposta está em seu estrutural preconceito de classe. Não existe outra explicação diante dos fatos da vida real. Pelo visto a escatologia dos adeptos da seita bolsonarista pegou em cheio nossa elite liberal.

Em resumo, quando insiste em colocar em seus discursos a questão da desigualdade social como foco principal de seu futuro governo, Lula está somente dialogando com o que existe de mais contemporâneo no debate do capitalismo liberal. Por outro lado, seu histórico de responsabilidade fiscal, já comprovado em seus governos anteriores, não justifica a sanha inconsequente da elite econômica.

Quando os brancos da Faria Lima, mimetizados por patéticos sujeitos de classe média, tão brancos quanto os da Faria Lima, mas não tão ricos quanto eles, engordam o discurso do “risco Lula” (alguns chegaram a tremer nas bases só de imaginar Fernando Haddad como ministro da Fazenda), estão somente reproduzindo o pensamento anti-povo que surgiu na colônia, foi reprocessado no Império e se tornou estrutural na República. Qualquer coisa diferente disso é um típico white people problems.

*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia. Autor, entre outros livros, de Golpe: o golpe como método político da elite brasileira (Kotter).

Notas


[i] Jonathan D. Ostry é Diretor Adjunto, Prakash Loungani é Chefe de Divisão e Davide Furceri é Economista, todos no Departamento de Pesquisa do FMI.

[ii] https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/ostry.htm

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