O fascismo não morreu em 1945

Imagem: Mohamed Abdelsadig
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SERGIO SCHARGEL*

Há uma ligação estreita entre fascismo e democracia liberal. O problema é interpretá-los como sinônimos

A peça Praça dos heróis, de Thomas Bernhard, abre com Josef Schuster se jogando de sua janela na Heldenplatz (Praça dos Heróis), onde Hitler anunciou a anexação da Áustria. Os motivos são absurdos e propositalmente exagerados: Schuster teria se matado porque a Áustria de 1988 seria mais nazista e antissemita do que a Áustria de 1938. É óbvio que Thomas Bernhard exagera de propósito, para chocar – como é, por sinal, típico da sátira –, mas para pegar em uma ferida: o fascismo não morreu em 1945.

Como diz um personagem: “ele não contava com isso / que os austríacos depois da guerra / seriam muito mais hostis e muito mais antissemitas”. O exagero permite que Thomas Bernhard critique o revisionismo austríaco, que tomava a nação como vítima e a Alemanha como única perpetradora do nazismo.

Em A barata, de Ian McEwan, não apenas uma sátira mas também um pastiche de A metamorfose, o parlamentarismo inglês é dominado por baratas travestidas de homens. O disfarce permite que elas empreendam um movimento absurdo: inverter a economia, tornando consumo em trabalho, e trabalho em consumo. As pessoas passam a ser pagas para consumir, e pagam para trabalhar. Antes ridicularizada, aos poucos a ideia começa a ganhar penetração e os “Reversalistas” se tornam uma corrente majoritária dentro do Partido Conservador. Mais uma vez o exagero da sátira funciona como ataque contra o ressurgimento do nacionalismo, dessa vez com o Brexit.

Assim como a história, a ficção política nos ensina sobre o contemporâneo político. Em especial sobre esse fenômeno de negação sobre os perigos dos movimentos de extrema direita. Há extensa discussão conceitual sobre o fascismo, com correntes díspares que se digladiam há pelo menos cem anos. Já a Terceira Internacional Comunista foi dedicada à questão do fascismo, na tentativa de compreender aquele movimento reacionário de massas, que fugia à visão teleológica da história e não fora previsto por nenhum dos profetas marxistas. Na tentativa de enquadrá-lo sem ferir o cânone, pregou-se que o fascismo não era além de um liberalismo extremo – ignorando o seu antiliberalismo – e um mecanismo de defesa do capitalismo moribundo. Ou seja, o fascismo era o último sinal de vida da democracia burguesa prestes a morrer e dar lugar à ditadura do proletariado, tal como um animal acuado que mostra suas garras. Pior: classificaram sociais-democratas como sociais-fascistas, epiteto infame que prestou um desserviço ao conceito, transformando-o em uma espécie de xingamento, um sinônimo para troglodita, como George Orwell descreveu em 1944.

Como disse Evgeni Pachukanis, “o Estado fascista é o mesmo Estado do grande capital, como são a França, a Inglaterra e os Estados Unidos, e, nesse sentido, Mussolini cumpre a mesma tarefa que estão cumprindo [Raymond] Poincaré, [Stanley] Baldwin e [Calvin] Coolidge”. Uma parcela considerável (embora não todos) dos marxistas da época equivaleram fascismo e liberalismo, prostando-se quase indiferentes a eles. Como afirmou Robert Paxton: “Mesmo antes de Mussolini ter consolidado por completo seu poder, os marxistas já tinham pronta sua definição para o fascismo, ‘o instrumento da grande burguesia em sua luta contra o proletariado’”.

É preciso, contudo, ressaltar alguns elementos que os marxistas da época notaram sobre o fascismo, e que permanecem relevantes. Foram os primeiros, por exemplo, a perceberem a associação entre fascismo e crise econômica, social e política. Também perceberam a sua ligação intrínseca e simbiótica com a democracia liberal – ainda que, obviamente, não sejam sinônimos, como alguns interpretaram.

Sabemos da ironia histórica em terem acreditado que o fascismo apresentava a inevitabilidade da morte do capitalismo, mas ressaltemos a percepção que tiveram de que líderes fascistas tendem a chegar ao poder não por uma ruptura institucional, mas pelas vias democráticas e legais. Foi assim com Adolf Hitler e Benito Mussolini. É assim com análogos contemporâneos. O fenômeno tão comumente descrito como inédito da crise contemporânea das democracias liberais, sua erosão lenta por dentro, é um traço típico do fascismo. Há, portanto, uma ligação estreita entre fascismo e democracia liberal. O problema é interpretá-los como sinônimos.

Como notado por alguns antropólogos, muitos mitos reaparecem com roupagens distintas em diferentes comunidades e mitologias, mas seguem uma estrutura comum. Entre eles, está o mito do doppelgänger. Como discutido em outros artigos, voltados à área da Literatura comparada, o doppelgänger, apesar de só ter recebido essa denominação no século XVIII, reaparece em narrativas do folclore alemão, egípcio, escandinavo, finlandês, entre outros. Com algumas diferenças, todos convergem sobre um mesmo ponto: o duplo é uma espécie de negativo, de sósia, um outro eu, mas com características psicológicas opostas. Ou seja, o total contrário. Pela incapacidade do “Eu” existir ao mesmo tempo que um outro “Eu”, que também é um outro, seu mito converge para o drama: invariavelmente, quando os sósias se encontram, tendem a eliminar um ao outro. A figura transitou da mitologia à Literatura, popularizada em William Wilson, de Edgar Allan Poe, e, a partir daí, figurou em diversas outras obras.

Essa pequena digressão é necessária para compreender o que se quer dizer quando se chama, aqui, o fascismo como doppelgänger da democracia liberal de massas: ele surge desse uno para se tornar sua versão distorcida. Ou seja, se divide a partir da democracia de massas, para se opor a tudo que ela defende. Não por coincidência se trata de um movimento abertamente antiliberal e antidemocrático, ainda que chegue ao poder por vias democráticas e se apoiando em aliados liberais. Os liberais são vistos como “pais” dos marxistas, como figuras apáticas culpadas pelo socialismo. É óbvio que ser antiliberal não significa ser anticapitalista, como algumas análises revisionistas, principalmente dos próprios liberais ou da extrema direita, sugerem.

Mas o que os erros da análise marxista em 1920 podem nos ensinar hoje em dia? Por que discutir essas questões em 2022? Porque em muito se repetem. Embora elementos como o fascismo como defesa do capitalismo moribundo de fato não sejam mais defendidos por (quase) ninguém, outros traços permanecem. Alguns segmentos da esquerda ainda insistem no sinônimo entre (neo)liberalismo e fascismo.

Mas a maior de todas as questões, por, na prática, dificultar o entendimento e a consequente reação contra a extrema direita: o mito de que o fascismo como ditadura do grande capital, como uma reação da alta burguesia. Sendo um movimento de massas, o fascismo conquistou (e conquista) apoio dos mais diversos segmentos sociais, da alta burguesia a fragmentos consideráveis do proletariado. Como diz Madeleine Albright, “o fascismo depende tanto dos ricos e poderosos como do homem ou da mulher da esquina ― dos que têm muito a perder e dos que não têm nada”.

Entre a alta burguesia, entre liberais, conservadores e fascistas, houve mais uma espécie de sociedade em permanente tensão, do que uma ligação orgânica. O fascismo era visto como uma “escolha muito difícil”, uma alternativa preferível à esquerda, ainda que não fosse o ideal. Não representava estabilidade social e econômica, com a volatilidade promovida pela circulação de elites e um incômodo personalismo messiânico.

É isso que precisamos ter em conta, e que permanece relevante no cenário político em 2022: o perigo desses grupos se juntarem, não por desejo, mas pelo que enxergam como necessidade. Perigo que foi ponto de inflexão na vitória dos fascismos em 1920 e 1930, e que permanece como espectro nas nossas eleições de 2022. E lembrar que o fascismo não desapareceu em 1945, como a peça de Thomas Bernhard não nos falha em recordar.

*Sergio Schargel é doutorando em ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Eduardo Soares Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Rubens Pinto Lyra Marcus Ianoni Gilberto Maringoni Lorenzo Vitral João Carlos Loebens Bento Prado Jr. Daniel Costa Carlos Tautz João Carlos Salles Marcos Aurélio da Silva Luiz Marques Chico Alencar Liszt Vieira Vanderlei Tenório Julian Rodrigues Eliziário Andrade Chico Whitaker Paulo Nogueira Batista Jr Rafael R. Ioris Tales Ab'Sáber José Geraldo Couto Boaventura de Sousa Santos Thomas Piketty Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ronald Rocha João Adolfo Hansen Henri Acselrad Mário Maestri Jorge Branco Gilberto Lopes Airton Paschoa Eleonora Albano André Singer André Márcio Neves Soares João Paulo Ayub Fonseca Matheus Silveira de Souza Afrânio Catani José Machado Moita Neto Leonardo Boff João Sette Whitaker Ferreira Berenice Bento Slavoj Žižek Antonino Infranca Benicio Viero Schmidt Caio Bugiato Ronaldo Tadeu de Souza Vladimir Safatle Samuel Kilsztajn Celso Favaretto Manuel Domingos Neto Leonardo Sacramento Jorge Luiz Souto Maior José Luís Fiori José Costa Júnior Henry Burnett Érico Andrade Antonio Martins Denilson Cordeiro Alysson Leandro Mascaro Paulo Sérgio Pinheiro Marilena Chauí Mariarosaria Fabris Fábio Konder Comparato Tadeu Valadares Eugênio Trivinho Ricardo Fabbrini Andrew Korybko Elias Jabbour Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Leonardo Avritzer Sergio Amadeu da Silveira Eleutério F. S. Prado Luiz Bernardo Pericás Bruno Fabricio Alcebino da Silva Bernardo Ricupero Antônio Sales Rios Neto Daniel Brazil Fernando Nogueira da Costa Ronald León Núñez Michel Goulart da Silva Maria Rita Kehl Francisco Pereira de Farias Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Antunes Valerio Arcary Paulo Martins Armando Boito Valerio Arcary Lincoln Secco Luciano Nascimento Luis Felipe Miguel Kátia Gerab Baggio Vinício Carrilho Martinez João Lanari Bo Francisco de Oliveira Barros Júnior Michael Roberts Tarso Genro Celso Frederico Michael Löwy Heraldo Campos Marjorie C. Marona Annateresa Fabris Flávio Aguiar Luiz Renato Martins Osvaldo Coggiola Luiz Roberto Alves Daniel Afonso da Silva Rodrigo de Faria Alexandre Aragão de Albuquerque Andrés del Río Jean Marc Von Der Weid Ari Marcelo Solon Ricardo Musse José Micaelson Lacerda Morais Marcelo Módolo Gabriel Cohn Juarez Guimarães Claudio Katz Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Capel Narvai Manchetômetro Ricardo Abramovay Remy José Fontana Dênis de Moraes João Feres Júnior Atilio A. Boron Renato Dagnino Francisco Fernandes Ladeira Bruno Machado Marcos Silva Marilia Pacheco Fiorillo José Raimundo Trindade Flávio R. Kothe Everaldo de Oliveira Andrade Luís Fernando Vitagliano Fernão Pessoa Ramos Eduardo Borges Igor Felippe Santos Anselm Jappe Luiz Werneck Vianna Sandra Bitencourt Priscila Figueiredo Walnice Nogueira Galvão Marcelo Guimarães Lima Dennis Oliveira Milton Pinheiro Jean Pierre Chauvin Paulo Fernandes Silveira Salem Nasser Otaviano Helene Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Carlos Bresser-Pereira Gerson Almeida José Dirceu Carla Teixeira Ladislau Dowbor Yuri Martins-Fontes

NOVAS PUBLICAÇÕES