Por NAOMAR DE ALMEIDA-FILHO*
Apresentação do livro recém-lançado de Boaventura de Sousa Santos.
Wuhan, Centro-Sul da China, 31 de dezembro de 2019. Autoridades sanitárias chinesas anunciaram o primeiro caso de uma nova síndrome respiratória viral aguda. Novos casos surgiram, alguns muito graves, seguidos de óbitos, principal- mente entre idosos e pessoas que apresentavam comorbidades. O surto epidêmico rapidamente se espalhou na província de Hubei. Um novo coronavírus, batizado de Sars-CoV-2, foi detectado; a síndrome foi então reconhecida como uma nova doença e ganhou o nome de Covid-19. Essa epidemia rapidamente correu mundo, até que, em março de 2020, a OMS oficialmente reconheceu-a como pandemia.
Em poucos meses, em todo o planeta, dezenas de milhões de casos foram confirmados, centenas de milhares de pessoas morreram. O impacto econômico e social da pandemia foi (e tem sido) catastrófico: empresas e empregos desapareceram como resultado das medidas de controle dessa doença grave, para a qual não existe ainda vacina nem tratamento específico.
No começo da pandemia, quando o continente europeu sofria intensamente com uma avalanche de casos e óbitos, caos instalado nos sistemas de saúde e crises econômica e política, muitos intelectuais se alinharam para abordar diferentes aspectos da catástrofe recém anunciada. Com relatos pertinentes, porém às vezes parciais e apressados, grandes nomes do pensamento contemporâneo revisitaram seus respectivos sistemas e modelos conceituais à luz (ou contraluz) da pandemia.
Houve de tudo – da confusão inicial a um pessimismo inercial, do otimismo midiático ao ceticismo teórico, de denúncia das distopias ao voluntarismo prescritivo, da análise política à especulação metafísica.
Não obstante, por mais politicamente progressistas que sejam algumas dessas análises, devemos manter a vigilância epistemológica, o que para nós compreende a atitude descolonizadora radical em relação a tais discursos. Para entender a pandemia e seus impactos, reais e imaginários, numa perspectiva realista e localizada em nosso próprio contexto, devemos mais que nunca buscar referências conceituais, metodológicas e políticas nas matrizes de pensamento do Sul global. Este é o convite insistente que nos traz Boaventura de Sousa Santos.
Inicialmente convocado pela pandemia e seus pesares, Boaventura escreveu vários artigos de combate, ágeis e cortantes, reunidos num livreto intitulado A cruel pedagogia do vírus. Dilemas deste tempo, deste mundo e desta conjuntura nos foram apresentados por meio dessa intrigante alegoria, a de que podemos aprender com essa doença sobre temas fundamentais de nosso passado e sobre questões urgentes de nosso futuro. Naqueles ensaios, Boaventura esboça uma nova articulação política e social a fim de retomar processos civilizatórios possíveis e viáveis, com a esperança de que a humanidade poderá tornar-se menos arrogante em sua relação com este planeta, nossa morada. No capítulo final daquele peque- no livro, intitulado “O futuro pode começar hoje”, Boaventura generosamente promete um outro volume, a fim de aprofundar esses temas, pensando novos e muitos caminhos.
Agora, o mestre cumpre sua promessa e nos apresenta O futuro começa agora: da pandemia à utopia, monumental ensaio sobre a sociedade pós-pandêmica, sua complexidade, seus antecedentes e seus futuros possíveis. Neste livro, convida-nos a refletir sobre questões ditas ou inadvertidas, de todo modo cruciais para pensar o momento presente e futuros a serem construídos. Será mesmo que o nosso problema mais crucial é a atual pandemia da Covid-19? Ou já estamos, há tempos, numa emergência de escala planetária que agora visibiliza riscos e potencializa perigos, sendo a pandemia apenas mais uma dessas ameaças? Nesta hora, será que passamos também por uma crise do pensamento, aquela matriz intelectual iluminista, agora quase ineficaz para enfrentar a desrazão que rompe pactos políticos históricos? Será que as crises econômicas e políticas decorrentes do impacto das estratégias de controle da pandemia terão algum horizonte de superação neste modo de produção, nesta ordem econômica mundial e nesta conjuntura atual? Essas crises, tais e tantas, realmente aceleram a transformação de um modo de vida datado, prenunciando uma transição paradigmática?
Como mobilizar vontades, gerar energias, elaborar projetos, conduzir ações e organizar instituições, mediante atos, declarações e compromissos articuladores de sujeitos humanos e seres não humanos, visando à construção de um mundo mais justo, mais solidário, mais sustentável, mais compartilhado, mais vivo?
Este livro é um texto denso e refletido, carinhosamente concebido e muito bem executado, atingindo rigorosidade analítica, responsabilidade política e sensibilidade pessoal, com profunda preocupação ética. Passo agora a resumir sua estrutura e alguns tópicos, com ênfase na análise dos múltiplos elementos e facetas da pandemia, na prospecção de cenários e nas declarações mobilizadoras, opor- tunas e necessárias para ativar práticas de resistência, organização e ação capazes de demonstrar que é possível um outro futuro, quando a pandemia tiver passado.
No início, somos agraciados com um apanhado histórico das pandemias, um grande esforço para contextualizar as diferentes mudanças estruturais do modo de produção e respectivas transições paradigmáticas do modo de pensamento sobre a vida, o mundo humano e a saúde. Em seguida, defrontamo-nos com um diagnóstico duro, baseado em relatos detalhados e objetivos de injustiças, iniquidades e absurdos provocados pelo impacto da pandemia nas vidas de pessoas, grupos, nações e lugares. Seguem-se análises sistemáticas e cuidadosas, nas quais Boaventura aplica com competência e consistência sua teoria do Estado capitalista, colonialista e patriarcal, num alentado rapport das políticas públicas de enfrentamento da pandemia em diferentes países.
Num capítulo extraordinário, que julgo central nesta obra, Boaventura apresenta três cenários plausíveis para um mundo pós-pandêmico. Em suas palavras, os cenários são: (1) tudo como antes e pior: capitalismo abissal e Estado de exceção securitário; (2) pele capitalista, máscara socialista: o novo neokeynesia- nismo; (3) barbárie ou civilização: alternativas ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado.
Sem maior explicação, convidando a leitora a conferir no texto, considero o cenário 1 como indesejável, o cenário 2 como inviável e o cenário 3 no registro dos possíveis sonháveis. O próprio Boaventura identifica esta última hipótese com o kairós da Antiguidade grega, “um tempo que se desdobra em duas temporalidades, o tempo utópico de imaginação de novos paradigmas e o tempo histórico da transição paradigmática”. Esse cenário implica uma superação dialética da contradição entre civilização e barbárie, necessária para se construir e dialogar sobre uma saída para o futuro do mundo, nas mãos (e nas mentes) daqueles e daquelas que, na história colonial, foram sempre excluídos, segregados, oprimidos, silenciados e negados como bárbaros. Para enfrentar os desafios dessa superação, Boaventura nos propõe denunciar e lutar contra omissões, repressões e intervenções de Estados e governos, no registro do fascismo social, implicados em genocídios e epistemicídios em todo o mundo que se supunha civilizado. Os desdobramentos e possibilidade desse cenário constituem subsídios para um manifesto esperançoso sobre o qual uma humanidade melhor pode emergir do pesadelo da pandemia.
Neste livro, obra de maturidade que não esconde um vigor militante juvenil, sempre inquieto, mas já impaciente, Boaventura de Sousa Santos mostra como a pandemia da Covid-19, evento crítico, episódio crucial, marco histórico que inicia um novo século, propicia uma convergência dos múltiplos focos de sua obra, numa perspectiva panorâmica, totalizante, rigorosa, consistente e ética. De muitas maneiras, portanto, este livro põe à prova, ponto a ponto, pertinência, consistência e validade do pensamento-ação boaventurano, que dele emerge fortalecido e justificado, enriquecendo todo um edifício teórico que segue em construção. Enfim, devo concluir destacando que as reflexões e análises trazidas por esse exercício de retomada da ecologia de saberes retorna com novos elementos à matriz conceitual que o origina e contribui para viabilizar a utopia realista que a todos nós une, reúne e reanima.
*Naomar de Almeida-Filho é professor titular de epidemiologia do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA; titular da Cátedra de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Referência
Boaventura de Sousa Santos. O futuro começa agora: da pandemia à utopia. São Paulo, Boitempo, 2021, 426 págs.