O golpe de estado em Washington: lições para o Brasil

Imagem: Luiz Armando Bagolin
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

A invasão do Capitólio terá sido uma brincadeira, comparada com uma eventual tomada pelas hostes bolsonarianas, do Congresso Nacional, em Brasília

No meio da tarde de 6 de janeiro, assisti, transmitida ao vivo pela televisão, a criminosa invasão do prédio do Capitólio em Washington, onde ficam o Senado e a Câmara de Deputados dos Estados Unidos – vandalizados pelos apoiadores de Donald Trump, que também atacaram os congressistas.

Veio-me à cabeça outra invasão de Parlamento, na tentativa de golpe de Estado, pelas forças armadas na Espanha, em 23 de fevereiro de 1981. Os membros da Câmara de Deputados estavam em meio a uma votação. De repente, irrompe no plenário o tenente-coronel Antônio Tejero, da Guarda Civil, acompanhado de um grupo de homens, que se põem a atirar contra os deputados. Todos se agacham atrás de suas mesas. Somente permaneceram sentados, incólumes em meio à saraivada de balas, o presidente do governo Adolfo Suárez, o secretário-geral do partido comunista espanhol, Santiago Carrillo, e o vice-presidente do governo, tenente-general do exército Manuel Gutiérrez Mellado – que foi agredido por Tejero. Essa cena é descrita em um extraordinário livro, A Anatomia de um instante, de Javier Cercas.

Em Washington, os senadores, estendidos no chão, faziam dos móveis barricadas. Os invasores quebraram janelas para entrar, atacaram policiais, se instalaram na mesa da presidência do Senado. Enquanto a insurreição de Washington foi transmitida ao vivo, o vídeo do ataque à Câmara de Deputados na Espanha foi divulgado apenas depois de estancado o golpe de estado. Foi uma conspiração militar, sem participação popular, que pretendeu envolver o rei Juan Carlos I. O golpe em Madrid foi derrotado quando, na madrugada do dia 24 de fevereiro, o rei foi à TV condenar a tentativa frustrada. Em Washington, um dia antes, Trump insuflara suas hostes a um protesto com uso de força contra o Capitólio – que no dia 6 de janeiro confirmaria a eleição de Joe Biden para a presidência. Depois da invasão, que resultou em quatro mortes, Trump insistiu em denunciar uma suposta fraude no pleito e ainda declarou “adorar” os insurretos.

Que lições tirar, no Brasil, da tentativa de golpe contra o resultado das eleições presidenciais norte-americanas? A insurreição no Congresso em Washington não foi decorrência de uma conspiração militar, como em Madrid. Mas foi construída a partir de uma campanha consistente, durante quatro anos de solapamento das instituições democráticas, pelo presidente Trump, desde a campanha eleitoral até as acusações ao novo governo eleito.

Aqui, o presidente Jair Bolsonaro tem macaqueado impunemente, nos menores detalhes, a cantilena antidemocrática de Trump. Os ataques ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal, a desqualificação das oposições, a rotulação de governadores como inimigos, a tachação da imprensa como um bando de “canalhas” são evidências de seu objetivo de destruir o constitucionalismo democrático de 1988 para instalar uma autocracia. Todos os dias o presidente insufla seus apoiadores, exaltando torturadores, desqualificando as vítimas da tortura (como fez com a presidenta Dilma Rousseff), prometendo impunidade para a violência ilegal dos policiais militares e acirrando o negacionismo da pandemia.

Pelo andar dessa pregação autoritária, somada à denúncia preventiva de eleições fraudulentas e à desqualificação das urnas eletrônicas, o presidente Bolsonaro prepara o terreno para denunciar as eleições, caso venha a ser derrotado. Como disse em alto e bom som, logo depois do golpe em Washington, teimando delirantemente sobre a fraude da eleição de Biden, que foi confirmada pelo Congresso norte-americano: “Se aqui no Brasil tivermos o voto eletrônico em 2022, será a mesma coisa”. A invasão do Capitólio terá sido uma brincadeira, comparada com uma eventual tomada pelas hostes bolsonarianas, do Congresso Nacional, em Brasília.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado do Departamento de Ciência Política da USP e ex-ministro dos Direitos Humanos.

Publicado originalmente no blog da Comissão Arns.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A invasão da região de Kursk, na Rússiaguerra na ucrânia 9 30/08/2024 Por FLÁVIO AGUIAR: A batalha de Kursk, de 81 anos atrás, lança uma sombra lúgubre sobre a iniciativa de Kiev
  • Marx vai ao cinemacultura mooooca 28/08/2024 Por ALEXANDRE VANDER VELDEN, JOÃO LEONARDO MEDEIROS & JOSÉ RODRIGUES: Apresentação dos organizadores da coletânea recém-publicada
  • Cidadania culturalMarilena Chauí 2 30/08/2024 Por MARILENA CHAUI: Trecho do livro recém-lançado
  • Um rebanho de cegos?olhos olhar 31/08/2024 Por ROMUALDO PESSOA CAMPOS FILHO: Os erros de estratégia da esquerda brasileira no combate à extrema direita e ao fascismo
  • Sobre o “hine nacionale”lacração 29/08/2024 Por LUIS FELIPE MIGUEL: Diante da lacração identitária, a esquerda sempre cede
  • Getúlio Vargas — o estadistaLincoln Secco 2024 3 24/08/2024 Por LINCOLN SECCO: Getúlio Vargas deixou respostas suspensas. Suas faces foram a de um revolucionário aparentemente a contragosto, de um legalista apoiado no voto, de um ditador anticomunista, de um líder trabalhista sincero
  • A campanha de Guilherme Boulosavenida paulsita 29/08/2024 Por DIOGO FAGUNDES: Boulos tem e seguirá tendo imensas dificuldades em sua campanha pelo modo como ela vem sendo conduzida. Se a linha política não mudar, o risco de não vencer é concreto
  • PT — uma históriavermelho alívio espacial 30/08/2024 Por LINCOLN SECCO: Comentários sobre o livro de Celso Rocha Barros
  • Fascismo comum, sonho e históriaTales-Ab 01/09/2024 Por TALES AB’ SABER: O regime fascista sempre pesa sobre a língua e a própria linguagem, como pesa originalmente sobre o psiquismo disponível ao passado simplificado do fascista
  • O problema do negro e o marxismo no Brasilrosto 02/09/2024 Por FLORESTAN FERNANDES: Não é só o passado remoto e o passado recente que enlaçam raça e classe na revolução social

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES