O julgamento de Jair Bolsonaro

Imagem: Arthur Bomfim
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Por DANIELE DE PAULA*

O julgamento de Bolsonaro e seus aliados marca um momento histórico para a democracia brasileira, oferecendo uma oportunidade de romper com a tradição de impunidade que marca a história do país

1.

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete réus – Walter Braga Netto, Mauro Cid, Alexandre Ramagem, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira – terá início no dia 2 de setembro de 2025. Os acusados respondem pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado ao patrimônio público, entre outros crimes.

O principal símbolo dessa trama golpista, como se sabe, foram os ataques do dia 8 de janeiro de 2023. As imagens da destruição promovida por apoiadores de Bolsonaro circularam o mundo, enquanto as investigações da Polícia Federal revelaram outras dimensões do ataque, deixando boa parte da sociedade brasileira perplexa. No entanto, o histórico de Jair Bolsonaro já deixava evidente, muito antes dele sequer ser candidato à presidência, o seu desprezo pela democracia e o seu fascínio por regimes autoritários.

Em uma entrevista de 1999, por exemplo, o então deputado federal afirmou que se fosse presidente, “daria golpe no mesmo dia, no mesmo dia!”.[i] Jair Bolsonaro também se notabilizou por suas falas elogiosas ao regime militar e pela defesa de torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.[ii]

Em 2016, vale lembrar, ele fez questão de prestar uma homenagem a Ustra durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, atitude que teve grande repercussão na mídia, mas nenhuma consequência efetiva para o deputado que ousava exaltar um torturador diante de todo o Brasil.

No mesmo ano, já como aspirante à presidência da República, Bolsonaro reafirmou, em entrevista à rádio Jovem Pan, uma de suas declarações mais polêmicas e brutais: “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.[iii] A frase não apenas escancarava a sua postura de exaltação ao regime militar e ao aparato repressivo da ditadura, como também atacava diretamente às vítimas e familiares de vítimas da ditadura.

A campanha à presidência em 2018, por sua vez, utilizou o slogan “Ustra vive!”, além de camisetas com o rosto do torturador estampado. Um verdadeiro show de horrores para qualquer pessoa com o mínimo de comprometimento com os direitos humanos.

Eleito presidente, Jair Bolsonaro continuou a dar sinais de seu desprezo pela democracia. Ele deslegitimou o sistema eleitoral brasileiro e as urnas eletrônicas em diferentes ocasiões; buscou impor uma visão distorcida sobre a ditadura de 1964; incentivou protestos que pediam o fechamento do Congresso e intervenção militar; utilizou o 7 de setembro para fazer comícios políticos com tom golpista, entre outros exemplos que poderiam ser citados. Essas ações de desprezo pela democracia, contudo, se intensificaram à medida em que a derrota para Luís Inácio Lula da Silva – apontado como candidato favorito pelas pesquisas de 2022 – se tornava mais evidente.

2.

É nesse contexto, no final de seu mandato, que Jair Bolsonaro parece ter apostado na saída abertamente golpista. No entanto, o que o levou a acreditar que seria bem-sucedido em sua tentativa de golpe? Em outras palavras, por que Jair Bolsonaro e seu grupo apostaram todas as fichas em uma ofensiva tão escancarada? A resposta, a meu ver, não está na certeza do êxito golpista, mas na confiança da impunidade, caso algo desse errado.

Vale pontuar que a própria carreira de Jair Bolsonaro, enquanto militar, foi marcada pela impunidade. Em 1987 uma reportagem da revista Veja denunciou o plano de Bolsonaro – na época capitão do Exército – de explodir bombas de dinamite numa unidade militar do Rio de Janeiro, como protesto por melhores salários.

Embora Jair Bolsonaro tenha negado as acusações na época, uma perícia da Polícia Federal confirmou que ele era o autor dos croquis da bomba, apresentados pela revista Veja como prova da denúncia. Condenado por unanimidade pelo Conselho de Justificação em 1988, Bolsonaro acabou sendo absolvido pelo Superior Tribunal Militar, ao que tudo indica, por sua amizade com o relator do processo e por desavenças deste com o ministro Leônidas Pires (VICTOR, 2022, p. 108).

A ditadura de 1964 – tão aclamada por Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos – também se encerrou sem nenhuma punição para os agentes do Estado envolvidos em graves violações de direitos humanos. Isso porque a Lei de Anistia, aprovada em 1979, garantiu a impunidade aos perpetradores em seu artigo primeiro, através dos chamados “crimes conexos”.[iv]

Além disso, a aprovação da lei foi acompanhada por um discurso de reconciliação nacional e de “virada de página”, o que favoreceu uma transição pactuada e uma política de esquecimento em relação ao passado autoritário. Nesse sentido, como ironiza o historiador Daniel Aarão, “da ditadura fez-se a democracia, como um parto sem dor, sem gradiloquencia ou heroísmo, sem revoluções ou morte d’homem. Cordialmente, macuinamente, brasileiramente” (AARÃO, 2000, p. 11).

Evidentemente, esse modelo de transição política trouxe consequências negativas para o país, sendo constantemente apontado como um dos fatores que dificultou a construção de um sentimento democrático por parte da sociedade brasileira. Como destaca Rodrigo Motta, “faltou aos líderes da Nova República enfrentar mais decididamente o legado da ditadura, para expor os seus crimes e mostrar à população a sua herança negativa” (MOTTA, 2021, p. 302).

No limite, eu diria ainda que o modelo de transição adotado pelo Brasil favoreceu o surgimento de uma figura como Jair Bolsonaro, que construiu a sua carreira política com elogios à ditadura e que acreditou, fielmente, que poderia perpetuar novas formas de golpismo sem nenhuma consequência.

Portanto, no ano em que a Nova República completa 40 anos – a maior experiência democrática da história republicana do país – o julgamento de Bolsonaro e seus cúmplices se torna histórico. É a chance de não só responsabilizar aqueles que atentaram contra a democracia, como também a de romper com a tradição de impunidade que atravessa a nossa história.

*Daniele de Paula é mestranda no programa de História Social da USP.

Referência


AARÃO, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Passados Presentes: o golpe de 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro, 2021.

VICTOR, Fabio. O poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

Notas


[i] Ver: https://veja.abril.com.br/coluna/radar/bolsonaro-fala-em-dar-golpe-desde-os-anos-90/.

[ii] De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, Ustra foi responsável por 45 mortes e desaparecimentos forçados, além de inúmeros casos de tortura ocorridos durante a ditadura militar. Em 2008, o coronel também se tornou o primeiro agente do estado reconhecido como torturador pela justiça brasileira.

[iii] Ver: https://jovempan.com.br/programas/panico/defensor-da-ditadura-jair-bolsonaro-reforca-frase-polemica-o-erro-foi-torturar-e-nao-matar.html.

[iv] É importante destacar que crimes de graves violações de direitos humanos são imprescritíveis. A Argentina, que também havia aprovado leis de anistia durante sua transição democrática, posteriormente as declarou nulas, possibilitando o julgamento dos agentes do Estado. No caso do Brasil, em 2010, a OAB entrou com uma ação para que a Lei de Anistia fosse revista, mas na ocasião o STF optou por manter a interpretação atual que garante a impunidade aos perpetradores.


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