Por LINCOLN SECCO*
Comentário sobre o romance de Giuseppe Tomasi de Lampedusa
Recordo-me que, nas páginas de debate da imprensa corporativa dos anos 1980, sempre havia algum político tecendo alusões ao romance O Leopardo, de Lampedusa. Ou, talvez, ao filme de Lucchino Visconti (1963). Antes de se transformar num best seller, o livro foi rejeitado por duas grandes editoras italianas, Einaudi e Mondadori. Foi publicado pelo editor comunista Giangiacomo Feltrinelli (1958), o “aristocrata subversivo”.[i]
Nos anos 1980 vivíamos uma vez mais a oportunidade histórica de uma revolução democrática em curso, diluindo-se na transação com as classes dominantes. Era a “transição prolongada”, de acordo com Florestan Fernandes. A Nova (?) República carregava in petto o “entulho autoritário”, segundo o jornalista Jânio de Freitas. Outros, com mais estilo, como Severo Gomes, citavam a frase de Lampedusa que todos conheciam sem ter lido o livro.
Foi a primeira vez que O Leopardo chamou-me a atenção. Agora, releio em outra oportunidade de mudança social (2022) em que o ímpeto mudancista ressurge amparado nas forças do passado.
O Leopardo talvez seja o romance italiano mais citado na vida política brasileira. Mais que o singelo Pinóquio, fonte de sátiras dos anos 1980. Para aquilatar a fortuna de O Leopardo entre nós basta lembrar que teve cinco traduções no Brasil: Rui Cabeçadas (Difel, 220 páginas, de 1963); José Antonio Pinheiro Machado (L&PM, 206 páginas, de 1983); Marina Colasanti (Record, 300 páginas, de 2000); Leonardo Codignoto (Nova Cultural, 318 páginas, de 2003);[ii] e Maurício Santana Dias (Companhia das Letras, 381 páginas, de 2017).
A frase mais conhecida remete ao diálogo entre o Príncipe de Salina e seu sobrinho Tancredi: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.
Ela foi lida como a artimanha da velha aristocracia em compor-se com a burguesia ascendente, a fim de impedir uma revolução popular. No entanto, não se tratava de eliminá-la, mas de dirigi-la, mitigá-la, deformá-la e aparar seus excessos. A frase completa era um chamado à ação.
O romance foi visto por intelectuais de esquerda italianos como reacionário. No entanto, com o tempo passou a ser lido como a crítica do Risorgimento (a unificação italiana feita pelo alto, ou seja, mais pelo novo rei do que por Garibaldi).
Nos 50 anos em que o enredo transcorre houve alterações de monta: “O Leopardo começa com a oração do Rosário e termina com a destruição das relíquias religiosas e profanas da casa Salina”.[iii] A Revolução incompleta do Risorgimento deu um passo para a retirada da Igreja do centro da vida social.
O narrador escreve bem depois dos acontecimentos, marcando com ironia outros momentos históricos que as personagens desconhecem, e que ele os revela como uma espécie de cumplicidade com o leitor.
Essa modernidade do texto permite quebrar a linearidade narrativa. Assim, quando estamos enlevados pelos desejos romanescos de Tancredi ou Concetta ou pela beleza de Angelica, o pessimismo do narrador nos antecipa sua velhice e decadência. Os instantes de fuga e paixão são temperados pela corrosão dos anos que leitor e narrador, acumpliciados, já pressentem.
Ora, no Brasil, nos acostumamos com um senso comum que nos dita que não há mudanças, apenas a reiteração de uma grande colônia exportadora de commodities. Nossa independência teria sido um acordo, não houve República e 1930 não teria sido nenhuma revolução. Justas ou injustas, essas formulações devem ser debatidas com o ponto de vista da participação das classes subalternas. Afinal, elas lutaram pela independência, abolição, República e por uma revolução em 1930, mas foram afastadas pelo novo poder.
O Leopardo registra a crítica dos limites históricos da burguesia italiana por um ângulo oposto: o da nobreza. Dom Fabrizio, o príncipe de Salina, é um aristocrata cético em relação aos seres humanos, cioso de sua tradição familiar e ciente da imobilidade dos costumes da Sicília. No entanto, é perfeitamente dotado de consciência de classe.
A palavra “classe” aparece várias vezes na obra e o protagonista observa todos os seus interlocutores com consciência do papel desempenhado pelos diversos grupos sociais. Ele resume a Revolução na gravata do parvenu que passa a frequentar a sua casa; observa a filha do burguês a sustentar o garfo pela metade do cabo; mesmo quando ela fala em tom adequado, parece controlada demais; não lhe escapam as convenções, aprendidas no melhor dos colégios do norte; mas ela não tem naturalidade.
Até o sobrinho do protagonista, Tancredi, vinculado à luta pela unificação italiana, observa na futura noiva burguesa o dedo mínimo apontado para o alto, enquanto segura a taça; ou a percebe tirando um fiapo de alimento do dente com a unha. Ele vai, ainda assim, esposar a filha do novo rico, que é mais rico que todos os nobres da região.
O romance também introduz outras possibilidades de união. A prima de Tancredi, Concetta, será deixada de lado pelo fluxo das coisas, já que ele necessita casar-se com uma burguesa que lhe garantirá os recursos para uma carreira política no novo regime. Mas também por erros de avaliação de uma anedota que só ao final da vida lhe será revelada falsa. Aqui o autor introduz um recurso romanesco que o historiador não tem: como teria sido se…
De onde provêm a consciência de classe de Dom Fabrizio, o príncipe de Salina? Ora, ele é um nobre e pertence a uma classe que tem um pequeno número de membros inter-relacionados. Todos eles (e elas, já que as mulheres nobres gozavam de maior independência) com um vínculo privilegiado com as instituições que simbolizam a sociedade do Antigo Regime como um todo (Rei, corte, parlamento).[iv]
A burguesia do século XIX ainda estava desenvolvendo o mercado integrado e um Estado para adquirir sua própria consciência. Tomaria tempo ainda para que ela fosse além dos interesses corporativos imediatos. Na Itália isso se deu através do que Gramsci chamou de Revolução Passiva, diferentemente do radicalismo jacobino da Revolução Francesa.
As classes dominantes exibiram sua consciência quando projetaram uma nação independente, por cima dos particularismos feudais e do universalismo papal. Num país semi-colonial como o Brasil, cujas tarefas burguesas ficaram para trás, não seria possível um Leopardo.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).
Publicado originalmente no site holofote.
Notas
[i]Feltrinelli, Carlo. Feltrinelli – Editor, Aristocrata e Subversivo. São Paulo: Conrad, 2006.
[ii]Belém, Euler F. “Feliz do país que tem quatro traduções do grande romance O Leopardo, do italiano Tomasi di Lampedusa”, Jornal Opção, N. 2086, Goiânia, sábado 27 junho.
[iii]Dias, Maurício S. “Posfácio”, in Lampedusa, Giuseppe T. O Leopardo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 282.
[iv]Hobsbawm, E. “Notas sobre Consciência de Classe”, in: Id. Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 38.