Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO*
Considerações sobre a peça teatral de Dias Gomes e o filme de Anselmo Duarte
“Ação: Salvador, Época: atual.”
Assim começa O pagador de promessas, peça teatral de Dias Gomes, encenada pela primeira vez em 1960, em São Paulo, pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Dois anos depois, Anselmo Duarte levaria as angústias de Zé do Burro (o protagonista da narrativa) para as telas do cinema.
Ao usar o termo “atual”, Dias Gomes, é bem provável, estava se referindo ao momento em que gestou e escreveu a peça. No filme, também não é fornecida nenhuma data. Ao reler a peça e rever o filme, a atualidade não deixa de impressionar. A narrativa nos leva a refletir sobre as adversidades enfrentadas pelo povo de santo[i], não apenas na Bahia, mas em outros estados brasileiros, onde as religiões de matriz africana se fazem presentes. Atualmente, a Igreja Católica abre suas portas e convive de forma harmoniosa, ao menos de forma aparente, com as práticas do candomblé. Assim, o que torna a peça/o filme atual, não é exatamente o conflito entre catolicismo e o candomblé, mas o preconceito e a intolerância contra as religiões de matriz africana que ainda se fazem presentes na sociedade brasileira.
Discriminação e ódio contra o povo de santo
As primeiras expressões do candomblé surgiram no Brasil no início do século XIX, a partir da adaptação cultural dos cultos africanos trazidos pelos povos escravizados. Os primeiros terreiros de candomblé surgiram na Bahia, sendo que o Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca), regido pelos orixás Xangô e Oxóssi, localizado no bairro popular do Engenho Velho da Federação, em Salvador, é considerado um dos mais antigos do país, fundado por volta de 1820. Em 1984, foi tombado pelo IPHAN e considerado Patrimônio Histórico do Brasil. Em 2016, o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade Federal da Bahia, mapeou mais de 1.100 terreiros de candomblé localizados em Salvador e região metropolitana, a grande maioria deles liderados por mulheres pretas e consagrados a orixás femininas, sobretudo Oxum e Iansã.
Durante os séculos XIX e XX, por serem violentamente punidos e perseguidos, os candomblecistas criaram o sincretismo religioso, associando cada orixá a um santo católico. Sob a aparência de que estavam cultuando os santos católicos, o povo de santo continuava homenageando seus orixás protetores. O sincretismo tornou-se, a partir de então, uma forma inteligente de resistência.
Desde fins do século XX, muitas igrejas católicas, particularmente na Bahia, vêm abrindo suas portas para o povo de santo, realizando, inclusive, rituais conjuntamente. Contudo, o candomblé e seus praticantes ainda são vítimas de discursos de ódio, de ataques aos terreiros (com destruição e difamação de seus objetos sagrados), de agressões físicas e verbais, que podem culminar em assassinatos. Não raro, essas violências também estão associadas ao fato de o candomblé ser amplamente praticado pelo povo preto, ou seja, as pessoas são vítimas, tanto de racismo religioso, como de cor.
Com a intenção de reprimir o racismo religioso, no início de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo e protege a liberdade religiosa. Esperava-se que a nova lei contribuísse para punir com mais rigor quem comete o crime de racismo religioso e, por outro lado, melhor protegesse as vítimas. Contudo, em 2024, foram registradas (pelo Disque 100), 2.472 denúncias de intolerância religiosa, um aumento de 66,8%, comparado ao ano anterior (1.481 casos). A maior parte das vítimas foram mulheres pretas praticantes de crenças de matriz africana.
De acordo com a pesquisa “Respeite meu terreiro” (coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras), que ouviu representantes de 255 terreiros em todo o país, quase metade dos entrevistados relatou ter sofrido em torno cinco ataques, entre os anos de 2020 e 2021. No mesmo período, 78% dos entrevistados revelaram que foram agredidos na rua, no comércio, na escola, em repartições públicas e, até mesmo, nas delegacias onde foram registrar queixas. Segundo as vítimas, basta que a pessoa seja identificada como adepta de alguma religiosidade afro-brasileira, para sofrer o preconceito.
Apesar de apenas 2,1% da população brasileira ter se declarado como praticante de alguma religiosidade de matriz africana, segundo dados do censo de 2020, é o grupo que mais sofre discriminação e violência (verbal e física), comparado com outros grupos religiosos do país. Esse percentual baixíssimo também pode estar associado ao receio que as pessoas têm de sofrer algum tipo de violência, ao assumir sua religiosidade afrodescendente.
Em Salvador, em 2019, devido aos inúmeros ataques em vários terreiros de candomblé, o vereador Edvaldo Brito (PSD) formalizou o pedido de criação de uma Delegacia Especializada de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, que ocorreu em 21 de janeiro de 2024, reconhecido como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. O dia foi escolhido em homenagem à mãe Gilda de Ogum, fundadora do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador, assassinada, em 2000, devido à sua religiosidade.
Paralelamente à criação da delegacia, foi instituída a Ronda de Defesa da Liberdade Religiosa – Omnira (palavra de origem iorubá que significa liberdade), operação da Polícia Militar no combate à intolerância religiosa e delitos ligados aos terreiros de matriz africana na capital baiana. Nesse sentido, é importante observar que, apesar de a delegacia atuar amplamente no combate à intolerância religiosa, acolhendo vítimas de várias crenças, as de matriz africana são as mais perseguidas e as que mais procuram a delegacia.
As ações de desrespeito, agressões físicas e verbais, ataques aos espaços de culto e demonização das divindades cultuadas no candomblé, bem como de seus praticantes, são exemplos de racismo religioso que persistem, revelando a atualidade da problemática levantada em O pagador de promessas.
A peça, o filme
O pagador de promessas marcou o retorno de Dias Gomes ao teatro, depois de um intercurso de 16 anos no rádio. O sucesso da peça foi estrondoso, tanto no Brasil, como em outros países, tornando seu autor no dramaturgo mais conhecido e mais representado. O texto foi traduzido para o inglês, francês, russo, polonês, espanhol, italiano, vietnamita, hebraico e grego e a peça foi encenada nos Estados Unidos (seis produções), Polônia (quatro produções), União Soviética, Cuba, Espanha, Itália, Grécia, Israel, Argentina, Uruguai, Equador, Peru, México, no então Vietnã do Norte e Marrocos (Gomes, 2008, p. 4).
Já o filme, mesmo depois da grande premiação e dos sucessos de bilheteria de Ainda estou aqui (2024) e Central do Brasil (1998), ambos de Walter Salles, de Cidade de Deus (Fernando Meireles e Katia Lund, 2002) e de Tropa de elite (José Padilha, 207), é o único, até a atualidade, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. Também foi indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (1963) e recebeu prêmios nos Festivais de Cartagena (Prêmio Especial de Júri, 1962), de San Francisco (Prêmio Golden Gate de Melhor Filme e Melhor Trilha Sonora, 1962), de Edimburgo (Critics Award, 1962) e o I Prêmio no Festival da Venezuela (1962), também foi laureado no Festival de Acapulco (1962). No Brasil, Leonardo Villar recebeu o Prêmio Saci de Melhor Ator (1962) e o filme foi amplamente premiado no Festival de Brasília, consolidando seu status como um marco do cinema nacional e influenciando gerações de cineastas.
Na “Lista dos 100 melhores filmes brasileiros”, lançada em 2016, pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema – ABRACCINE, o filme ficou em nono lugar, mesmo já passados mais de 50 anos de seu lançamento, revelando não apenas sua qualidade estética, mas a importância do tema abordado.
A partir de uma história simples, a tentativa de um homem do campo em cumprir sua promessa pela salvação de seu fiel companheiro, o burro Nicolau, Dias Gomes e Anselmo Duarte problematizam a complexidade de uma questão sociocultural ainda amplamente debatida no Brasil: o racismo e a violência frente às práticas populares associadas às religiões de matriz africana.
No filme, a grande maioria das cenas, com exceção de uma pequena introdução durante os letreiros, se passa na escadaria da Igreja do Santíssimo Sacramento do Passo, localizada no Centro Antigo de Salvador, transformada na escadaria da Igreja de Santa Bárbara. Ali, Zé do Burro (Leonardo Villar), o protagonista, viverá seus momentos de maior alegria (por ter quase cumprido sua promessa e salvo seu burro Nicolau) e de maior agonia (por não compreender e não ser compreendido pelo padre, por não reconhecer a mulher e por não entender os códigos morais e de conduta da grande cidade). Ali, naquela escadaria, Zé do Burro encontrará seu fim, que simbolizará um início para o povo de santo.
As primeiras cenas do filme já nos revelam aquilo que detonará o conflito do enredo: o sincretismo religioso. Num terreiro de candomblé, vemos várias pessoas incorporando orixás, dançando e cantando, entre eles podemos reconhecer: Oxum, Iemanjá, Omolú e Iansã. Num canto, Zé do Burro está ajoelhado, olhando devotamente para a imagem de santa Bárbara, ao terminar sua reza, faz o sinal da cruz e levanta-se. Zé do Burro é católico, mas frequenta e é simpatizante do candomblé.
Ao longo da narrativa, descobriremos que foi no terreiro de Iansã, que faz sincretismo religioso com santa Bárbara, que Zé do Burro fez sua promessa: se Nicolau conseguisse sobreviver ao acidente que sofreu, quando o galho de uma árvore caiu em sua cabeça durante uma chuva de trovões, ele levaria uma cruz tão pesada como a de Jesus Cristo até a Igreja de Santa Bárbara na cidade de Salvador, no dia da festa da santa. Por orientação da mãe de santo do terreiro de Iansã, a promessa deveria ser bem grande, afinal seu fiel companheiro também era bem importante. Iansã/Bárbara foi escolhida por Zé do Burro por ser a orixá/santa das chuvas e das tempestades.
Atendido, a Zé do Burro só restou percorrer as sete léguas que separavam seu sítio da Igreja de Santa Bárbara, carregando a cruz. Não há explicação de quantos dias Zé do Burro, seguido de sua esposa Rosa (Glória Menezes), demorou em cobrir a distância. Sabemos, apenas, que foi uma caminhada árdua: enfrentou o sol escaldante e a seca do sertão, as tempestades e a lama, passou fome, sede e frio. Em sua caminhada, despertou a compaixão dos sertanejos, que respeitosamente tiraram seus chapéus para deixá-lo passar. Já na cidade, próximo à igreja, a reação da população boêmia é outra: descaso e deboche, ninguém entende seu ato, alguém, de forma pejorativa, diz que Zé do Burro “é um palhaço”.
Ao chegar na escadaria, Zé do Burro está feliz, mais algumas horas a igreja abriria e ele cumpriria com sua promessa. Estaria quite com a santa, voltaria para casa e continuaria sua vida simples. Porém, nem tudo se resolve como Zé do Burro pensa. Padre Olavo (Dionisio Azevedo) não admite que ele tenha feito sua promessa para uma santa católica num terreiro de candomblé. Também não aceita o sincretismo religioso entre a santa e a orixá. Acreditando que Zé do Burro “caiu na tentação do demônio”, o padre proíbe sua entrada na igreja, impedindo-o de cumprir sua promessa.
Na narrativa, Zé do Burro é um representante da cultura popular, com fortes traços rurais. A relação que ele estabelece com os santos é praticamente pessoal. Sua esposa chega a afirmar que santa Bárbara é muito sua amiga. Os santos participam da vida rural, habitando as dependências das casas, na forma de imagens colocadas em oratórios ou capelas. A reciprocidade domina a relação entre os santos e seus fiéis: ofertando-lhes novenas e velas, os camponeses esperam que os santos os auxiliem em situações difíceis e os protejam, que estejam sempre prontos a auxiliar e intervir em situações cotidianas e até corriqueiras (Queiroz, 1973).
É essa relação de reciprocidade que Zé do Burro mantém com santa Bárbara: ela salvou seu melhor amigo em troca da promessa de carregar uma cruz e colocá-la dentro de uma igreja construída em sua homenagem. Enquanto não colocar a cruz no lugar em que prometeu, Zé do Burro se recusa a sair da porta da igreja, o medo de voltar sem cumprir a promessa e encontrar Nicolau morto é maior que a fome, a sede e o cansaço. Também tem medo de “se sujar” com a santa, com convicção ele explica à esposa: “Não, nesse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o crédito.
De outra vez o santo olha, consulta lá os seus assentamentos e diz: – Ah, você é o Zé do Burro, aquele que já me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa. Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue, seu caloteiro duma figa! E tem mais: santo é como gringo, passou calote num, todos os outros ficam sabendo”.
A sabedoria de Zé do Burro é popular, atribuindo aos santos comportamentos e pensamentos humanos. Mas, ele não acredita apenas em santos católicos. No primeiro diálogo com padre Olavo, ele explica como foi o acidente de Nicolau e as tentativas de salvá-lo. Muito ferido, a única forma de estancar o sangue foi colocando excrementos de vaca no ferimento. Contido o sangramento, Nicolau começou a tremer de febre.
Zé do Burro recorreu ao preto Zeferino que “cura tudo com duas rezas e três rabiscos no chão”, mas não adiantou. Foi então que ele resolveu fazer uma promessa bem grande no terreiro de candomblé de Iansã, dona dos raios e das trovoadas. E como para Zé do Burro, Iansã e santa Bárbara “são a mesma coisa”, ele se comprometeu a cumprir sua promessa na igreja da santa.
Para Zé do Burro não existe conflito em sua atitude. Ele compreende as rezas e mandingas de Zeferino, as danças e os cantos do candomblé de Iansã e as rezas para santa Bárbara, como práticas legítimas e associáveis. Porém, apesar de miscigenar essas práticas, Zé do Burro é católico, afinal ele promete levar uma cruz até a Igreja de Santa Bárbara e se recusa a finalizar sua promessa num terreiro de candomblé, como proposto por Minha Tia (Maria Conceição), vendedora de acarajés em frente da igreja, frequentadora do terreiro de Mãe Menininha. Fosse ele mais adepto do candomblé, teria prometido um caruru[ii] em homenagem à orixá.
Os pensamentos e crenças de Zé do Burro e de padre Olavo são divergentes. Legítimo representante da cultura oficial da Igreja Católica, padre Olavo não aceita nenhuma expressão da cultura popular e o ato de Zé do Burro é interpretado como um exagero. Considera “um atraso e uma porcaria” utilizar estrume de vaca para estancar sangue e com desdém afirma que “não está interessado nessa medicina”, pois Zeferino é um feiticeiro e suas rezas são “orações do demo” e feitas “para tentar”.
Os terreiros são “antros de feitiçaria”, possuem “falsas divindades” e promovem “rituais fetichistas”. Também não aceita o sincretismo entre santa Bárbara e Iansã: “essa confusão vem do tempo da escravidão. Os escravos africanos burlavam assim os senhores brancos, fingiam cultuar santos católicos quando na verdade estavam adorando seus próprios deuses. Não só santa Bárbara, muitos santos foram vítimas dessa farsa.” Totalmente comprometido com os ideais da classe dominante, padre Olavo proíbe a entrada de Zé do Burro na “casa de Deus”, pois, se o permitisse, ela se transformaria num local de “falsos ídolos pagãos, seria o fim da religião”.
O discurso de padre Olavo é ideológico, legitimando a ordem instituída de determinado grupo no poder. Porém, ele age dessa maneira porque, de fato, acredita na existência de apenas um deus e de uma só religião, o catolicismo. No filme, nas cenas em que se organiza a festa popular em homenagem à Iansã, vemos um padre atormentado, com um forte sentimento de perda e incapacidade, numa grande crise existencial.
Na escadaria da igreja, aqueles que nela não podem entrar, porque praticam ou são simpatizantes do candomblé, tocam atabaques e entoam os cantos de Iansã. Padre Olavo tenta sufocar os sons da festa batendo fortemente no sino. Acreditando no que prega, ele perdeu aquelas pessoas para o candomblé, ele não conseguiu impedir que elas se desgarrassem, transformando-se em fáceis alvos para uma falsa religião. Suas crenças e sua dedicação fervorosa ao catolicismo, o impedem de ser solidário e empático com Zé do Burro e com todas aquelas pessoas que querem apenas homenagear Iansã e santa Bárbara.
Zé do Burro e padre Olavo representam duas sacralidades diferentes. Enquanto o inocente e humilde homem do campo respeita as mais diferentes práticas religiosas, o padre só acredita, respeita e aceita o culto católico do qual é representante. Na narrativa, a cultura popular do sincretismo religioso surge em conflito com a cultura oficial da Igreja Católica.
Em seu estudo sobre a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, a partir das obras de François Rabelais, Bakhtin (1999) constatou que as expressões populares, marcadas pelo caráter cômico, paródico e festivo, eram de grande importância na vida das pessoas e muito diferentes das cerimônias oficiais e sérias da Igreja e do Estado. Para Bakhtin (1999), essa diferenciação revela que essas pessoas possuíam uma visão de mundo e um comportamento exterior à Igreja e ao Estado, criando um mundo paralelo, não oficial, ao qual pertenciam em maior ou menor proporção e no qual viviam em situações determinadas.
É exatamente esse caráter festivo da cultura popular, em conflito com a cultura oficial católica, que é expresso em O pagador de promessas. Conflito que surge na alegria, nas danças e cantos, no jogo e na dança da capoeira, nas oferendas de caruru, tudo em homenagem à orixá Iansã. Homenagem festiva que se realiza na escadaria da Igreja de Santa Bárbara, revelando o caráter sincrético das práticas do candomblé. A festa, que também é um culto e um ritual, foi totalmente organizada pelo povo, que vive intensamente essa comemoração. A cultura popular é representada, na peça e no filme, como espaço de resistência, de resiliência e de contestação ao poder instituído.
Vale lembrar que as homenagens à Iansã acontecem, em Salvador, no dia 4 de dezembro, não por acaso também o dia de santa Bárbara, abrindo o ciclo de festejos populares, que se encerra na quarta-feira de cinzas. Nesse dia, as ladeiras do Centro Antigo da cidade são tomadas pelo povo de santo e cobertas de pétalas vermelhas, um cheiro de alfazema paira no ar. Entre as comemorações, uma missa é realizada na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, de onde sai uma procissão passando por várias ruas até chegar no Corpo de Bombeiros Militar da Bahia, onde é distribuído o caruru de Iansã. Paralelamente, uma grande festa popular com atabaques, dança e caruru se realiza no Mercado de Santa Bárbara. A festa, fortemente marcada pelo sincretismo religioso, é considerada Patrimônio Imaterial da Bahia.
Além do sincretismo religioso, O pagador de promessas possibilita a reflexão em torno de outra questão importante sobre a religiosidade, a delimitação entre o sagrado e o profano. Ao chegarem à porta da igreja, ainda muito cedo, Rosa insiste com Zé do Burro para que ele deixe a cruz ali mesmo, afinal já percorreram sete léguas, a igreja está com a porta fechada e eles estão com fome, com sono e cansados, a santa compreenderia. Mas, para Zé do Burro a escada “não é a Igreja de santa Bárbara. A igreja é da porta pra dentro”. Segundo Mircea Eliade (1992, p. 29), a porta é o limiar que separa os dois espaços, indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, fronteira que distingue e opõe dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado. (…) O limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem.
A proposta de Mircea Eliade (1992, p. 20) é precisar a oposição entre o sagrado e o profano, revelando suas naturezas diferenciadas, pois se constituem em duas modalidades de ser no mundo, “duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história”. Segundo o autor, o homem das sociedades modernas, denominado de “não religioso”, vive um processo de dessacralização dos espaços e comportamentos, muito diferente do homem religioso das sociedades arcaicas. Essa diferença de experiência religiosa se explica pelas diferenças econômicas, sociais e culturais, enfim, pela própria história.
As considerações de Mircea Eliade são interessantes e pertinentes e provavelmente se encaixam em grande número de estudos sobre a religiosidade. Porém, sua análise em opor os espaços sagrado e profano, não o permite perceber a relação entre os ambientes de uma forma mais dialética e por vezes mais integrada, não existindo, de fato, essa delimitação de forma tão rígida. Além disso, essa concepção de Eliade não abrange uma especificidade da religiosidade popular baiana, fortemente marcada pela sacralização dos espaços profanos, como vemos em O pagador de promessas.
Zé do Burro não é o único que não pode entrar na igreja. Quando a procissão de santa Bárbara chega, se há um grupo de pessoas, notadamente mulheres com véus cobrindo os cabelos, que pode entrar, há uma quantidade muito maior que não entra: as baianas de acarajé, os capoeiristas, as sambadeiras e os sambadores de roda, os percussionistas de atabaque, os vendedores ambulantes, o cordelista, enfim, todos aqueles que, aos olhos do padre Olavo, não são dignos de adentrarem no local sagrado e de homenagear santa Bárbara.
Se a igreja está fechada para eles, a escadaria não está. Profana por natureza, a escadaria passa por um processo de sacralização, ela se transforma no local ideal para que os adeptos e simpatizantes do candomblé e, mesmo assim, devotos de santa Bárbara, pratiquem sua religiosidade. As baianas realizam a “lavagem”,[iii] purificando o ambiente. Bandeirolas vermelhas e brancas enfeitam a escadaria.
Minha Tia prepara um caruru e a primeira porção é ofertada à Iansã. Ao som do berimbau, capoeiristas movem seus corpos. Os ritos religiosos populares se apresentam muito diferentes dos oficiais, a dança, a música e a alegria contagiam e são formas de homenagear Iansã e santa Bárbara, contrárias à resignação e melancolia da procissão. Essa e outras passagens da narrativa nos revelam que, na cidade do Salvador, a cultura popular possui uma característica peculiar, onde os limites entre os espaços profanos e sagrados não são precisos, existindo uma sacralização de espaços profanos.
Se em O pagador de promessas a escadaria da Igreja de Santa Bárbara é sacralizada pelos rituais populares, a realidade se apresenta de forma similar. Não são apenas as escadarias, onde acontecem “lavagens” (a da Igreja do Bonfim é o melhor exemplo) e “banhos de pipoca”[iv] (todas as segundas-feiras em frente à Igreja de São Lázaro), que passam por esse processo de sacralização, mas também o mar se transforma num lugar sagrado, coberto de flores e oferendas, no dia 2 de fevereiro, em homenagem a Iemanjá.
Por fim, é interessante observar que o burro possui uma identidade, ele é Nicolau, enquanto seu dono tem uma identidade dependente dele, é o Zé do Burro. O nome Nicolau significa “o que vence junto com o povo”. No final da narrativa, Zé do Burro é vítima do disparo de revólver e morre. O capoeirista Mestre Coca (interpretado, no filme, por Antonio Pitanga), que acompanhou toda a angústia de Zé do Burro, tem a iniciativa de colocá-lo em cima da cruz, seguido de outros capoeiristas e percussionistas de atabaque.
Carregando a cruz, eles derrubam a porta da igreja e seguidos pelo povo de santo, entram no lugar sagrado. Como um Jesus crucificado, Zé do Burro assume a identidade de seu burro, pois numa vitória conjunta, ambos, Zé do Burro e o povo, entram na igreja, até então proibida para eles. Zé do Burro vira Nicolau e vence junto com o povo.
Bela e potente metáfora, que revela a força e a capacidade de resistência e de resiliência do povo preto e do povo de santo, que ainda enfrentam muitas adversidades, preconceitos e violências, mas continuam lutando pelos seus direitos em movimentos e ações coletivas, como a religiosidade do candomblé.
*Soleni Biscouto Fressato é doutora em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autora, entre outros livros, de Novelas, espelho mágico da vida (Perspectiva).
Referências
Dias Gomes. O pagador de promessas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2014, 154 págs.
O pagador de promessas
Brasil, 1962, 98 minutos.
Direção: Anselmo Duarte.
Roteiro: Dias Gomes, Anselmo Duarte, H. E. Fowle.
Elenco: Leonardo Vilar, Glória Menezes, Norma Benguell, Dionísio Azevedo, Geraldo del Rey, Antonio Pitanga.
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, Brasília: HUCITEC, EDUNB, 1993.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O campesinato brasileiro: ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1973.
Notas
[i] Povo de santo é uma expressão popular amplamente utilizada na Bahia, que se refere aos seguidores do candomblé, também denominados de candomblecistas.
[ii] Caruru é uma receita da culinária baiana preparada com quiabo, camarão seco, cebola, amendoim, castanha de caju e azeite de dendê. Assim como o abará e o acarajé, é um dos pratos oferecidos aos orixás em rituais do candomblé, nesse caso passa a ser denominado de comida de santo.
[iii] Lavagens de escadarias são celebrações religiosas e culturais associadas ao povo de santo, realizadas por mulheres (as denominadas baianas) portando trajes tradicionais sagrados, que lavam as escadas com água perfumada.
[iv] Pipoca é a comida de santo de Omulu, orixá da cura e das doenças, dos mortos e dos cemitérios, homenageado nas segundas-feiras e faz sincretismo com São Lázaro.
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