Da calamidade de Bolsonaro à esperança de Lula

Imagem: Plato Terentev
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

O Brasil foi submetido ao seu maior desafio havido em nossa história. Temos esperança de que o novo presidente pode refazer o que foi destruído

Durante os quatro anos da administração do presidente Jair Bolsonaro, o país viveu afetado por todas as pragas do Egito. Das muitas opções possíveis para algum problema, o presidente geralmente escolhia a pior. Psicótico, era apático face às desgraças infligidas ao povo, particularmente aos mais vulneráveis. O auge de seu orgasmo psicótico foi atingido quando proibiu água, vacinas e remédios aos indígenas, tidos por ele como sub-humanos. Por isso, provavelmente, deverá enfrentar um processo de genocídio, já encaminhado pelos próprios indígenas, junto ao Tribunal Penal de Crimes contra a Humanidade em Haia. Foi o presidente mais corrupto de nossa história, não só em termos monetários, mas em termos da corrupção da mente e do coração dos brasileiros para o ódio e o desprezo.

É de todos conhecida a lista das omissões, dos crimes comuns e contra a humanidade, das violações das leis e da Constituição perpetradas por esta figura dia-bolica (que separa contrariamente a sim-bólica que une) de forma continuada e sem qualquer escrúpulo. De passo, cabe reconhecer que, a nossa democracia por ser de baixa intensidade junto com a maioria de suas instituições, não se revelou à altura do desafio antidemocrático e antinacional para enfrentar tais desvarios. Deixemos de lado as atrocidades cometidas por este presidente, cujo nome deve constar no livro dos crimes cometidos contra o seu próprio povo.

A gravidade do desastre produzido em todos os campos é de tal magnitude que talvez somente uma reflexão histórica e sociológica não sejam suficientes para decifrá-lo. Demanda uma indagação filosofante, coisa que tentei em alguns artigos anteriores. Utilizei-me de duas categorias, uma ocidental, a da sombra, e outra oriental a do karma, dialogando entre elas.

Talvez se faça necessária uma pequena referência aos pressupostos teóricos desta leitura: à física quântica e ao pensamento ecológico moderno nos ajudem a entender este sinistro fenômeno.

Sabemos hoje que todos os seres estão inter-retro-conectados, todos estão envolvidos em redes de relações. Cada relação deixa uma marca entre os seres relacionados e assim surge uma história, a cosmogênese. Experiências dramáticas deixam marcas que, não raro, procuramos recalcar, mas que permanecem no inconsciente coletivo. Jung chama a isso de sombra. Algo parecido ocorre com o karma. Cada ação deixa uma marca que provoca uma correspondente reação. Tanto Jung quanto o filósofo japonês Daisaku Ikeda convergem nesta acepção. Em outras palavras, não há apenas a sombra e o karma individual. Elas podem assumir um caráter coletivo presente no substrato e no inconsciente de cada povo.

Voltando ao nosso tema: somos herdeiros de uma tormentosa história de sombras: a do genocídio indígena, a colonização que nos impedia possuir um projeto próprio, a escravidão, a mais grave, que reduziu pessoas humanas a escravos e usados como animais na produção, sombra de nossa república e democracia frágeis que nunca foram includentes, pois a conciliação das classes endinheiradas nunca fizeram um projeto nacional para todos, apenas entre elas com a exclusão das grandes maiorias de negros, pobres, indígenas e outros.

Essas sombras desumanas trabalharam no inconsciente coletivo, provocando quilombos e revoltas, todas elas exterminadas a ferro e fogo para manter as vantagens “de elite do atraso” (Jessé Souza). Elas trabalharam também no inconsciente das minorias endinheiradas, geralmente na forma de medo e insegurança. Ao dar-se conta de que as sombras das classes humilhadas começaram a ganhar força história a ponto de terem eleito um dos seus representantes à presidência, Lula, logo foram por todos os meios rebaixadas, reprimidas, combatidas até lhe cortar o caminho por um golpe civil-militar em 1964 de sob outra forma, repetido em 2016 com o impeachment de Dilma Rousseff. As motivações eram as mesmas: garantir o seu poder e fortunas.

Na pessoa medíocre, sem projeto pessoal nenhum e manipulável estas classes encontraram o representante ideal que precisavam. Elegeram o ex-presidente, sempre sustentado por elas, pois, com sua economia ultraneoliberal, aliada a uma política de extrema-direita, acumularam, apesar da pandemia do Covid-19, como nunca antes na história. Fizeram de tudo para garantir-lhe a reeeleição (figurativamente, fizeram-lhe comprar a arena de futebol, comprar o time, comprar gandulas, comprar o juiz, e ainda assim perderam). Há uma força maior que a maldade arquitetada.

A força kármica (abstraindo as muitas reencarnações) segundo Ikeda impregna com sua sombra a história e as instituições, positiva ou negativamente. Arnold Toynbee que entreve um longo diálogo com Ikeda, prefere outra categoria e não a kármica, ao dizer que a história carrega um próprio peso que são os fracassos e sucesso de um povo. Ele gera também uma sombra no inconsciente coletivo que se projeta nas redes sociais e conforma o destino de um povo.

Voltando ao tema em tela: com o atual governo tivemos que penar sob o peso de nossas muitas sombras sombrias que se expressavam pelo ódio, pela mentira, pelas fake news, pela distorção da realidade. Ganhou corpo na figura sinistra do ex-presidente, cuja megasomba tinha o poder de suscitar e animar a sombra coletiva de um povo já fragilizado. Criou um campo kármico ou forjou o gabinete do ódio e todas as formas de obscenidades políticas e éticas.

O destino quis que essa insensatez, cujo projeto era levar-nos ao mundo do pré-iluminismo, pois esse promovia a escola para todos, os direitos humanos e as liberdades modernas, avanços civilizatórios, que foram sistematicamente negados pelo bolsonarismo.

O Brasil foi submetido ao seu maior desafio havido em nossa história. Foi humilhado internamente e envergonhado externamente. Mas nunca esmoreceu esperança, aquele motor interior, maior que a virtude, que nos faz nunca desistir, que nos sustenta nos enfrentamentos e nos faz levantar quando caídos. Esse princípio-esperança nunca morre porque é ele o vigor secreto de toda vida que recusa morrer e sempre reafirma a força intrínseca da vida, nos força a rasgar caminhos novos e mundos “ainda não experimentados” (Fernando Pessoa). O esperançar de Paulo Freire e a esperança esperante, que nunca desistem, sempre insistem e criam a condições histórica para que a utopia viável se torne realidade. Passamos pela prova.

A magna calamidade de Bolsonaro foi vencida pela esperança esperante de Lula. Temos esperança de que o novo presidente com a equipe de excelência que articulou, pode refazer o que foi destruído e, muito mais, abrir rumos novos, bons para nós e para o mundo, pois, pelo Brasil passará, seguramente, futuro ecológico da vida e da humanidade.

*Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor, é membro da Comissão Internacional da Carta da Terra. Autor, entre outros livros, de Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alexandre Aragão de Albuquerque Marjorie C. Marona Marcelo Guimarães Lima Henry Burnett Claudio Katz Jean Marc Von Der Weid Igor Felippe Santos Eugênio Bucci Ricardo Antunes João Sette Whitaker Ferreira Gilberto Maringoni Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Abramovay Eduardo Borges Leonardo Sacramento Bruno Machado Tales Ab'Sáber Caio Bugiato Antonino Infranca Paulo Martins Sergio Amadeu da Silveira Luiz Renato Martins Marilena Chauí Flávio Aguiar José Luís Fiori Yuri Martins-Fontes Francisco Pereira de Farias Jorge Luiz Souto Maior Berenice Bento Jorge Branco Francisco Fernandes Ladeira João Adolfo Hansen Michael Roberts Andrés del Río Luiz Bernardo Pericás Lincoln Secco Maria Rita Kehl Milton Pinheiro Bernardo Ricupero Valerio Arcary Remy José Fontana Marcus Ianoni Samuel Kilsztajn Gabriel Cohn Kátia Gerab Baggio Eleutério F. S. Prado Fernando Nogueira da Costa Afrânio Catani Chico Alencar Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Costa Thomas Piketty Bento Prado Jr. Rafael R. Ioris Juarez Guimarães Ladislau Dowbor Luiz Marques Paulo Capel Narvai André Singer Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Mariarosaria Fabris Anselm Jappe Sandra Bitencourt Ricardo Fabbrini Marcos Aurélio da Silva Osvaldo Coggiola Fábio Konder Comparato Atilio A. Boron Luis Felipe Miguel Annateresa Fabris Liszt Vieira Luís Fernando Vitagliano Vladimir Safatle Carla Teixeira Paulo Nogueira Batista Jr Denilson Cordeiro Renato Dagnino José Machado Moita Neto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Antonio Martins Eliziário Andrade Luciano Nascimento Leonardo Boff Luiz Werneck Vianna André Márcio Neves Soares Tarso Genro João Lanari Bo Airton Paschoa Ronald Rocha Daniel Afonso da Silva Salem Nasser Tadeu Valadares Celso Frederico José Micaelson Lacerda Morais Rodrigo de Faria Manchetômetro Vinício Carrilho Martinez Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Eduardo Soares Paulo Sérgio Pinheiro Elias Jabbour Lorenzo Vitral Vanderlei Tenório Otaviano Helene Luiz Roberto Alves Flávio R. Kothe Daniel Brazil Francisco de Oliveira Barros Júnior Dennis Oliveira Rubens Pinto Lyra Priscila Figueiredo José Costa Júnior Eugênio Trivinho Celso Favaretto Walnice Nogueira Galvão Eleonora Albano José Geraldo Couto Armando Boito Gerson Almeida Slavoj Žižek Lucas Fiaschetti Estevez Andrew Korybko Dênis de Moraes Paulo Fernandes Silveira Matheus Silveira de Souza Valerio Arcary Ari Marcelo Solon Boaventura de Sousa Santos João Paulo Ayub Fonseca José Dirceu Jean Pierre Chauvin Marcelo Módolo Julian Rodrigues Plínio de Arruda Sampaio Jr. Everaldo de Oliveira Andrade Leda Maria Paulani Michael Löwy José Raimundo Trindade João Carlos Loebens Manuel Domingos Neto Michel Goulart da Silva Benicio Viero Schmidt Leonardo Avritzer Ronald León Núñez Gilberto Lopes Antônio Sales Rios Neto Carlos Tautz João Carlos Salles Henri Acselrad Alexandre de Freitas Barbosa Fernão Pessoa Ramos Heraldo Campos Chico Whitaker Mário Maestri Érico Andrade João Feres Júnior Marcos Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES