O pássaro alado sempre ressurge

Imagem: Cottonbro
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Por JALDES MENESES*

Bolsonaro é um significante vazio no qual se incrustam na retaguarda do personagem variados conteúdos até contraditórios

“O mito é o nada que é tudo(Fernando Pessoa, Ulysses, In: Mensagem. Poemas esotéricos).

Ainda existem riscos de golpe? Os próximos capítulos da história do futuro de nosso capitalismo selvagem e tardio dirão. Não tenho dotes de vidente, mas o caso do acaso do jogo de dados tem lá suas misteriosas tendências. Começo citando Shakespeare, que de tanto uso e abuso transformou-se em clichê: se existe “método na loucura”, no personagem Bolsonaro a loucura é o próprio método. Evidentemente – existe acordo geral dos analistas a respeito –, ele convocou suas falanges à praça pública no dia 7/9/2021 imbuído da satisfação de um permanente desejo golpista, adquirido por formação e peregrinação. Uma vida garimpeira em águas turvas, que começou ouvindo de seus mestres militares as histórias de tortura e cavalaria sobre os porões e os feitos da ditadura, até se transfigurar, na transição da nova república, em um deputado excêntrico adepto de uma emergente tendência de milicialismo civil.

Uma história banal, afinal de contas. A chave do tesouro do “mito” político de Bolsonaro é que ele é um significante vazio no qual se incrustam na retaguarda do personagem variados conteúdos até contraditórios.  No futuro, os biógrafos deverão literariamente – auguro munidos da pena respeitosa da galhofa – descrever um fascinante personagem do poder político, raso e desprovido de glória e labirinto. Embora não despreze a importância de estudos psicológicos na compreensão e explicação da personalidade autoritária, no plano da política, invocando o fascismo histórico, o objetivo número um do indigitado personagem no dia 7/9 visava realizar uma recriação imaginária e tropical de uma “Marcha sobre Roma” no Brasil do século XXI, 99 anos depois. A tática fascista é sempre dobrar as apostas, especialmente nos momentos de dificuldades, acossado que está pela CPI do Coronavírus e os processos no STF.

Quais seus trunfos? Significante vazio, indiscutivelmente o “mito” detém o comando de um aguerrido movimento de massas de base social popular, reacionária, religiosa e militarizada. A retórica cativou apoio canino de segmentos da classe média tradicional e ressentida. No plano das classes econômicas, mantém a fidelização das frações burguesas do pequeno e médio comércio varejista. Esse comerciante pequeno-burguês, arruinado pela pandemia, acossado pela concorrência e reconcentrações na esfera do grande varejo, tipo Amazon e Magalu, tem motivos objetivos para se voltar contra a política econômica de Bolsonaro. Mas a subjetividade, a ideologia, fala mais alto. Compõem a base de apoio os setores emergentes de base regional, policlínicas e planos de saúde (Prevent Senior e Hapvida), madraças do comércio de armas, novos empresários da construção civil e do agronegócio da fronteira agrícola e extrativista. Essa turma topa tudo e sempre gostou de gastar dinheiro em financiamento político. São milhões de pessoas – segundo o Datafolha (16/9/2021), o bolsonarismo-raiz representa 11% da população, majoritariamente de homens maduros, radicalizados politicamente e idade e renda acima da média da população. Enfim, uma base passível de ser maioria ou minoria eleitoral (e não ainda hegemonia política), a depender das peculiaridades da conjuntura. Não se sabe até quando – pois há uma fadiga de material e desgaste do poder de entrega do governo –, ainda assim, constitui um exército suscetível ao chamado do líder.

O bolsonarismo, por sua vez, é um movimento de bases sociais e interesses articulados de classe suficientemente denso para sobreviver a uma saída de cena do líder. O bolsonarismo sem Bolsonaro perderia um significante vazio carismático, um campeão de votos de fácil identificação popular. Um antagonista politico e cultural para uma força com as características de tropa de assalto do bolsonarismo – a experiência história demonstra – só pode sair da esquerda. Essa a principal dificuldade, tanto política como cultural, de “terceiras vias”. Desde as mobilizações de 2013, especialmente na atitude oportunista de fazer vistas grossas à extrema direita que crescia em seu entorno, que os tucanos e outros consortes assinaram uma sentença de irrelevância. Daí até hoje definham.

Já não é novidade entre os analistas considerar o bolsonarismo um tipo de movimento work in progress. Eclético, maleável, pragmático, antintelectualista e voluntarista, suficientemente lasso para abrigar na ação as rosas e espinhos de múltiplas tendências, uma fauna de anarcocapitalistas a anticapitalistas românticos, de neonazistas a sionistas etc. Um problema grave na evolução do movimento: a pauta da extrema direita raiz de guerra permanente é elástica, mas tem limites. A pauta ideológica – eis o grande impasse do governo – é muito distante dos problemas econômicos e sociais da presente crise (a percepção de 69% da população é de piora da economia, segundo o Datafolha de 20/9). Tanto que a maior parte do povão – parafraseando Aristides Lobo –, acossado pela economia, assistiu desinteressado e “bestializado” as paradas do neofascismo. São fragrantes limites de possibilidade de conquista de hegemonia nacional-popular e patriótica. Ademais, não se deve desconsiderar, relativo à capacidade de mobilização de rua, o fato de o bolsonarismo ser governo, moendo uma máquina de cargos comissionados, mandatos parlamentares da extrema direita e do centrão, alianças e convênios com ONGs, pastores e Igrejas.

 A principal debilidade estrutural do bolsonarismo reside no fato de faltar a esse movimento agregar todas as suas correntes na sociedade civil em um partido político. O partido do bolsonarismo são as redes sociais (real, bot, algorítmica e fake), uma inovação e uma característica saliente dos neofascismos do século XXI, mas também a prova de uma debilidade orgânica. Seria “clássico” em dizer que o partido é sempre uma necessidade, à direita e à esquerda, mais que para disputar eleições, nas quais estão à disposição as legendas do centrão, na montagem e estabilização de um Estado Maior político. Em clássica démarche da análise política marxista, Gramsci tematizou a ascensão do fascismo na Itália, diante da crise do Estado liberal, como uma espécie de “Estado alternativo”, um “Estado B”, em caso de a crise desorganizar o Estado. Assim o Partido Fascista reconstruiu o Estado na segunda fase do regime de Mussolini, a partir de 1928. De modo semelhante, Hitler em 1933, assumiu o comando do Estado dissolvendo a estrutura da República de Weimar e o NSDAP (Partido Nazi) virou partido único.

 Um contrapeso importantíssimo à ausência de partido vem a ser a forte presença do bolsonarismo (ideologia e prática) – competição hoje inalcançável na esquerda brasileira– nos aparelhos de Estado, especialmente as forças armadas as polícias militares, mas também na esfera judiciária. Trata-se, neste aspecto, de um neofascismo mais condizente com as experiências latino-americanas, mas também mais limitado no aprofundamento da experiência. O bolsonarismo já fez e continua a fazer nestes espaços, dia e noite adentro, aquela “longa jornada por dentro do aparelho de Estado” de um processo que ainda não se integralizou. Aliás, exatamente por contar com setores expressivos no aparelho de Estado e não constituir um partido orgânico, em que o ativismo das redes sociais é um embrião, no atual estágio, o neofascismo do bolsonarismo, configura uma “coisa” nova em progresso. Por isso, depende muito, talvez em exagero, da figura bonapartista do líder idiossincrático e autocrático. Mas a “coisa” se move.

Nunca é operação fácil perpetrar um putsch (o termo autogolpe é mais adequado) bonapartista. Jânio Quadros que o diga. Por outro lado, dotado dos recursos de poder descritos anteriormente descritos, um golpe de Bolsonaro, tresloucado que seja, é sempre uma possiblidade sombria da conjuntura. Sempre existem riscos de golpes, embora se deva prestar atenção, igualmente, nos movimentos moleculares e transformistas da “longa jornada por dentro do aparelho de Estado”. Um olho no peixe e outro no gato.

O ato de 7/9 expôs à luz do dia os recursos e as fragilidades contraditórias do chamado a um coup d’état. Ele não contou com a adesão dos comandos e tropas das forças armadas e das polícias militares estaduais. Os partidos da ordem, como o PSDB, o DEM e o PSD declararam no Congresso afastamento da aventura e a criminalização o golpe, possibilitando a deflagração de um Impeachment. Bolsonaro recuou e foi pedir arrego a… Michel Temer. Observe-se que o arrego desanuviou o clima pesado das forças políticas tradicionais e do STF contra Bolsonaro. Contudo, vejo no mínimo exageradas as interpretações que veem no arrego a reedição de um consistente “acordo por cima das elites”. Nem como tragédia nem como farsa. Nem como tragédia nem como farsa.

Ao confundir sua pantomina com a história universal, Bolsonaro não ostentou sequer a contraditória virtù (e lá se vai o tempo perdido de quase três anos de governo) de reencarnar o espírito de Luís Bonaparte em 1851 (18 de Brumário e Segundo Império) ou de Getúlio Vargas em 1937 (Estado Novo) – nem que seja convocando a espada da ditadura –, capaz de resolver crises em benefício da grande burguesia brasileira e do capitalismo internacional. Ou seja, um líder demagógico salvacionista com capacidade política de ser um tertius, mesmo momentaneamente, e costurar a saída de um equilíbrio catastrófico das classes antagônicas em disputa. Realmente, o construtivismo não é definitivamente a vocação do bravo líder carismático – carisma é sempre relação, não atributo irracional – nascido em Eldorado paulista.

Por tudo isso, Bolsonaro é desde sempre a crise, pura destruição destrutiva, portanto, um personagem a ser contido e não estimulado a bem dos negócios privados. Pelo já visto, jamais será horizonte de vitória a longo prazo na resolução da crise brasileira. Revelou-se um presidente incapaz de liderar uma coesão burguesa, de constituir um bloco histórico de algum futuro. Neste interim, vejo uma mudança importante no comportamento de classe da burguesia, pois havia alguma ilusão nas eleições de 2018 e nos primeiros dias de governo que Bolsonaro conseguiria reencarnar um Bonaparte exitoso e não apenas um extravagante Napoleão de hospício. A fórmula de Paulo Guedes/Posto Ipiranga/Animador de Mercados rendeu lá seus favos de mel ao capital (reforma da previdência, venda de ativos da Petrobrás etc.) e apenas sobrevive. As movimentações críticas às vésperas do autogolpe arregado, da parte de entidades como a Febraban, a maioria da Fiesp, másters do agronegócio a exemplo de Blairo Maggi etc. demonstram cabalmente. As oscilações das bolsas de valores, dólar em alta e ações em baixa nos dias das arruaças de rua, seguido do alívio do arrego, são pura consciência de classe.

Todas as pesquisas recentes de opinião confirmam, há mais de três meses, que a sociedade se decidiu sem retorno à vista, em prol do impeachment de Bolsonaro. Consolidou-se a imagem do um presidente majoritariamente inconfiável – o mais grave dos defeitos atribuídos a um chefe de Estado. Bolsonaro caiu, mas ainda não está na lona. São índices expressivos das dificuldades do governo. Números de pesquisa ajudam, mas ainda são insuficientes para depor o presidente. A conjuntura é sinuosa: se os números, por si só, não derrubam, por outro lado, demonstram a possibilidade de engrenar um poderoso movimento de massas.

O balanço dos atos da campanha do impeachment comprova que foram organizados atos interessantes, mas a campanha não chegou a decolar. Criou-se uma situação de perigoso equilíbrio. Tanto a pauta de extrema direita do bolsonarismo raiz não interage com as aflições de reprodução de vidado Brasil popular, em crise, mas tampouco a campanha do impeachment, até o momento, avançou até o ponto de constituir um irrefreável movimento de massas. Existe o fator positivo de a esquerda brasileira conseguir aparar diferenças (a pergunta que dividia era se devia ou não sair às ruas em tempos pandêmicos) e se unificado numa campanha de rua reivindicando o impeachment de Bolsonaro, pelo menos desde os atos de 29 de maio.

Os atos cresceram nas ruas e angariaram indisfarçadas e surpreendentes simpatias, até na imprensa tradicional, nos meses de junho e julho. Beleza. O ápice dos atos aconteceu nos dias 19 e 26/6. Em seguida, dia 30/6, partidos políticos, parlamentares e entidades da sociedade civil protocolaram na Câmara dos Deputados o chamado “superpedido” de impeachment do presidente da República. Era o momento efetuar a transição do momento para o chamo de fase “de colunas” da bolha de partidos e movimentos de esquerda para a fase de constituição de um “palanque” institucional representativo de todo o espectro do “superpedido”. A oportunidade se perdeu. Em seguida não aconteceu, partindo da usina progressista, fato político digno de grandes manchetes.

Já virou moda citar em todos salões o movimento das Diretas-Já. Era outra conjuntura, sem dúvida. Mas relembre-se que as diretas combinaram um amplíssimo palanque de lideranças políticas com um poderoso movimento de massas. Até hoje não se viu um governador ou um prefeito de esquerda num palanque clamando o impeachment de Bolsonaro. Acomodam-se às redes sociais. Raríssima a publicidade circulando a palavra de ordem nas cidades. Para se comparar a distância abissal dos investimentos políticos, basta dizer que os comícios na reta final da campanha das diretas na Candelária e no Anhangabaú, nos estertores da ditadura, contou com a colaboração dos governadores Franco Montoro e Leonel Brizola em medidas de decretação de ponto facultativo e na liberação das catracas do Metrô de São Paulo.

Nas entrelinhas das indefinições táticas, cochila a pergunta do que fazer, frente ampla ou frente de esquerda? Formular sobre a frente ampla em termos peremptórios de “sim” ou “não” embute algumas ciladas, algumas vezes dribladas pelo trunque da leitura dogmática de textos sagrados.

Evidentemente, uma campanha pelo impeachment de Bolsonaro precisa evoluir, em algum momento, na direção de um movimento assemelhado a uma Frente Ampla, que espelhe um movimento de massas e não um programa de governo, coisas diferentes que não devem ser confundidas. Assim, a concertação de um movimento unificado de impeachment urge, pode ser articulado, mas é distinto do objetivo de as forças de identidade progressista evoluírem para uma unidade das forças populares. São necessários envidar esforços políticos no rumo de estabelecer um acordo permanente das forças progressistas. A adesão a uma Frente Ampla democrática e antibolsonarista deve ser concertada a partir da unidade sem diluição orgânica das forças populares.

Na atual conjuntura, acho inevitável que o acordo das forças progressistas se dê no âmbito da campanha de Lula-presidente. Os termos de um programa de unidade das forças populares envolveriam ações crítico-programática visando mudanças no rumo das transformações societárias e estatais recentes do país. Afora medidas de emergência e transição visando estancar a crise, um bom começo de um futuro governo progressista aglutinaria resposta social ao redor de três complicados temas:

1 Reestruturar a dialética negativa em curso no mundo do trabalho. Generalizou-se uma perda de dinamismo nos processos de ascensão social no país, especialmente nas classes trabalhadoras e nas camadas médias. Joe Biden, nos Estados Unidos, alertou recentemente da necessidade de criar empregos sindicalizados, ou seja, em outras palavras, empregos formais.

2 Reformar o bloco no poder e as alianças no âmbito do Estado, de modo a conter o domínio absoluto do sistema financeiro financista-rentístico, da burguesia agrária e da burguesia comercial.

3 Interpelar a espinhosa questão do excedente de poder de duas corporações do Estado, a militar e a judiciária.

Definitivamente, em que pese as aparências e nada mais, não estamos atracados na estação 1964. No golpe de 1964, além de um Estado Maior militar coeso (divergências de nomes e táticas são comuns em processos políticos), havia uma nova burguesia emergente em formação no processo de uma revolução burguesa como processo de revolução passiva. Era uma burguesia majoritariamente resoluta de seu destino. Vislumbrava em si mesma, nos militares, na tecnocracia e nas multinacionais a continuidade, tanto do bloco histórico de 1930, como – sempre é importante ressaltar – da origem ancestral na oligarquia colonial, plasmada na figura dialeticamente contraditória do senhor-cidadão.

O retrato do passado na parede – que dói no poema de Drummond –, nos termos de Florestan Fernandes, efetuou uma torturante jornada de “transformação capitalista” através de um “modelo autocrático burguês”, plasmando uma formação de capitalismo selvagem e tardio. O objetivo cego do processo foi soterrar, para o bem da acumulação capitalista, os projetos autonomistas e sociais das lideranças nacionalistas e da esquerda revolucionária. Nas recentes mobilizações da extrema direita, no máximo, e nem isso se sabe, Bolsonaro comprou uns poucos dias de tempo para ele e sua família. Uma espécie de microfuga para a frente a lugar nenhum. Um recuo tático, talvez permanente, um “golpe” de chanchada que desmoralizaria para sempre a reputação de qualquer Mussolini histórico que se preze. Bolsonaro adora exercer uma espécie de autoridade oca – milhos para pombos sem projeto –, provando que o Brasil está encalacrado, se meteu numa espécie de beco sem saída. Francisco de Oliveira formulou pouco antes de morrer a disjuntiva da questão nacional brasileira: fênix ou extinção? Não creio que desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela. Na mitologia de origem o pássaro alado sempre ressurge. Vai, pássaro formoso, anjo troncho e torto, ser gauche na vida.

*Jaldes Meneses é professor titular do Departamento de História da UFPB.

 

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