Por LEONARDO SACRAMENTO*
A hipótese mais plausível para o plano de Biden é a de que a resolução da ONU que o aprovou não será praticada, ou se for, será desobedecida por Israel
A extrema direita israelense colocou os EUA e seus parceiros europeus nas cordas. O juiz parou e abriu contagem. Biden, Macron, Scholz e Sunak estão desnorteados. Cada qual procura resolver a seu modo. Macron virou a chave e tenta ser um novo Charles de Gaulle às avessas. Ignora com platitudes a expulsão de suas tropas colonialistas no Niger e no restante da África Ocidental e trata de forma histriônica Putin como o novo Hitler. Ao mesmo tempo, procura se portar como o nacionalista que defende o fortalecimento europeu na OTAN contra o mandonismo estadunidense. Posição esquizofrênica, sinal dos tempos e da crise do Ocidente.
Sem surpresas, sob todo o imbróglio da decadência neoliberal, a extrema direita nazifascista venceu as eleições ao parlamento europeu. Olaf Scholz, comparando-o a Angela Merkel, é um zero à esquerda. Tão zero à esquerda que permitiu a ascensão da direita nazista alemã. Não merece mais uma linha.
Rishi Sunak é carta fora do baralho. Representa a atual irrelevância da Inglaterra no cenário político internacional. Provavelmente não é sua culpa. As únicas coisas que a Inglaterra produziu nos últimos quarenta anos foram a Premier League e Louis Hamilton. A primeira é questionável, uma vez que provocou a elitização do futebol, inclusive no Brasil após a construção dos estádios para a Copa do Mundo de 2014. A segunda é rechaçada pelos ingleses, já que Hamilton seria negro e popular demais e pouco aristocrático, não reproduzindo o “jeito” inglês de ser. Nesse caso, demonstra a mediocridade inglesa sob o memorialismo racista do que foi o império britânico.
Joe Biden, por sua vez, virou refém do sionismo. Gostaria de encerrar o genocídio sem falar que é um genocídio, enterrando o assunto junto com os mortos queimados por fósforo branco no meio de escombros e ruínas. Pela primeira vez, sofreu uma manifestação em frente à Casa Branca. Nos países europeus e nas universidades estadunidenses, como não há argumento plausível que equipararia a causa palestina a terrorismo, os governos decidiram reprimir violentamente as manifestações populares sem qualquer justificativa jurídica plausível.
O dado político é que Joe Biden não pode interferir porque não consegue, não possui mais mecanismo de dissuasão e de imposição a Israel. Mesmo com a decisão do Tribunal Penal Internacional, resolução do Conselho de Segurança e a repulsa política do Secretário-Geral da ONU, Benjamin Netanyahu continua o genocídio. Politicamente, o primeiro-ministro não tem mais alternativas porque a dinâmica política interna israelense é mais importante do que a geopolítica internacional e os desejos dos EUA e de Joe Biden.
Pode-se fazer a manifestação que for; no atual cenário, Israel continuará com o genocídio e provavelmente expandirá a guerra para todo o Oriente Médio. Não há mais margem de pressão internacional sobre Israel porque é Benjamin Netanyahu quem domina Joe Biden. A questão é quem domina Benjamin Netanyahu.
O aprofundamento das ações militares de Israel parece uma realidade cada vez mais determinada pela ausência de alternativas políticas a Benjamin Netanyahu. Sabendo disso, Joe Biden, de olho nas eleições presidenciais desse ano, propôs um plano de cessar-fogo sem consultar Benjamin Netanyahu, Hamas e o aparato diplomático de negociação instalado no Catar.
A estratégia de Joe Biden tem o seu fundamento na realidade. Os EUA não possuem mais margem razoável para negociação com a coalização de extrema-direita israelense. O presidente estadunidense preferiu o anúncio público para pressionar Israel. Com o ato desesperado, também confessa publicamente que não controla mais o seu parceiro estratégico no Oriente Médio, o país que é uma criação anglo-saxã da aliança do sionismo judaico com o sionismo cristão submetida desde o início aos interesses geopolíticos do Ocidente na região que é a maior produtora de petróleo do planeta.
O plano de Joe Biden consiste em um cessar-fogo de seis semanas, com a retirada das tropas israelenses, a troca de prisioneiros e o retorno dos 600 caminhões de mantimentos ao dia. A segunda e a terceira etapas versam, respectivamente, sobre a negociação para um fim definitivo da guerra e na reconstrução de Gaza. A proposta foi bem recebida pelo Hamas, mas foi rejeitada por Israel no mesmo dia.
O irônico é que não foi rejeitado inicialmente por Benjamin Netanyahu, mas pelos ministros da extrema direita.[i] Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Interna, afirmou: “Este é um acordo promíscuo, que representa uma vitória para o terrorismo e um perigo para a segurança do Estado de Israel. Concordar com tal acordo não é uma vitória absoluta – mas uma derrota absoluta. Se o primeiro-ministro implantar o acordo promíscuo nas condições publicadas hoje, o que significa o fim da guerra e a renúncia do Hamas, Otzma Yehudit dissolverá o governo”.
Já Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, defendeu: “Falei agora com o primeiro-ministro e deixei-lhe claro que não farei parte de um governo que concordará com o esboço proposto e acabará com a guerra sem destruir o Hamas e devolver todos os raptados. Não concordaremos com o fim da guerra antes da destruição do Hamas”.
Apenas depois das manifestações dos ministros de extrema direita, Benjamin Netanyahu se pronunciou: “O Hamas continua a fazer exigências extremas. A principal delas é que retiremos todas as nossas tropas da Faixa de Gaza, ponhamos fim à guerra e deixemos o Hamas em paz. O Estado de Israel não pode aceitar estes termos”. Ocorre que retirar as tropas da Faixa de Gaza não foi proposta do Hamas, mas dos EUA.
Benjamin Netanyahu não é um refém, mas fragilizado politicamente, a direita mais à direita consegue pautar a guerra. E a questão da guerra para essa extrema-direita é o retorno dos colonos israelenses à Gaza. Portanto, uma Solução Final, com o genocídio e a expulsão dos palestinos do território, fomentando uma nova Nakba.
Como resposta, a extrema-direita israelense trucou seis exigindo a abertura de um novo flanco ao norte contra o Hezbollah. Em sua crítica a Benjamin Netanyahu, o líder da oposição Yair Lapid argumentou que o “o governo não tem nenhum plano para o dia seguinte em Gaza, nenhum plano para devolver os residentes ao norte, nenhuma gestão, nenhuma estratégia. Um governo de abandono total”. Para a extrema-direita, o dia seguinte é o assentamento israelense. Provavelmente também para Yair Lapid, uma vez que a oposição não possui nenhuma discordância sobre a pertinência da guerra e o genocídio.[ii]
Mas Joe Biden não ficou parado. A sua reeleição depende de um cessar-fogo até o fim do ano, ou pelo menos uma tentativa para responsabilizar alguma das partes pelo previsível fracasso. A última carta de Joe Biden foi a aprovação no Conselho de Segurança de uma nova resolução, aprovada no dia 10 de junho. Hamas elogiou a resolução por meio de comunicado divulgado pela Reuters: “O Hamas saúda o que está incluído na resolução do Conselho de Segurança que afirmou o cessar-fogo permanente em Gaza, a retirada completa, a troca de prisioneiros, a reconstrução, o regresso dos deslocados às suas áreas de residência, a rejeição de qualquer mudança ou redução demográfica na área da Faixa de Gaza e a entrega da ajuda necessária ao nosso povo na Faixa”.[iii] Segundo os EUA, Israel teria aceitado, mesmo com os antecedentes dos dias anteriores de repulsa à proposta de cessar-fogo.
A hipótese mais plausível é a de que resolução não será praticada, ou se for, será desobedecida por alguma justificativa estapafúrdia de Israel. A resolução tem um pecado para a extrema direita. Defende a existência de dois Estados, a permanência da Gaza e a sua unificação com a Cisjordânia, mesmo que seja sob a “Autoridade Palestina”. A resolução “rejeita qualquer tentativa de mudança demográfica ou territorial na Faixa de Gaza, incluindo quaisquer ações que reduzam o território de Gaza”.[iv]
Dificilmente a extrema direita aceitará tal acordo. Pode disfarçar até o possível, mas acatá-la é algo inimaginável. A rebaixada resolução conflita com o projeto de poder da extrema-direita israelense, que agora direciona o seu arsenal estadunidense contra o Hezbollah para “devolver os residentes ao norte”, como bem lembrou o “moderado” Yair Lapid (sic!).
Há um problema interno em Israel: os colonos que saíram do norte para cidades mais ao sul e à capital, algo em torno de 53.000, segundo a FDI – provavelmente o número é maior. Na visão da extrema-direita, como construir uma Grande Israel se as cidades do norte, sobretudo as mais próximas ao Líbano, estão vazias? Na prática, a guerra trouxe uma diminuição real da Grande Israel, pois fronteiras inabitadas significam um território menor vivido por israelenses “puros” (judeus ashkenazi).
Além disso, 53.000 colonos que foram para o norte em terras ocupadas, com fronteiras invadidas após 1967, são colonos cujo perfil é predominantemente nacionalista e supremacista, com vínculos com a mesma extrema-direita que detém politicamente a coalização de Netanyahu. Logo, é um problema político real.
Diante desse cenário, Itamar Bem Gvir anunciou a guerra: “Todas as fortalezas do Hezbollah devem ser queimadas e destruídas. Guerra!”.
Obviamente, uma guerra contra o Hezbollah é completamente diferente de uma guerra contra o Hamas. Se com os Houthis o fracasso das ações militares estadunidenses e inglesas no mar é visível e confessada, com pedidos de intervenção para a China,[v] uma guerra fronteiriça tendencialmente traz desafios muito maiores.
O Hezbollah, que expulsou Israel do sul do Líbano após uma invasão que durou 20 anos, e por isso é uma força insurgente nacionalista no contexto libanês, não é mais o mesmo. Trocou os antigos e imprecisos Katyusha por misseis iranianos, montou uma organização militar de intervenção treinada em conflito real – com Israel, inclusive após a expulsão do Líbano – e capilarizou-se politicamente, socialmente e culturalmente na sociedade libanesa.
Benny Gantz, líder da centro-direita, abandonou o gabinete de guerra um dia antes da resolução do Conselho de Segurança da ONU,[vi] expondo o problema ao mesmo tempo em que o aprofunda, na medida em que a extrema-direita passa a ter uma composição mais orgânica e sem disputas internas no gabinete e na coalizão. Saiu pedindo a Benjamin Netanyahu que “não deixe que nossa nação se desfaça”. O pedido veio reforçado por uma confissão: “eu apoio o plano que decidimos no gabinete de guerra, apresentado pelo presidente Joe Biden, e exijo do primeiro-ministro a coragem necessária para apoiá-lo e promovê-lo”. Ou seja, o gabinete de guerra foi desautorizado por Benjamin Netanyahu a mando dos ministros da extrema direita. Como resposta, sua saída foi ensaiada com Joe Biden para pressionar os ministros de extrema direita.
Com a coalizão de Benjamin Netanyahu, há outra alternativa para Israel do ponto de vista interno que não seja a guerra? Provavelmente, não. Benjamin Netanyahu não está mais pensando na segurança estratégica de Israel e nos reféns, mas na manutenção a qualquer custo de seu governo. Ou se está, está em segundo plano. E não há como obter sucesso nessa empreitada sem a extrema direita israelense.
Israel está em um impasse político interno que nunca esteve, nem mesmo em períodos com diferenças mais visíveis. Se a extrema direita sair, Benjamin Netanyahu cai e Israel entra em crise porque a extrema direita é uma força eleitoralmente e politicamente poderosa. Possivelmente, ela retornaria ou continuaria a pautar a política nacional.
Como disse, Benjamin Netanyahu não deve ser visto como vítima. Pelo contrário, a extrema direita é produto do caráter colonialista do Estado de Israel, pois não há alternativa para que Israel exista se não for por meio da colonização, apartheid e genocídio. São aspectos que precisam ser defendidos e naturalizados sob um mito de superioridade racial. Ninguém aprofundou tal caráter mais que Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro com mais tempo no cargo. Contudo, as disputas internas israelenses permitiram a extrema direita abertamente fascista (ou mais fascista que Benjamin Netanyahu, se isso for possível), pautar a guerra, a política interna e, para o constrangimento norte-americano e europeu, a política externa, colocando os parceiros estratégicos de Israel na berlinda.
A extrema direita supremacista se tornou uma força institucionalmente contraproducente a Israel porque jogou fora todos os disfarces da “Democracia” sem Constituição do Oriente Médio. Explicitou a apartheid por meio de um genocídio fotografado, filmado e postado em tempo real nas redes sociais. Pior, por meio da aliança do sionismo judaico com o sionismo cristão, consegue pautar e impor decisões unilaterais aos Estados Unidos, sobretudo em um ano eleitoral.
Pressão internacional e de organismos multilaterais não tem qualquer relevância para o país que sempre foi recordista mundial em desobedecer a resoluções e normas internacionais. A sua aliança histórica e ontológica com a OTAN e os EUA dá carta branca e salvo conduto para fazer o que bem entender. Os países europeus e EUA não podem realizar uma crítica profunda a Israel, pois a colonização, o apartheid e o genocídio são construções do liberalismo, do capitalismo e do Ocidente.
Fazer uma crítica radical a Israel, como a África do Sul faz, hoje comandada politicamente (não economicamente) pelo CNA e por negros (maioria zulu), seria uma negação da autorrepresentação idílica dos europeus e dos norte-americanos brancos. Jamais acontecerá. Pelo contrário, a julgar pelas eleições ao parlamento europeu, o movimento será de orgulho estandardizado e naturalização do imperialismo baseado no supremacismo racial.
Se a coalizão de Benjamin Netanyahu continuar, Israel provavelmente será levado a uma guerra de grandes proporções, com final imprevisível, especialmente com o recrudescimento da ação da OTAN na guerra entre Rússia e Ucrânia. E uma guerra de grandes proporções poderá levar Israel a uma posição militarmente desfavorável, como ficou evidente com a ação do Irã e a dificuldade de agir por terra contra a resistência do Hamas. Obrigaria os EUA a enviar muito mais armamentos e recursos em um ano eleitoral. Se até agora, com o Hamas, foram dezenas de bilhões de dólares, quanto seria com o Hezbollah? Abrir uma frente contra o Hezbollah fecharia a frente contra o Hamas? É extremamente possível que essas questões para a extrema direita tenham pouca relevância diante dos refugiados internos e da promessa mítica da Grande Israel para os colonos.
A dinâmica interna de Israel está levando-o a um dilema existencial, no qual Israel expõe limites, apesar do mito do grande exército de Israel, mito esse que conversa, obviamente, com o mito religioso do grande exército de Davi. Como lembra Marx, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Inclusive Davi, que praticou adultério com Bate-Seba e enviou o marido, Urias, a uma guerra na frente de batalha para ser morto. Diante dos graves pecados do adultério e do homicídio, Deus, sábio e todo poderoso, matou o filho recém-nascido de Bate-Seba com Davi (infanticídio) e profetizou por meio do profeta Natã: “Tomarei as suas mulheres a sua própria vista e as darei a outro homem, que se deitará com elas em plena luz do dia” (Samuel 12:11). O outro homem foi Absalão, filho de Davi. Nunca a história da Israel atual esteve tão próxima ao mito de Davi.
Leonardo Sacramento é professor de educação básica e pedagogo do IFSP. Autor, entre outros livros, de Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o Apocalipse do liberalismo (Alameda).
Notas
[i] Disponível em https://www.brasil247.com/mundo/ministros-de-extrema-direita-da-coalizao-de-netanyahu-ameacam-abandona-lo-em-caso-de-cessar-fogo-para-parar-o-genocidio.
[ii] Disponível em https://www.estadao.com.br/internacional/mundo-se-equivoca-a-respeito-de-israel-diz-lider-da-oposicao-a-netanyahu-yair-lapid/.
[iii] Disponível em https://www.brasil247.com/mundo/hamas-diz-que-apoia-resolucao-da-onu-para-cessar-fogo-na-faixa-de-gaza#google_vignette.
[iv] Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/06/10/conselho-de-seguranca-aprova-cessar-fogo-e-coloca-pressao-sobre-hamas.htm.
[v] Disponível em https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/01/27/em-reuniao-eua-pedem-a-china-para-usar-sua-influencia-sobre-ira-e-suspender-ataques-dos-houthis.ghtml.
[vi] Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/06/09/gantz-deixa-gabinete-de-guerra-e-ataca-netanyahu.htm.
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