O principal inimigo está em nosso próprio país!

Elyeser Szturm, da série Céus
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Por KARL LIEBKNECHT*

A quem o povo alemão deve agradecer pela continuação da horrível guerra, pela intervenção da Itália? São responsáveis ninguém além dos irresponsáveis que estão no nosso próprio país!

O que era esperado há dez meses, desde o ataque da Áustria à Sérvia, aconteceu: a guerra contra a Itália começou.

As massas dos países beligerantes começaram a se livrar da teia das mentiras oficiais. O conhecimento dos fundamentos e objetivos da guerra mundial, sobre quem possui responsabilidade direta por sua irrupção, também começa a se disseminar entre o povo alemão. A ilusão sobre os objetivos “sagrados” da guerra diminuiu, o entusiasmo pela guerra arrefece, o desejo pela paz rapidamente ganhou um impulso poderoso por toda a parte – até mesmo no Exército!

Esse era um grande problema para os imperialistas alemães e austríacos, os quais buscavam inutilmente a sua salvação. Ela parece ter chegado a eles agora. A intervenção da Itália na guerra deve oferecer-lhes uma oportunidade bem-vinda para incitar novos frenesis de ódio nacional, para abafar a vontade de paz e para esconder os traços de sua própria culpa. Eles apostam no esquecimento do povo alemão, apostam na sua paciência, que já foi abusada com demasiada frequência.

Se esse plano der certo, a experiência sangrenta de dez meses teria sido descartada, o proletariado internacional estaria desarmado e totalmente apagado como fator político independente.

O plano deve ser frustrado – contanto que a parte do proletariado alemão que permaneceu fiel ao socialismo internacional tenha em vista e permaneça fiel à sua missão histórica nesse momento terrível.

O inimigo do povo conta com o esquecimento das massas – à essa especulação nós contrapomos a resolução: Tudo aprender, nada esquecer! Nada esquecer!

Nós observamos as massas serem enfeitiçadas pela explosão de belicosidade das classes dominantes com suas sedutoras melodias para os objetivos da guerra capitalista. Nós presenciamos o brilho da demagogia estourar como bolhas de sabão, os sonhos lunáticos de agosto evaporarem; como, ao invés da alegria, a raiva e a miséria abateram-se sobre as massas, como as lágrimas das viúvas e dos órgãos da guerra afluem torrencialmente, como a manutenção das misérias das três classes, a obstinada canonização do quarteto: semi-absolutismo – domínio dos junkers – militarismo – despotismo policial – se tornou uma verdade amarga.

Graças à experiência, nós estamos alertas: tudo aprender, nada esquecer!

São repugnantes as diatribes com as quais o imperialismo italiano dissimula a sua política de rapina; é repugnante essa tragicomédia romana na qual o agora comum trejeito do Burgfrieden está presente. Mais repugnante, entretanto, é que em tudo isso nós reconhecemos os métodos alemães e austríacos de julho e agosto de 1914.

Os agitadores de guerra italiano merecem ser denunciados. Mas eles não são nada além da copiadores da agitação de guerra alemã e austríaca, que são os principais responsáveis pela irrupção da guerra. Farinha do mesmo saco!

A quem o povo alemão pode agradecer por essa atribulação?

Quem vai prestar contas sobre as vítimas das novas hecatombes, que se tornarão cada vez maiores?

Permanece assim: o ultimato da Áustria à Sérvia em 23 de julho de 1914 foi a fagulha que inflamou o mundo, apesar de ter se espalhado para a Itália com atraso. Permanece assim: esse ultimato foi o sinal para a redistribuição do mundo e, por necessidade, clamou pela participação de todos os estados saqueadores capitalistas no plano. Permanece assim: esse ultimato colocou na ordem do dia a pergunta sobre a supremacia nos Bálcãs, na Ásia Menor e em todo o mar Mediterrâneo e continha assim, concomitantemente, os contrastes entre a Áustria e a Alemanha e a Itália de um golpe só.

Se os imperialismos alemão e austríaco, nesse momento, se escondem atrás da moita da política de roubo italiana, se procuram se esconder nos bastidores da deslealdade italiana, se vestem a toga da indignação moral e da inocência, ao passo que em Roma encontraram, na realidade, os seus iguais, são merecedores do mais elevado desprezo.

Que não se esqueça que o povo alemão foi enganado precisamente na questão italiana, foi enganado pelos muito respeitáveis patriotas alemães.

A tríplice aliança com a Itália sempre foi uma farsa – vocês foram enganados sobre isso!

Os especialistas sempre tiveram como certo que, em caso de guerra, a Itália seria antagonista da Áustria e da Alemanha – vocês foram levados a crer que ela seria uma aliada certa! No tratado da Tríplice Aliança, cuja conclusão e renovação ninguém consultou vocês, boa parte do destino político da Alemanha foi consolidado – até hoje nem uma letra deste tratado foi compartilhada com vocês.

O ultimato da Áustria à Sérvia, com o qual uma pequena claque de gentalha surpreendeu toda a humanidade, era a ruptura do tratado de aliança entre a Áustria e a Itália – mas, para vocês, nada disso se falou. Esse ultimato foi publicado com a expressa oposição da Itália – mas, para vocês, essa informação foi sonegada.

No dia 4 de maio deste ano, a aliança entre Itália e Áustria já estava dissolvida – até 18 de maio, o povo alemão e o austríaco foram privados do conhecimento desse fato consumado, sim, apesar da verdade, ela foi negada pelos oficiais – um equivalente do engano proposital do povo e dos parlamentos alemães sobre o ultimato alemão à Bélgica em 2 de agosto de 1914.

Quanto às negociações oficiais da Alemanha e da Áustria com a Itália, das quais dependia a intervenção na Itália, não foi possível ter nenhuma influência. Vocês foram tratados como crianças nessas questões de grande importância, enquanto o partido da guerra, enquanto a diplomacia secreta, enquanto um punhado de gente em Berlim e Viena jogava dados com o destino da Alemanha.

O torpedeamento do Lusitânia não só consolidou o poder dos partidários da guerra ingleses, franceses e russos, mas iniciou um difícil conflito com os Estados Unidos, todos os países estrangeiros neutros deram mostras de fervorosa indignação contra a Alemanha e, não só, a funesta obra dos partidários italianos da guerra foi facilitada no momento mais crítico – para isso, foi necessário o silêncio do povo alemão; a mão pesada do estado de sítio lhe prensou a garganta.

A paz já poderia ter iniciado em março deste ano – a oferta foi feita pela Inglaterra – mas a ganância dos imperialistas alemães deu as caras novamente. Os auspiciosos esforços de paz foram impedidos pelos interesses alemães de conquistas coloniais em larga escala, na anexação da Bélgica e da Lorena francesa, pelos capitalistas das grandes companhias de transporte alemãs, pelos demagogos da indústria pesada alemã.

Também isso foi escondido do povo alemão, também quanto a isso não lhe foram prestadas contas. A quem, perguntemos então, o povo alemão deve agradecer pela continuação da horrível guerra, pela intervenção da Itália? São responsáveis ninguém além dos irresponsáveis que estão no nosso próprio país!

Tudo aprender, nada esquecer!

Para cabeças pensantes, a cópia italiana dos acontecimentos alemães do verão do ano passado não será o estopim de novos delírios de guerra, apenas um novo estímulo para afugentar aquelas equívocas esperanças de um alvorecer de justiça política e social, apenas um novo raio de luz na iluminação das responsabilidades políticas, na revelação em sua totalidade do perigo público que representam os condutores da guerra austríacos e alemães, apenas um novo ato de acusação contra eles.

Mas a regra de aprender e não se esquecer se aplica também à heroica luta dos nossos camaradas italianos contra a guerra, que têm lutado mais e mais. Lutando na imprensa, nas assembleias, nas manifestações de rua, lutas com vigor e audácia revolucionárias, travando com corpo e alma violentos combates contra a onda nacionalista inflamada oficialmente. Sua luta merece congratulações entusiasmadas. Que seu gênio nos sirva de exemplo! Cuidemos para que seu exemplo seja internacional!

Tivesse sido assim naqueles dias de agosto, tudo estaria melhor no mundo. Tudo estaria melhor para o proletariado internacional.

Mas a resoluta disposição de luta não pode vir tarde demais!

Está arruinada a disparatada palavra de ordem da “resistência”, que apenas e sempre conduz profundamente ao torvelinho da destruição dos povos. A luta de classe do proletariado internacional contra a destruição dos povos promovida pelo imperialismo internacional é a tarefa socialista do momento.

O principal inimigo de cada povo está em seu próprio país!

O principal inimigo do povo alemão está na Alemanha: o imperialismo alemão, os partidários da guerra alemães, a diplomacia secreta alemã. Esse inimigo em seu próprio país deve ser combatido pelo povo alemão em uma luta política, em cooperação com o proletariado de outros países, que deram início à luta contra seus próprios imperialistas.

Sabemos que somos um com o povo alemão – nós não temos nada a ver com os Tirpitz e Falkenhay alemães, o governo alemão de repressão política, de servidão social. Nada para estes, tudo para o povo alemão. Tudo para o proletariado internacional, para o proletariado alemão, para a humilhada causa da humanidade!

Os inimigos da classe trabalhadora contam com o esquecimento das massas – cuidemos para que eles calculem mal! Eles especulam com a paciência das massas – nós, entretanto, levantamos o tempestuoso grito:

Por quanto tempo mais os jogos de azar do imperialismo abusarão da paciência do povo? Basta, chega de carnificina! Abaixo com os agitadores da guerra, dentro e fora das fronteiras! Um fim ao genocídio!

Proletários de todos os países, sigam o exemplo heroico de seus irmãos italianos. Juntem-se à luta de classes internacional contra as conspirações da diplomacia secreta, contra o imperialismo, contra a guerra, por uma paz no espírito socialista! O principal inimigo está em nosso próprio país!

*Karl Liebknecht (1871-1919) foi deputado na Alemanha e líder do movimento espartaquista.

Tradução: V. Souza, M. Nogueira & P. Mesquita.

Publicada originalmente em <transição.org>.

À medida que se aproxima o 15 de janeiro – dia em que, em 1919, foram assassinados Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht por policiais do governo social-democrata alemão –, publicamos textos que recuperam o legado desses importantes revolucionários.


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