Reserva neoextrativista

Imagem: Rahul Pandit
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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE & WESLEY PEREIRA OLIVEIRA*

Especialização primário-exportadora e acumulação por espoliação na Amazônia

O sistema capitalista configura-se em uma dinâmica de acumulação em escala crescente. Um processo de renovados ciclos de acumulação,produção e apropriação de riquezas que inclui diversos espaços territoriais, perfazendo uma dinâmica reprodutiva mundial.A Amazônia constitui um destes espaços locais de exploração capitalista, um território de expansão da acumulação que sofreu uma reconfiguração econômica ao longo dos diversos ciclos de desenvolvimento capitalista brasileiro durante o século XX até a configuração atual de uma reserva neoextrativista de recursos naturais com efeitos em sua ocupação, espaço, uso da terra, valor, relações de trabalho e degradação ambiental. Este artigo analisa a interação entre o atual padrão econômico brasileiro de produção e exportação de bens primários e as condições de espoliação econômica daquela região, com as inevitáveis consequências de degradação social e ambiental.

O desenvolvimento histórico do capitalismo implica numa crescente mercantilização das relações sociais e do espaço territorial global. Os processos de produção ligam-se uns aos outros em complexas cadeias de mercantilização. A economia capitalista se move pelo propósito instrumental de maximizar a acumulação. As condições para reprodução social do capital se colocam em termos temporais sob a dupla condição de primeiro garantir os valores de uso, que servirão para substituir os elementos materiais do capital, consumidos no curso do ano e, como sequência, garantir que o produto excedente líquido seja transformado em capital.

Nas últimas décadas se estabeleceu de forma crescente em toda América Latina uma nova disposição relacional com o capital mundial. Este padrão de desenvolvimento capitalista, centrado em alguns eixos comuns, se generalizou em diversos países do continente o neoextrativismo, estabelecendo o “padrão exportador de especialização produtiva”.

Os principais componentes comuns identificados neste padrão de crescimento econômico que se estabeleceu no Brasil nas últimas décadas, fruto da reconfiguração da Divisão Internacional do Trabalho (DIT) podem ser sistematizados em três elementos: i) esgotamento do crescimento econômico baseado na diversificação industrial ou crescente reprimarização da estrutura econômica nacional (OSÓRIO, 2012; TRINDADE & OLIVEIRA, 2017); ii) a base neoextrativista estabelecida, determina uma intensiva e crescente espoliação da natureza, no sentido estabelecido por Harvey (2005) observa-se um processo de “acumulação por espoliação” enquanto base desta  dinâmica de expansão do capital; iii) a massa de valores de uso produzidos destinam-se ao mercado internacional, reestabelecendo um padrão de reprodução de especialização primário-exportador.

Por padrão de reprodução de capital entendemos as formações sociais e econômicas capitalistas que se estabelecem nacionalmente, compreendendo, de um lado graus variados de dependência ao circuito da economia mundo capitalista, por outro, maior ou menor desenvolvimento e expansão autônoma tecnológica, creditícia e poder soberano do seu Estado nacional. Este conjunto de variabilidades estabelece sociedades capitalistas bastante diversas, o que condiciona as relações econômicas internacionais e ao mesmo tempo define o papel destas sociedades na divisão internacional do trabalho, bem como o grau de integração dos diversos circuitos econômicos presentes na sua dinâmica interna.

Neste contexto dois aspectos são importantes: i) o papel da produção mineral amazônica e do agronegócio na atual lógica de desenvolvimento brasileiro, centrada em crescente reprimarização econômica e; ii) a elevada degradação ambiental produzida pelas formas de exploração neoextrativista mineral e do agronegócio estabelecidos, determinando o atual ciclo econômico de acumulação por espoliação.

A reprimarização econômica constitui ponto mais evidente em economias que alcançaram um grau de complexidade industrial maior, como o caso do Brasil. Especificamente as condições de evolução da pauta exportadora brasileira nos últimos anos recolocou a questão da problemática do desenvolvimento de um “padrão exportador de especialização produtiva”, seja pela base exportadora de baixa intensidade tecnológica, seja pela forte dependência do ciclo de valorização da demanda internacional por bens básicos ou primários.

Nos últimos anos, observou-se elevação do grau de abertura da economia brasileira, com elevação no valor exportado bastante significativo: entre 2000 e 2020 o crescimento absoluto foi acima de US$ 150 bilhões, sendo que se quadriplicou o total exportado. Esta trajetória de expansão na exportação foi basicamente centrada na elevação da exportação de produtos primários, o que denota o problema da volatilidade dos preços das commodities em relação aos bens manufaturados e uma dinâmica de baixa estabilidade ao longo do tempo, fortemente vinculada a eventuais elevações de demandas provocadas por boom de alguma economia central ou semiperiférica, especificamente neste caso estimulado pelo crescimento da China.

Em relação a acumulação por espoliação, temos um mecanismo histórico de reprodução do capital com base na apropriação ou “despossessão” de riqueza ou propriedade previamente existente, capaz de dar vazão as condições de acumulação de capital frente às crises de superprodução recorrentes do capitalismo. Esta forma de acumulação remete as condições prévias de desenvolvimento do modo de produção capitalista, o que Marx ([1867], 2013) denominou de acumulação primitiva de capital. Harvey (2005) estabelece a hipótese de que as condições de reprodução do capital requeiram uma continua expansão “colonial” ou reinvenção de processos “neocoloniais”.

Essas formas de acumulação espoliativa são muito diversificadas, mas têm como ponto comum serem mecanismos de elevado grau de degradação social e ambiental. Desta forma a exploração dos recursos naturais e o neoextrativismo mineral são bastante característicos de um processo de exploração em elevada escala que se utiliza das jazidas minerais de elevado teor e de fácil prospecção próprias das grandes jazidas amazônicas, tanto ferríferas, quanto de bauxita, os dois principais minérios explorados na região que tratamos.

As condições especificas de expansão da indústria mineral amazônica realiza-se com a expulsão de diversas populações dos seus territórios originais, assim como com elevado custo ambiental na região como se buscará mostrar neste artigo. Por outro, a privatização de empresas estatais como a Companhia Vale na década de 1990, ao lado de gigantescas áreas florestais devastadas para garantir a exploração mineral e do agronegócio são elementos que colaboram na identificação do atual ciclo neoextrativista como um processo propriamente de acumulação por espoliação.

Exportação de produtos primários e  degradação ambiental

A balança comercial brasileira apresenta comportamento bastante regular nas últimas duas décadas. Superavitária no começo dos anos 1990 e, de 1995 a 2000, deficitária. A partir daí o que se observa é superávit e crescimento considerável do saldo comercial, com as exportações crescendo em ritmo mais acelerado que as importações. Somente em três anos se observou déficits (2000, 2013 e 2014), chegou ao pico em 2017, com saldo de US$ 56 bilhões, mantidos elevados saldos nos últimos quatro anos. Dos destaques dos produtos básicos, minério de ferro e soja são os principais itens da pauta de exportação, conforme evidenciado na tabela abaixo contendo os principais produtos exportados pelo país em 2020.

Principais produtos exportados pelo Brasil – 2020

 

Fonte: ComexStat, Ministério da Economia (2021). Elaboração própria.

Outros produtos primários são combustíveis, carnes e açúcares. A carne bovina é item em franca ascensão. Em 2020, o Brasil exportou US$ 15,8 bilhões em carne bovina (80% sendo in natura), sendo o país é o maior exportador mundial de carne bovina. Esses resultados da balança comercial mostram o desfazimento completo da indústria de transformação, com total domínio da pauta primário exportadora, como se evidenciam nos números expostos acima. Por outro, essa pauta primário exportadora é fortemente concentrada na região amazônica, com óbvios elementos de impactos ambientais, especialmente focados no desmatamento.

O cenário amazônico e nacional, portanto, evidenciam acelerado processo de especialização primária da pauta de exportação, com consideráveis implicações tanto econômicas quanto socioambientais, consistindo no desmatamento um dos principais aspectos daí decorrentes.

A geração de divisas via balança comercial em anos recentes está pautada principalmente na comercialização de produtos básicos. Mais ainda, a balança comercial no país deve e muito sua situação superavitária aos estados da Amazônia, principalmente Pará e Mato Grosso. Esses dois estados da chamada Amazônia Legal respondem por 18,5% do valor total exportado pelo Brasil, ou seja, dos 209 bilhões de dólares comercializados em 2020, os dois principais estados da Amazônia Legal responderam por quase 39 bilhões de dólares, sendo que esse volume se deve basicamente aos dois produtos primários principais de produção e exportação nacionais: o minério de ferro e a soja.

As condições de desenvolvimento regional parecem ainda mais agravadas pela relação contraditória entre desoneração da exportação e exportação de bens primários e semielaborados. A contradição presente relaciona-se a dois aspectos centrais: i) as cadeias de produção primário-exportadoras são muito curtas, o que estabelece a incapacidade de apropriação de rendas (mineradoras ou agrárias) que pudessem definir novos padrões sociais e ambientais para a região; ii) a segunda contradição relaciona-se bastante com a anterior e refere-se a desoneração tributária para exportação desse tipo de bem estabelecida pela Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir), sem contudo nenhuma solução federativa ser oferecida. Os estados exportadores líquidos acabam tendo o ônus ambiental e social, sem o devido retorno, seja tributário, seja oriundo de acordo federativo.

A geração de divisas via balança comercial em anos recentes está pautada principalmente na comercialização de produtos básicos. Mais ainda, a balança comercial no país deve e muito sua situação superavitária aos estados da Amazônia, principalmente Pará e Mato Grosso. Tem-se, então, a Amazônia como importante região exportadora para o Brasil, porém a um enorme custo social e ambiental.

Os dados do PRODES (2021)[i] mostram que o avanço da cultura da soja e do extrativismo mineral acompanham o desmatamento amazônico. Os primeiros anos da década  de 2000 foram críticos em termos de devastação florestal na Amazônia, chegando em 2004 com 27,7 mil Km² de área desmatada. Naquele ano, só o Estado do Mato Grosso foi responsável por mais de 40% do desmatamento total, seguido pelo Pará (32%). A partir desse pico a área desmatada diminuiu gradativamente, alcançando 4,5 mil Km² de área desmatada em 2012, voltando a se elevar aceleradamente  após o golpe de Estado de 2016 e aumentando muito fortemente com o governo Bolsonaro e com o desmanche do IBAMA e ICM-Bio.

Mantida a tendência observada de fornecedor de produtos básicos, a região amazônica: i) perde por não agregar valor ao processo produtivo; ii) aumenta sua fragilidade frente possíveis crises no mercado externo (ou queda nos preços por algum outro motivo), uma vez da ênfase na exportação de commodities, como já mostrou em anos recentes (2013 e 2014); iii) aumenta o gap no processo de desenvolvimento regional em relação às outras regiões do país, que se voltam mais para a produção industrial, porém, também sustenta a condição nacional de um padrão primário-exportador com graves consequências no médio prazo, inclusive pela complexidade urbana brasileira e os limites de um padrão que não gera estímulos de emprego e renda necessários; iv) perde também por apresentar maior concentração de capital (e renda) no setor primário-exportador, que não proporciona efeito transbordamento na economia; v) em termos ambientais, o prejuízo é muito expressivo, pois as atividades tidas como principais causadoras do desmatamento (mineração, pecuária e soja) estão na cesta de exportação crescente dos produtos primários.

Assim, o trade-off geração de divisas versus recrudescimento da desigualdade produtiva regional deve ser repensado, seja pela necessária melhoria da qualidade de vida da população da região amazônica, seja pela introdução de um modelo de desenvolvimento que supere o atual padrão de mero celeiro de produtos básicos, com efeitos deletérios crescentes sobre o meio ambiente e com baixo retorno social, basta conferir os indicadores de desenvolvimento humano da região e especialmente dos dois estados em foco.

*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Crítica da Economia Política da Dívida Pública e do Sistema de Crédito Capitalista: uma abordagem marxista (CRV

*Wesley Pereira Oliveira é professor de economia na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA).

Referências


TRINDADE, J. R. B.; OLIVEIRA, W. P. Padrão de especialização primário-exportador e dinâmica de dependência no período 1990-2010 na economia brasileira. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 37, n. 4, p. 1059-1092, mar. 2017.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital [1867]. São Paulo: Boitempo, 2013.

OSÓRIO, J. América Latina: o novo padrão exportador de especialização produtiva:  estudo de cinco economias da região. In: FERREIRA, C.; OSÓRIO, J.; LUCE, M. (Orgs.). Padrões de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012.

HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

Nota


[i] O projeto PRODES do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) realiza o monitoramento por satélites do desmatamento por corte raso na Amazônia Legal e produz, desde 1988, as taxas anuais de desmatamento na região. Acesso em http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes.

 

 

 

 

 

 

 

 

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