A dúvida do ANDES-SN

Imagem: Paula Schmidt
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

Quando a dúvida paralisa: a crise silenciosa do ANDES-SN e a urgência de uma insurgência docente que volte a arder

Há sentimentos que se tornam tão densos, tão recorrentes, que deixam de ser apenas afetos e passam a constituir um modo de existir institucional. A dúvida é um deles. Não a dúvida filosófica do método cartesiano, nem a dúvida cética da razão liberal. Aqui falamos da dúvida como abismo afetivo e político, como esse estado em que se pressente a verdade, mas não se ousa nomeá-la. A dúvida que se aloja nas entranhas de uma organização e a impede de mover-se – não porque não saiba, mas porque teme as consequências de saber. É esse o tipo de dúvida que hoje habita o ANDES-SN.

Há um cansaço difícil de nomear nas entranhas do movimento docente. Um cansaço que não é apenas físico ou burocrático, mas existencial. O sindicato que um dia foi símbolo de combatividade se vê, agora, em meio a uma crise silenciosa: congressos formais, assembleias esvaziadas, documentos que se repetem como liturgias que já não despertam fé. A dúvida, que deveria ser ferramenta de radicalização, transformou-se em escudo contra a dor da ruptura. A dúvida que deveria incendiar, hoje serve para resfriar. É ela quem impede o grito, quem organiza o adiamento, quem administra a melancolia.

Este artigo nasce da dor de ver o ANDES-SN – essa entidade forjada na recusa da ditadura, na rebeldia dos tempos difíceis – se tornando pálido diante da tragédia universitária contemporânea. E nasce da convicção de que essa palidez não é inevitável: ela é resultado de uma captura, de uma adaptação, de um abandono da insurgência. A dúvida virou método. Virou protocolo. Virou desculpa.

O que propomos, aqui, é uma reviravolta ética: recuperar a dúvida como coragem, não como cálculo. Como gesto de desobediência e não como técnica de manutenção. Porque a dúvida insurgente ainda pulsa – mas precisa ser libertada da forma que a engessa. O ANDES-SN precisa reaprender a duvidar como quem recusa, como quem rompe, como quem se recusa a compactuar com o insuportável.

A universidade pública está sendo transfigurada. O trabalho docente está sendo triturado. A pesquisa crítica está sendo sufocada por métricas, editais e algoritmos. E o sindicato hesita. Hesita em nomear, hesita em convocar, hesita em romper. Mas essa hesitação tem um custo: ela esvazia a política, esfria os afetos, dissolve o sentido coletivo da luta. A dúvida, nesse estado, não é prudência – é paralisia.

A dúvida insurgente, ao contrário, arde. Ela inquieta. Ela angustia. Ela exige que o sindicato se olhe no espelho e pergunte: o que nos tornamos? E se não gostarmos da resposta, que sejamos capazes de rasgar a moldura. Porque a dúvida insurgente não serve para manter, mas para reinventar. E a reinvenção exige dor, exige ruptura, exige desacomodação.

A proposta deste ensaio é, então, uma convocação. Uma convocação a sentir novamente, a recusar os confortos que paralisam, a reabrir a ferida da luta como possibilidade de cura. Vamos percorrer, com o rigor de quem ama profundamente a universidade pública e seus trabalhadores, os caminhos pelos quais o sindicato foi transformando a dúvida em defesa da forma, em vez de enfrentamento da realidade.

Mas não pararemos aí. Queremos recolocar a dúvida em seu lugar de origem: como explosão ética, como coragem crítica, como forma de se lançar, mesmo sem garantias, na reinvenção da luta.

Se a universidade é o último bastião de pensamento em um mundo devastado, o sindicato precisa reaprender a ser o seu grito – e não seu eco domesticado.

Quando a dúvida deixa de queimar

Houve um tempo em que duvidar era um gesto de resistência. A dúvida nascia da indignação com o que estava posto e se transformava em movimento, em palavra, em enfrentamento. A dúvida ardia. Era chama que impelia à ação, que rasgava os véus da acomodação. Mas, ao longo dos anos, algo mudou. A dúvida foi domesticada. Passou a ser cultivada como cautela, convertida em cálculo, embrulhada em relatórios e resoluções, burocratizada em comissões. Deixou de queimar. Tornou-se fria. Tornou-se expediente. Tornou-se freio.

O ANDES-SN, em nome da prudência, começou a duvidar de tudo – menos de si mesmo. Duvidou do timing da ruptura. Duvidou da urgência da denúncia. Duvidou da necessidade de nomear com clareza os novos modos de dominação que capturam a universidade. Mas nunca duvidou de suas próprias formas. Nunca questionou a rigidez de sua estrutura, a opacidade de sua linguagem, a obsolescência de seus rituais. A dúvida que deveria ser gesto inaugural de reinvenção, passou a proteger a permanência da forma, mesmo quando ela já não sustentava o peso da realidade.

Essa captura da dúvida teve consequências. A base docente, cada vez mais marcada por múltiplas formas de precarização – emocional, epistêmica, contratual – já não encontra na estrutura sindical o eco de seus próprios dilemas. A solidão do professor substituto, a angústia de quem tem que se provar produtivo em meio à escassez de tempo e recursos, o esgotamento silencioso dos que vivem o dia inteiro entre telas, plataformas e prazos – tudo isso se tornou paisagem invisível nas narrativas congeladas da luta. A dúvida institucionalizada substituiu a escuta viva pela agenda previsível.

Há algo de cruel nesse processo. O sindicato, que nasceu da necessidade de gritar contra a injustiça, agora silencia pela dúvida convertida em prudência. E esse silêncio dói. Dói porque aparece nos momentos em que a coragem seria mais necessária. Quando uma universidade é invadida por forças autoritárias. Quando um professor adoece por metas inatingíveis. Quando uma estudante é violentada por um sistema que a julga improdutiva. Nessas horas, o sindicato hesita. Publica uma nota. Adia o conflito. Prefere o consenso ao risco. E a dúvida, mais uma vez, serve como parede.

Mas a política da dúvida fria não mobiliza. Não convoca. Não arranca ninguém do sofá ou da sala de aula. Ela apenas conserva a institucionalidade enquanto o mundo que a sustenta desaba. É nesse ponto que a dúvida insurgente precisa ser resgatada — não como negação da razão, mas como forma mais alta de razão crítica. A dúvida que insiste em perguntar: quem estamos protegendo quando nos calamos? Que universidade estamos defendendo quando aceitamos a lógica do produtivismo? Que pacto estamos renovando ao silenciar diante da dor?

Essa dúvida que arde é diferente. Ela é feita de angústia, sim, mas também de amor. Amor pela universidade viva, pela sala de aula habitada, pela pesquisa que não se submete ao mercado, pela extensão que conversa com o território, pela liberdade de cátedra que se nega a repetir fórmulas. É esse amor que exige a dúvida como gesto radical: porque amar uma instituição não é protegê-la de si mesma — é forçá-la a ser outra, quando ela trai seus próprios princípios.

O ANDES-SN precisa reaprender a duvidar como quem sofre, como quem sente, como quem não suporta mais ver os colegas adoecerem em silêncio, os estudantes abandonarem os cursos, os professores se tornarem planilhas. A dúvida insurgente não quer consenso — quer recomeço. Ela pede assembleias que sejam espaços de desabafo e não apenas de informes. Pede documentos que se escrevam com a carne da experiência e não com o código da máquina. Pede lideranças que não tenham medo do erro, desde que não errem por omissão.

A política da dúvida insurgente é feita de gente. Gente que ainda acredita, que ainda chora, que ainda ousa duvidar da dúvida fria. E essa gente, espalhada pelas universidades, espera — mesmo que não diga — por um sindicato que tenha coragem de queimar de novo.

Toda instituição que se preserva demais corre o risco de perder o rosto. Evita o conflito, adia o necessário, finge harmonia — e, nesse processo, deixa de se reconhecer. O ANDES-SN encontra-se nesse ponto. Preserva a liturgia dos congressos, cumpre as resoluções regimentais, multiplica textos e reuniões, mas já não se enxerga nos olhos de quem deveria representar. O sindicato tornou-se, aos poucos, um espelho opaco. Reflete apenas a própria forma, não mais o movimento real das universidades.

Os rostos que faltam nesse espelho são muitos. Faltam os professores intermitentes, os bolsistas que não são formalmente docentes, mas que sustentam aulas, orientação, extensão. Faltam os docentes com dupla, tripla jornada, que não cabem nas agendas regimentadas. Faltam os que não dominam a linguagem da assembleia e se calam por vergonha. Faltam os precarizados dos campi afastados, que vivem entre o deslocamento e o esquecimento. Faltam, sobretudo, os que ainda resistem, mas não encontram no sindicato uma tradução de sua dor.

O espelho não mente – ele omite

A omissão é mais violenta do que o erro. Porque o erro pode ser corrigido, mas a omissão se naturaliza, se justifica, se torna prática silenciosa de exclusão. Quando o sindicato escolhe o silêncio em nome da unidade, ele escolhe a amputação. Amputa a diversidade da base, a complexidade das demandas, a urgência dos temas que doem. A dúvida, nesse contexto, é o verniz do medo de escutar o que realmente precisa ser dito.

Há muito tempo o ANDES-SN deixou de olhar para o novo. A precarização da docência, que avança pelas brechas institucionais, não encontra um diagnóstico claro. A financeirização da universidade, que transforma saber em ativo simbólico, não é enfrentada com a radicalidade necessária. As redes de apoio estudantil, que resistem nas bordas, são vistas como temas adjacentes. Os algoritmos que decidem bolsas, rankings, cortes e projetos — não são nomeados nos documentos do sindicato, como se pertencessem a outra esfera, intocável, técnica, inevitável.

Mas tudo isso nos atravessa. Tudo isso nos fere. A universidade tornou-se um campo de vigilância e performatividade quantitativa. E o professor, quando não adoece, silencia. Quando não silencia, se exaure. Quando não se exaure, se afasta. E o sindicato, diante disso, faz relatórios. Promove seminários. Publica notas. A dúvida virou expediente.

O sindicato diante do espelho não enxerga sua própria obsolescência afetiva. Não percebe que já não mobiliza, que já não comove, que já não arranca lágrimas, nem raiva, nem entusiasmo. Mobilizar não é apenas organizar greve — é acender o desejo de pertencimento. E o desejo nasce da identificação: o professor precisa se ver ali. Precisa sentir que o sindicato fala com ele, por ele, através dele. Que os textos não são fórmulas, mas testemunhos. Que as assembleias não são rituais, mas territórios de fala e escuta.

A dúvida insurgente, nesse momento, exige uma honestidade brutal. O ANDES-SN precisa se olhar no espelho e perguntar: a quem servimos hoje? De quem é esse silêncio que fingimos proteger? A quem interessa a dúvida como adiamento, e não como convocação? A resposta, se for verdadeira, doerá. Mas é essa dor que pode, finalmente, abrir a fenda por onde a reinvenção começa.

É preciso devolver o rosto ao sindicato. Um rosto que chore, que grite, que se enrugue, que se manche de tinta, que se molhe de chuva, que escute a voz dos que nunca foram ouvidos. O sindicato precisa voltar a ver — e, para isso, precisa quebrar o espelho.

A universidade pública brasileira vive uma devastação que não se mede apenas em cortes orçamentários. O que se esfarela, pouco a pouco, é o próprio sentido de sua existência. As bibliotecas estão vazias de livros novos e cheias de poeira; os laboratórios, sucateados; os servidores, adoecidos; os estudantes, endividados e famintos. A pesquisa é pautada por editais voláteis, e a extensão sobrevive por insistência afetiva de quem acredita que ainda vale a pena. As salas de aula tornaram-se espaços de sobrevivência, e não mais de formação crítica. Há uma dor profunda que ecoa nos corredores — mas o sindicato não escuta.

A dúvida, nesse cenário, não deveria ser desculpa para inação. Deveria ser espanto. Deveria ser grito. Deveria ser convocação a algo novo. Mas o que se vê é o contrário: uma dúvida meticulosamente administrada, uma hesitação transformada em protocolo. O ANDES-SN, diante das ruínas, oferece o conforto da linguagem formal. Não tensiona. Não acusa. Não propõe rupturas. Age como se houvesse tempo, como se a destruição em curso fosse apenas mais uma fase de instabilidade a ser vencida por meio de ofícios e notas técnicas.

Enquanto isso, o docente se dilui entre reuniões infindas, tarefas administrativas, plataformas digitais, autoavaliações, relatórios de produtividade e o silêncio. Silêncio sobre sua dor. Silêncio sobre o esvaziamento do pensamento. Silêncio sobre o abandono. E o sindicato, em vez de nomear esse silêncio como sintoma, o reproduz — com a dúvida que justifica o adiamento, com a forma que eterniza a espera.

O que está em jogo é mais do que um conjunto de reivindicações salariais ou melhores condições de trabalho. O que está em jogo é a possibilidade de a universidade continuar existindo como espaço público de elaboração crítica da vida social. E, se essa dimensão desaparece, não há sindicato que se sustente, porque não haverá mais o que defender. A dúvida insurgente, nesse ponto, é a única forma ética de pertencer à ruína — não para aceitá-la, mas para disputar sua reconstrução.

Ser insurgente hoje significa escutar o que a universidade tenta dizer com seus escombros. Significa traduzir em ação o que os corpos docentes já gritam com sua exaustão. Significa dizer que a neutralidade organizativa é conivente com a destruição. Que hesitar diante da violência é ser cúmplice dela. Que preservar estruturas vazias enquanto a universidade desaba é um crime de omissão contra a história.

E essa omissão dói mais porque vem de onde se esperava a rebeldia. O ANDES-SN não é um gabinete técnico. Não nasceu para administrar processos. Nasceu em um tempo de repressão, para ser grito, para ser refúgio, para ser insubmissão. Recuperar esse espírito não é nostalgia — é sobrevivência. A universidade precisa de quem lute por ela como quem defende um ente querido — com a radicalidade do afeto e a violência da recusa.

É essa radicalidade que a dúvida insurgente oferece. Ela recusa a lógica do remendo, a ilusão da estabilidade, o cinismo das promessas institucionais. Ela exige que o sindicato rompa com a gestão da catástrofe e volte a ser expressão das contradições reais, das dores reais, das vontades reais. A dúvida insurgente não se cala diante da ruína — ela a denuncia com todas as palavras, com todas as lágrimas, com todos os atos.

Quando a universidade sangra, o sindicato não pode hesitar. Tem que se colocar no chão da luta, mesmo que o chão esteja em chamas. Porque é ali, e só ali, que a política viva acontece.

A dúvida como forma de resistência insurgente

A dúvida que importa não é aquela que administra a estabilidade, mas a que fere. A dúvida que salva não é a que relativiza tudo, mas a que exige posicionamento. A dúvida que transforma não teme o conflito — deseja-o. Porque sabe que há momentos históricos em que não duvidar de si mesmo é a mais grave das traições. O ANDES-SN vive um desses momentos. E sua sobrevivência política, e mesmo simbólica, depende da capacidade de recuperar a dúvida como gesto inaugural da insurgência.

Essa insurgência não é um programa, não é uma pauta pronta, não é um plano de ação sequenciado. Ela é uma disposição ética. Um afeto que se recusa a normalizar a dor. Uma raiva lúcida contra a forma morta. Uma coragem radical de desfazer o que já não serve para inventar o que ainda não sabemos como será. A dúvida insurgente não pede garantia de sucesso — pede coerência com a vida que pulsa nos subterrâneos da universidade devastada.

Ela nasce nos corredores empoeirados onde a biblioteca perdeu o sentido de comunidade. Ela explode nas reuniões em que o professor que mais produz não tem sequer tempo para viver. Ela atravessa a fala das professoras negras que carregam sozinhas o duplo fardo da exclusão epistêmica e da sobrecarga invisível. Ela emerge nas rodas de estudantes que não sabem se estarão matriculados no mês seguinte. Ela é feita de carne, de tempo, de angústia. E de esperança desesperada.

A dúvida insurgente não se expressa apenas na recusa de um modelo, mas na recusa de uma forma de vida que já não se sustenta. O sindicato, se quiser voltar a existir como espaço de esperança concreta, precisa ser o corpo coletivo dessa recusa. Precisa abandonar a linguagem técnica, os documentos frios, os discursos que servem para manter a forma enquanto o conteúdo apodrece. Precisa deixar de temer o erro e passar a temer a omissão. Precisa substituir o “vamos estudar o tema” pelo “vamos enfrentá-lo”.

Não se trata de romantizar a ruptura. A dúvida insurgente não é ingênua. Ela sabe dos riscos, das perdas, dos impasses. Mas ela sabe também que continuar como está é o risco mais intolerável de todos: o de desaparecer lentamente, enquanto se finge continuar existindo. O ANDES-SN não precisa apenas de nova pauta — precisa de nova alma. E essa alma só pode ser reconstruída se o sindicato escutar novamente os subterrâneos: os silêncios, os gemidos, as ausências.

Recuperar a dúvida como insurgência é permitir que a política volte a ser espaço de dor compartilhada. Que o sindicato volte a ser lugar de acolhimento, de ruptura, de invenção. Que o medo da ruptura não seja maior que a vergonha da conivência. Que o sindicato seja, outra vez, território de dissenso, de imaginação política, de amor à universidade que ainda não existe, mas precisa ser criada a partir da que temos — com seus escombros e suas brechas.

Essa é a aposta da dúvida insurgente. Não que ela nos traga certezas, mas que nos tire da inércia. Não que ela nos ofereça um novo manual, mas que nos devolva a capacidade de fazer perguntas impossíveis — e de respondê-las coletivamente, com o corpo inteiro. Se o ANDES-SN quiser sobreviver como instrumento de luta, terá que reaprender a duvidar como quem ama e como quem sofre. Porque só a dúvida que arde pode incendiar a política adormecida.

A dúvida não é uma fraqueza. É um modo de ver. É um modo de não se acomodar ao que está dado. É, antes de tudo, uma forma de amor: só duvida quem se importa. Só duvida quem sabe que algo poderia ser diferente. Só duvida quem sente que o presente já não abriga a dignidade da existência coletiva. O que esse artigo propôs, ao longo de suas páginas, foi a restituição ética da dúvida — não como método de preservação, mas como força de ruptura, como política do cuidado ativo, como valor insurgente.

O ANDES-SN, que nasceu como aposta na autonomia crítica da docência e da universidade, não pode se contentar com a administração do colapso. Sua razão de existir não é a mera defesa de direitos já corroídos, mas a afirmação de um outro horizonte: o de uma universidade viva, justa, combativa e radicalmente comprometida com o comum. Essa tarefa só pode ser assumida se o sindicato abandonar a dúvida estratégica e recuperar a dúvida existencial — aquela que arrisca, que mobiliza, que sacode estruturas.

O valor insurgente é esse horizonte. Um valor que não se mede por resoluções, mas por gestos cotidianos de recusa à indiferença. Um valor que não se constrói apenas nas assembleias, mas na escuta dos silêncios, no acolhimento dos angustiados, na coragem de dizer o nome do que mata a universidade por dentro: o cinismo, o medo, a acomodação. O valor insurgente é o que pulsa quando alguém se levanta na sala de aula e diz: “isso não pode continuar assim”. E age.

O sindicato insurgente não é perfeito. Não acerta sempre. Mas não teme o erro. Teme, sim, a neutralidade. O sindicato insurgente convoca. Desacomoda. Erradia do centro para as margens. Assume o risco da paixão política e da crítica intransigente. Cria, na dúvida, o lugar do recomeço. Porque não há luta sem dúvida — mas há dúvida que é fuga, e dúvida que é chama. É desta segunda que precisamos. Urgentemente.

Se a universidade pública brasileira ainda pode ser reinventada, será por meio de quem carrega a coragem de duvidar com honestidade e luta com ternura. Será por meio de sindicatos que deixem de se proteger e comecem a se oferecer. Que deixem de repetir e comecem a escutar. Que abandonem a retórica gasta da gestão da crise e abracem o gesto inaugural da resistência insurgente: o de amar o que ainda não existe, mas já nos convoca a existir.

A dúvida insurgente, enfim, é tudo o que resta quando todas as certezas falharam. E, por isso mesmo, é o que há de mais forte.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, sociedade de classes e reformas universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES