O problema do negro e o marxismo no Brasil

Imagem: Miguel Á. Padriñán
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Por FLORESTAN FERNANDES*

Não é só o passado remoto e o passado recente que enlaçam raça e classe na revolução social

Os que refletem sobre os “problemas brasileiros” pulverizam as realidades e os grupos. Daí, temos temas e gavetas de um arquivo. Não história viva, consciência histórica crítica e movimento político revolucionário.[i]

O marxismo ignorou a “questão racial” no Brasil.[ii] Na verdade, o marxismo ignorou tudo que é específico à formação do capitalismo no Brasil; o que é geral no processo de transformação das antigas sociedades coloniais na América Latina (em especial: a descolonização como realidade histórica). Em outras palavras, não se deve confundir a eclosão e a marcha das “lutas sociais”, de partidos ou de movimentos (anarquistas, comunistas, socialistas, etc.) com a constituição do marxismo.

Este mal se delineia nos ensaios e livros que servem de ponto de referência à periodização da historiografia.[iii] Houve o esboço de um salto qualitativo, no fim da década de 1960; mas, foi sufocado ou floresceu sem continuidade, dentro e fora do país.

Sem qualquer intuito simplificador: a falta de clareza na consciência social e racial das classes possuidoras e da raça dominante corresponde a debilidade da consciência social e racial das classes despossuídas e da “raça” negra. Ao restringir o uso do conflito à condição de privilégio das elites dirigentes das classes possuidoras, a “raça” dominante condenou-se à mistificação permanente da “questão racial” e limitou (pelo movimento dialético correspondente: conferir Marx e Engels, O Manifesto comunista) a arena histórica do “protesto negro” (em termos de consciência autônoma e também de prática político-social).

Este já fez muito ao negar a mistificação existente, ainda que nos limites da ideologia de paladino da ordem legal e do radicalismo burguês que não se concretizou (a contraideologia elaborada pelos movimentos de protesto negro marca o nível histórico mais alto do desmascaramento da situação racial e de uma tomada de posição política diante da “questão racial”).

As análises sociológicas não eram “neutras”: por trás do pesquisador universitário havia uma ruptura com as formas tradicionais de explicação (e de defesa) do mundo. A pesquisa empírica e a interpretação sociológica rompiam a unidade monolítica do pensamento conservador tanto quanto se negavam a inserir-se nos quadros da dominação tradicional (com sua ideologia de autodefesa da ordem racial imperante).

Em consequência, aquelas análises e interpretações corroboraram o “protesto negro” e o aprofundaram (em termos teóricos). Ficam como marcos de uma postura crítica e militante na proposição da “questão racial” no Brasil – embora não se possa afirmar que retratam uma reelaboração do marxismo com vistas à teoria ou à prática revolucionárias inerentes ao marxismo-leninismo.

A partir do aqui e do agora: é preciso superar, simultaneamente, a ótica do movimento radical do protesto negro e os limites da ciência de contestação. Deve-se dar outra envergadura à ligação entre lutas de classes e conflitos de raças (que não podem ser dissociados entre si no capitalismo) e inserir, tanto o movimento racial quanto a pesquisa científica, na dinâmica dessa transformação revolucionária.

A esse respeito, o que se fez dentro do marxismo na Europa não pode servir-nos como marco de referência (embora a análise da incorporação do mundo colonial e da questão judaica tenham indicado quão longe Marx e Engels poderiam ir nesses temas).

De fato, só muito recentemente os marxistas europeus se viram diante da temática “raça”, “capitalismo monopolista” e “dominação imperialista”; por infelicidade, a irrupção dessa temática coincide com tendências explícitas ou camufladas de “revisão do marxismo” e uma compreensão deformada das implicações morais e políticas do “internacionalismo proletário” tem alimentado uma visão complacente do que fica por trás da “partilha do mundo” quando os proletários do centro se beneficiam de uma estratificação racial inexorável.[iv] Ora, nós não podemos tomar uma posição “moderada” ou “revisionista”. Não é só o passado remoto e o passado recente que enlaçam raça e classe na revolução social. Sem entender o que decorre de uma descolonização que não vai até ao fundo e até ao fim, corremos o risco de não tirar do protesto negro – organizado e consciente ou não – todo o impulso que ele pode levar para a luta revolucionária do proletariado pela conquista do poder.

Panfleto do seminário no qual Florestan apresentou esta conferência

*Florestan Fernandes (1920-1995) foi professor de sociologia na USP e deputado federal pelo PT. Autor, entre outros livros, de A Revolução burguesa no Brasil (Contracorrente).

Notas


[i] Pesquisa, edição e notas de Diogo Valença de Azevedo Costa (UFRB) e Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e GPDH-IEA/USP). Esse documento encontra-se na Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes, na Biblioteca Comunitária da UFSCar; referência para localização: UFSCar/SiBi/COLESP/Fundo Florestan Fernandes/título do documento.

[ii] Essas notas foram redigidas para a conferência de Florestan no seminário: “O marxismo e a questão racial”, organizado pelo Centro de Intercâmbio de Pesquisas e Estudos Econômicos e Sociais (CIPES) e pelo Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), realizado no Sedes Sapientiae, na cidade de São Paulo, em 1979. Pela programação do seminário, Florestan apresentaria a conferência “O problema do negro e o marxismo no Brasil”, no dia 12/11, Celso Prudente apresentaria a conferência “O Marxismo e os problemas do terceiro mundo”, no dia 19/11, Jacob Gorender apresentaria a conferência “O marxismo e os problemas das nacionalidades oprimidas”, no dia 23/11, Romeu Sabará apresentaria a conferência “Um caso de aplicação concreta do método marxista”, no dia 30/11, e Clóvis Moura apresentaria a conferência “O imperialismo e as classes poliétnicas dos países do capitalismo dependente”, no dia 7/12. Um dos diversos relatórios do SNI sobre o movimento negro indica que o seminário foi vigiado por agentes policiais, disponível em: http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_dfanbsb_v8/mic/gnc/rrr/80000864/br_dfanbsb_v8_mic_gnc_rrr_80000864_d0001de0002.pdf

[iii] Em 1978, citando um artigo do jornal Última Hora, um dossiê do DEOPS sobre Florestan termina afirmando que ele “é um dos poucos cientistas que estuda e luta pela raça negra, e fala dos problemas do negro de hoje” (Relatório da Divisão de Informações do DEOPS. Assunto: Florestan Fernandes. Dossiê 50-Z-0-14616. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo). No texto “De uma ciência para e não tanto sobre o negro”, o sociólogo e militante do movimento negro Eduardo de Oliveira e Oliveira assume uma perspectiva semelhante à de Florestan, disponível em: https://aterraeredonda.com.br/de-uma-ciencia-para-e-nao-tanto-sobre-o-negro/

[iv] Entre as disputas acadêmicas desse período, algumas autoras e autores questionaram a falta de rigor teórico das correntes marxistas revolucionárias. No livro Sobre a violência, publicado em 1969, Hannah Arendt questionou as apropriações dos textos de Marx por Fanon e pelos militantes do Black Panther. Em Autoritarismo e democratização, publicado em 1975, FHC criticou os equívocos dos intelectuais da Teoria Marxista da Dependência, em especial, de Ruy Mauro, Gunder Frank e Régis Debray. Curiosamente, os censores do SNI sugeriram a proibição do livro, pois entenderam que FHC defendia a contra-violência revolucionária, disponível em: http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_rjanrio_tt/0/mcp/pro/0448/br_rjanrio_tt_0_mcp_pro_0448_d0001de0001.pdf


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