Por BRUNA STERNADT*
Considerações sobre o conto de Nadine Gordimer
Introdução
O safári definitivo é um conto escrito pela sul-africana Nadine Gordimer. Após uma visita a um campo de refugiados em Moçambique, ela se sentiu inspirada para a criação desta narrativa. Publicado inicialmente na revista literária britânica Granta em 1989, o conto foi posteriormente incluído na reunião de contos de Gordimer intitulada Jump and other stories, lançada em 1991.
A narrativa se desenrola através de uma narradora, menina negra e moçambicana, sem nome, que relata a jornada de sua família ao deixar a aldeia em que moravam e seguir para um campo de refugiados do outro lado da fronteira, atravessando o Parque Kruger, na África do Sul. A história é ambientada no contexto da Guerra Fria em Moçambique, um período caracterizado por instabilidade política e conflitos territoriais.
O fluxo de imigrantes de Moçambique para a África do Sul nas décadas de 1980 e 1990, foi acelerado pela guerra civil entre o governo Frelimo e as forças da Renamo, apoiadas pelo apartheid. Na história, os membros do grupo rebelde Renamo, referidos pela personagem principal como “bandidos”, tentam, com apoio da África do Sul, derrubar clandestinamente o governo marxista de Moçambique. O plano de fundo do conto inclui movimentos de libertação em vários países africanos, como também a estrutura de poder de pessoas brancas apoiada pelo governo moçambicano e o impacto do sistema apartheid da África do Sul sobre seu povo e nações vizinhas.
A jornada dessa família, que escapa dos perigos da Guerra Fria em Moçambique na história de Nadine Gordimer, é marcada por duas importantes personagens femininas. A primeira, a jovem menina citada anteriormente, que narra os eventos da migração com a perspectiva inocente de uma criança, que aguarda pelo fim da guerra e anseia poder viver novamente em sua antiga aldeia. A segunda personagem é a avó, responsável por manter a família segura durante a mudança para o campo de refugiados, carregando uma visão realista dos efeitos da guerra e mostrando o luto e o senso de não pertencimento vivenciado pelas famílias de refugiados.
Discussão e análise
O Safári Definitivo começa com uma descrição marcante que define e abre muitos elementos para discussão, sobre tudo a respeito dos tipos de devastação causados pela guerra: “As pessoas que meu pai estava combatendo – os bandidos, como o governo chamava – corriam por todo lado e a gente fugia deles como galinhas perseguidas por cachorros” (GORDIMER, 1991, p. 280). Nadine Gordimer inicia os parágrafos de abertura apresentando a escalada da Guerra Civil moçambicana, a euforia e o desespero das famílias sofrendo com a invasão de suas casas. Com a mãe das crianças desaparecida e a falta de comida na região, os avós da personagem principal decidem deixar a aldeia e atravessar o Parque Kruger em busca de apoio na África do Sul.
A narradora demonstra entender a necessidade de deixar tudo para trás devido às exigências urgentes de acesso a comida e água. “Nós, crianças, ficamos contentes. A gente queria ir embora dali onde nossa mãe não estava e onde a gente ficava com fome” (GORDIMER, 1991, p. 282).
A autora incorpora e simula o desespero das crianças neste cenário de maneira crua e sentimental. Ao mesmo tempo, a menininha, que embora não compreenda totalmente a complexidade da guerra, sente suas injustiças e alimenta a esperança por uma realidade que nunca mais voltará: o de retornar para a aldeia onde nasceu.
A perspectiva inocente da personagem é permeada por sentimentos de apego ao que foi perdido: sua família e sua aldeia. A garota, de certa forma, aguarda o retorno da mãe e a retomada dos hábitos que antes existiam. No trecho, “Eu disse, Gogo, como você vai à igreja agora sem nem seu sapato, mas ela disse que que o caminho era longo e era coisa demais para carregar” (GORDIMER, 1991, p. 283), podemos observar que o que restou para a família da garotinha moçambicana, foi apenas um modo de sobrevivência e a tentativa de se redescobrir em outro lugar.
No livro Cultura e imperialismo, Edward Said (1994) reflete sobre a perda inesperada do lugar de origem: “O exílio é afirmado a partir da existência da terra natal, do amor por ela e de uma ligação real com ela; a verdade universal do exílio não é que se tenha perdido esse lar ou esse amor, mas que, inerente a cada um existe uma perda inesperada e indesejada. Assim, devemos encarar as experiências como se elas estivessem a ponto de desaparecer” (p. 469).
Edward Said refere-se à experiência de povos deslocados de seus lares por razões políticas e como o exílio é uma experiência de trauma. Nadine Gordimer traz ao conto, um ponto de vista interessante que questiona o absurdo da guerra através dos olhos de uma criança, uma visão inocente que compete com as noções da avó sobre a situação.
Enquanto a narradora se apega a uma fantasia e à esperança de um possível retorno para sua aldeia no futuro, a avó adota uma postura mais rígida em relação à migração forçada da família. Para ela, o futuro da família está nas melhores chances de sobrevivência na África do Sul por meio do trabalho e do dinheiro, firmemente convencida de que nunca mais terá um lar para retornar.
Com a chegada ao campo para refugiados, a avó é entrevistada por uma mulher branca que a questiona sobre um possível retorno a Moçambique, a neta, ao escutar a resposta da avó, confronta uma realidade que nunca havia enfrentado antes e discorda da postura da avó: “Nossa avó olhou para o lado e disse: Não existe nada. Minha casa não existe. Por que nossa avó diz isso? Por que? Eu vou voltar. Eu vou voltar pelo Parque Kruger. Depois da guerra, se não tiver mais bandidos, nossa mãe pode estar esperando a gente” (GORDIMER, 1991, p. 293).
O desespero e a frieza da avó na narrativa não estão apenas relacionados a uma perspectiva madura da personagem, o ponto de vista de um adulto sobre as dificuldades da guerra, mas também ao papel que a avó teve que desempenhar durante a jornada no Parque Kruger, uma das maiores reservas de caça da África.
Ainda nas primeiras páginas do conto, a narradora descreve a avó como a mais forte fisicamente na família, afirmando: “Nossa avó é grande e forte, ainda não velha, e nosso avô é pequeno” (GORDIMER, 1991, p. 282). Além disso, ela assume o papel de liderança ao decidir que a família buscaria apoio na África do Sul: “Então eles decidiram – nossa avó decidiu” (GORDIMER, 1991, p. 282).
A avó precisou adotar uma postura rígida e tomar decisões difíceis para garantir a segurança da família. Após perder sua antiga vida na aldeia, ela enfrentou o trajeto com duas crianças e um recém-nascido, além do avô, que desapareceu devido a problemas de saúde e dificuldade para acompanhar a jornada na selva. Além disso, a avó lidou com a frustração de não ter alimentação para oferecer aos netos e a necessidade de entrar em uma das maiores reservas de caça, onde viviam variados animais selvagens. A personagem passou pela dolorosa experiência de deslocamento físico forçado sem rede de apoio.
Ao chegarem ao campo de refugiados, os traumas enfrentados durante a migração vem à tona, e novos problemas surgem. Ao chegarem à África do Sul, a primeira consequência da guerra é testemunhada de forma mais vívida, pois o irmão mais novo da narradora apresenta problemas de saúde devido aos dias em que passou sem acesso a comida de qualidade. “A irmã diz que há algo de errado com a cabeça dele, ela acha que é porque não tivemos comida suficiente em casa. E depois, porque ele estava com fome no Parque Kruger” (GORDIMER, 1991, p. 286).
A segunda consequência envolve o choque entre duas culturas, pois apesar de os habitantes do campo de refugiados falarem o mesmo idioma que a família, existe um sistema hierárquico que transmite uma falsa sensação de hospitalidade entre os moçambicanos e os habitantes da região. A existência de uma recepção para as famílias de refugiados não implica um acolhimento afetivo voltado para oferecer acolhimento e tratar dos traumas deixados pela guerra.
Em vez disso, fomenta um senso de dívida nos refugiados e transforma esses novos cidadãos em mão de obra barata. Não há espaço para recuperação física e mental, assim que a avó chega à aldeia, aparentando estar saudável, ela automaticamente é colocada para trabalhar. “Nossa avó, por ainda ser forte, encontra trabalho onde as pessoas estão construindo casas” (GORDIMER, 1991, p. 287). Deslocando o senso de lugar, a história das personagens femininas trata de subjugação e resistência.
Apesar de prestar serviços e ganhar dinheiro para sustentar sua família, a avó não possui direito algum, e a ideia de formar uma conexão com este novo lar permanece distante. Para garantir as necessidades básicas para os netos, são exigidos esforços físicos e horas de trabalho. “Nossa avó ainda não conseguiu comprar para ela um par de sapatos de ir na igreja, mas comprou para meu irmão e para mim sapatos de escola pretos.” (GORDIMER, 1991, p. 292).
Esta passagem também abre uma discussão sobre a invisibilidade das necessidades das mulheres em contextos de guerra e imigração, considerando que a avó não tem apoio e assistência efetiva na criação de seus netos como refugiados.
A invisibilidade das necessidades da avó persiste ao longo de toda a narrativa, do começo ao fim: desde o momento em que a guerra os força a deixar Moçambique, a avó assume a responsabilidade pela sobrevivência da família, “Nossa avó levou a gente – eu, o bebê, meu primeiro irmão, nosso avô – para a casa dela e estava todo mundo com medo.” (GORDIMER, 1991, p.282). Até o momento em que encontram refúgio na África do Sul, a avó assegura o bem-estar dos menores a todo custo. Apesar das circunstâncias, as mulheres na narrativa são responsáveis por minimizar o impacto do contexto traumático das crianças, proporcionando um sentimento mais próximo possível de seus lugares de origem.
Outro exemplo de protagonismo feminino na história ocorre em Moçambique, quando a avó busca consolo e professa sua religião ao lado de outra mulher. “Vovó chorou com outras mulheres e eu cantei hinos com elas. Trouxeram um pouco de comida para nós, mas depois de dois dias não tinha nada de novo.” (GORDIMER, 1991, p.282). Em outro trecho, uma mulher fornece leite materno para o recém-nascido: “Uma mulher que tinha leite no peito deu um pouco para meu irmãozinho” (GORDIMER, 1991, p.282).
Quando a avó e os netos entram no Parque Kruger, a narradora faz a seguinte observação: “Havia mulheres e outras crianças como eu que tinham que carregar as pequenas nas costas quando as mulheres ficavam cansadas” (GORDIMER, 1991, p.282). Além de a responsabilidade de proteger e manter as crianças vivas durante a jornada recair sobre as mulheres, quando as mães ou cuidadoras ficavam cansadas, a responsabilidade passava para as meninas que eram suficientemente grandes para ajudar. Enquanto os homens, em tempos de guerra, são geralmente convocados para defender o país, as mulheres são responsáveis por manter a sobrevivência dos filhos e parentes que podem enfrentar empecilhos físicos e de saúde.
Nadine Gordimer em O safári definitivo tece habilmente uma narrativa que vai além dos impactos imediatos da guerra, explorando as camadas intricadas de trauma, resiliência e o papel das mulheres diante dessas adversidades.
O simbolismo pós-colonial embutido na história reflete não apenas o contexto histórico específico de Moçambique, mas também as lutas universais de indivíduos e comunidades afetados por conflitos de migrações forçadas. Através das vozes de suas personagens femininas, a narrativa convida os leitores a contemplar as complexidades da sobrevivência, identidade e o espírito humano duradouro.
*Bruna Sternadt é graduanda em Letras na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Referência
Nadine Gordimer. O safári definitivo (The ultimate safari). In: Jump and other stories. Londres, Picador Books, 256 págs. [https://amzn.to/4cwHqZ4]
Bibliografia
BONNICI, Thomas. The Contemporary Post-Colonial Novel in English. Acta Scientarium. Human and Social Sciences. Maringá, v. 26, n. 1, p. 1-22, 2004. Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciHumanSocSci/article/view/1556/909.
JOHNSON, David. Literatures of nation and migration: Charles Mungoshi, Nadine Gordimer, and the post-colonial, 2001.
MOZAMBICAN Civil War. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Mozambican_Civil_War.
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. New York:Vintage Books, 1994.
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