Por ARLENE CLEMESHA*
Em dois extensos artigos Avritzer não achou espaço para dizer uma palavra sequer acerca do massacre em curso na Faixa de Gaza e na Cisjordânia
Leonardo Avritzer acaba de produzir uma quadrúplica, publicada no jornal Folha de S. Paulo referida a dois artigos meus no mesmo veículo. Lamentavelmente, ele não se refere a uma peça escandalosa produzida pelo jornalista Demétrio Magnoli, na mesma Folha. O texto de Leonardo Avritzer se compõe de uma série de afirmações, compatíveis com um debate historiográfico, e também de uma série de pressupostos implícitos, de teor bastante diferente. Passo a enumerá-los.
(i) Solicitei, na minha tréplica, que Leonardo Avritzer se pronunciasse para delimitar a sua crítica da acusação caluniosa de Demétrio Magnoli, que qualificava meu texto inicial como equivalente aos Protocolos dos Sábios de Sião, uma falsificação que serviu de base, digamos, ideológica, para a política antissemita assassina do regime czarista e, depois, para o Holocausto judeu pelo nazismo entre 1933 e 1945. É óbvio que, se disso se tratasse, todo debate historiográfico estaria excluído. Fiz isso porque a calúnia de Demétrio Magnoli se apoiava explicitamente no texto de Leonardo Avritzer publicado na Folha. Lamentavelmente, na sua quadrúplica, Avritzer achou por bem nada dizer a respeito, em que pese minha solicitação explícita. Estendo, portanto, meu repúdio à calúnia de Demétrio Magnoli à omissão conivente do Leonardo Avritzer.
(ii) Para polemizar com meu texto, e com outros, Leonardo Avritzer recorre ao procedimento nada sutil de desqualificar previamente seus adversários. Eu me “alinharia” (sic) com Ilan Pappé, que seria um “pesquisador secundário”, que “radicalizaria teses por meio de procedimentos duvidosos”. Em texto precedente, Leonardo Avritzer tinha despachado o historiador palestino Walid Khalidi mediante sua qualificação sumária como “obscuro”. As afirmações de Leonardo Avritzer, sem mais provas do que a própria afirmação, estão muito longe de serem unânimes. No caso de Ilan Pappé, visivelmente desprezado por Leonardo Avritzer, este omite que o historiador judeu foi perseguido académica, política e fisicamente pelo regime sionista israelense, o que o obrigou a se exilar e lecionar, atualmente, em universidade inglesa.
(iii) Quanto a mim, Leonardo Avritzer afirma que incorreria em atitude “duvidosa” (sic) ao objetar resoluções da ONU, uma vez que elas constituiriam “fundamentos do direito internacional”, que seria, aparentemente, indiscutível, propondo (eu) que seu acatamento seria “um ato de vontade”. O direito internacional paira, na argumentação de Leonardo Avritzer, como uma pomba no céu de uma “comunidade internacional” idealizada, sem contradições (hoje dramáticas).
O professor Jorge Nóvoa, da UFBA, em texto postado em redes sociais, referiu-se aos “políticos britânicos que queriam se livrar das pressões de setores sionistas imigrados dos pogroms do Leste europeu e da Rússia, que idealizavam levar essa população [judia] à Inglaterra. Da mesma forma, o início da guerra para fundar um Estado étnico religioso aparece na narrativa de Leonardo Avritzer como ‘um raio em céu sereno’ a partir do voto na ONU legitimando tal construção, como se a composição das forças na ONU fosse na época isenta às pressões dos propósitos geopolíticos e geoeconômicos do imperialismo britânico e ianque no denominado Oriente Médio. Interesses que continuam dominantes e que parecem haver recrudescido após a descoberta de petróleo naquilo que resta da costa palestina, e se acham de várias formas na explicação imediata e mediata do Estado de Israel e de seus aliados”. É o mínimo que cabe dizer a respeito.
(iv) Sem se importar com a contradição, Leonardo Avritzer cita uma resolução de dezembro de 1991 da ONU que revogou outra, de 1975, que qualificava o sionismo como uma forma de racismo, afirmando que eu a teria omitido. Não houve, obviamente, omissão nenhuma, pois citei a resolução de 1975 como exemplo de uma resolução que negava outra, precedente, de 1948. O fato da resolução de 1975 ter sido revogada só em 1991, desgraçadamente para Leonardo Avritzer, joga contra sua argumentação. Pois significa que durante pouco mais de dezesseis anos (1991-1975 = 16) o sionismo teria estado fora da lei, ou seja, do direito internacional.
Durante esses anos, e também os anteriores e posteriores, o Estado de Israel se transformou, com forte apoio internacional, principalmente dos EUA e dos Estados europeus (que pouco se importaram, no caso, com o “direito internacional”), no Estado mais densamente armado e militarizado do planeta, incluindo o único arsenal nuclear do Oriente Médio (sobre cujo caráter pretensamente “dissuasivo” diremos uma palavrinha logo adiante). De todo o galimatias, Leonardo Avritzer extrai a conclusão de que a suposta omissão não teria sido um lapso por parte de “uma especialista em história árabe”, mas, supomos, um “ato de vontade”. Em momento algum da minha argumentação eu me referi, em qualquer sentido, à qualificação de Leonardo Avritzer como “especialista em ciência política”.
(v) Mas o implícito mais estrondoso de todo o quiproquó, é que em dois extensos artigos Leonardo Avritzer não achou espaço para dizer uma palavra sequer acerca do massacre em curso na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, ou seja, nos territórios palestinos. As mortes, principalmente de população civil, superaram, em dois meses, as mortes resultantes da guerra Rússia-Ucrânia (OTAN) em dois anos. Que essa violência genocida, que o regime sionista promete explicitamente estender de modo indefinido no espaço e no tempo, extravasa amplamente o suposto motivo que lhe deu origem (o combate a um “grupo terrorista”) ficou claro nas declarações de altos responsáveis israelenses, antes e depois do 7 de outubro de 2023.
Em 2017, quando ainda era Membro do Parlamento, o atual ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, publicou um “plano de subjugação” que apelava à anexação de todos os territórios disputados, expulsando todos os árabes que não aceitassem a sua posição subordinada e eliminando qualquer um que resistisse. Em 11 de novembro de 2023, quando o Ministro da Agricultura israelense, Avi Dichter, do partido Likud, foi questionado em entrevista ao Jadashot se era possível comparar as imagens dos moradores do norte da Faixa de Gaza evacuados com as da Nakba de 1948, ele respondeu: “Estamos agora basicamente levando adiante a Nakba de Gaza. Do ponto de vista operacional, não é possível levar a cabo uma guerra como a que o exército leva a cabo dentro dos territórios de Gaza quando as massas estão entre os tanques e os soldados”.
Quando questionado pela segunda vez se esta era realmente “a Nakba de Gaza”, Dichter respondeu: “a Nakba de Gaza 2023. É assim que terminará”. O ministro foi então questionado se os residentes da Faixa de Gaza regressariam à Cidade de Gaza e respondeu: “Não sei como isto vai acabar, porque a cidade de Gaza está localizada num terço da Faixa de Gaza, é metade da população”.
(vi) Complementado o que precede, um membro do gabinete israelense foi explicitamente afirmativo quando questionado sobre a possibilidade de Israel usar um artefato nuclear contra a população da Faixa de Gaza. Finalmente, quando o prirmeiro-ministro Benjamin Netanyahu evocou a imagem bíblica da destruição de Amalek ordenada por Deus no Antigo Testamento, para justificar a invasão a Gaza como uma “missão sagrada”, fez nada menos que um claro e inconfundível apelo genocida contra toda a população da Faixa de Gaza.
No conforto da distância transatlântica, o vice-presidente da DAIA (Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas) emitiu suas próprias aberrações, ao declarar que não existiam habitantes inocentes em Gaza, “salvo, talvez (sic), as crianças com menos de quatro anos de idade” (fontes fatos elencados: todos os jornais medianamente informados do planeta). O individuo em questão renunciou (seria melhor dizer “foi renunciado”) ao seu cargo, não temos dúvida, pela pressão da comunidade judia argentina, que tem algo a se lembrar quando se evoca o massacre de crianças num país que foi governado por uma ditadura antissemita entre 1976 e 1984, incluindo o desaparecimento de crianças, muitas delas judias.
(viii) Sobre tudo isto, Avritzer, depois de Magnoli, nada tem para dizer, centrando seu fogo nos “grupos radicalizados das redes sociais”, ao serviço dos quais estariam Ilan Pappé e a que subscreve. Já o “grupo radicalizado” que está no comando de um exército poderoso e de um arsenal nuclear, seus fornecedores e financiadores, e o genocídio que estão perpetrando, direta ou indiretamente, não lhes merecem o menor comentário.
Assim como outros grandes autores da história da humanidade, Jorge Luís Borges, envolveu-se em numerosos debates durante a sua vida, sem jamais “descer” (a palavra é essa) até os argumentos ad hominem, até a desqualificação de seus adversários, concentrando-se nos seus argumentos e ideias. Nem sequer no caso dos acadêmicos suecosque o privaram do Prêmio Nobel, quando era, segundo autorizadas opiniões, literariamente superior a todos os vencedores dessa honraria. Durante a Segunda Guerra Mundial, Jorge Luís Borges publicou um ensaio denunciando o nazismo e o Holocausto judeu, que ainda não recebia esse nome, era ignorado pelas potências que combatiam o Eixo, e qualificado de “exagerado” (sic) pelos jornais sionistas ocidentais.
Jorge Luís Borges escreveu que se um nazista tivesse a possibilidade de se olhar no espelho, e reconhecer no seu reflexo um ser humano, não poderia senão desejar sua própria derrota. Isso foi escrito quando a Alemanha parecia estar vencendo o confronto mundial, e tinha numerosos partidários na Argentina, a começar no próprio governo militar. Era preciso coragem. Da nossa parte, não questionamos a qualificação de Demétrio Magnoli como jornalista, nem a de Leonardo Avritzer como docente e pesquisador, mas sim suas ideias e argumentos a respeito do tema em foco. Espero que 2024 lhes traga suma felicidade e a chance de se olhar, nem que seja de relance, no espelho de Borges.
Novamente, shalom e assalamu aleikum.
*Arlene Clemesha é professora de história árabe contemporânea da Universidade de São Paulo (DLO-USP). Autora, entre outros livros, de Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil (Boitempo). [https://amzn.to/3GnnLwF]
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