Por DANIELE BARBOSA*
O projeto Trabalhadores de Apps em cena tem o propósito de fazer com que as vozes das trabalhadoras e dos trabalhadores em plataformas digitais comparecessem à cena principal
Com o avanço da precariedade politicamente induzida2 no Brasil, estamos assistindo à uberização se transformar em um modelo para as relações de trabalho. Diante desta grave situação, uma indagação surge: como encontrar maneiras de resistir a este projeto neoliberal de destruição de direitos, que se acelerou com a Reforma trabalhista de 2017?
Dentre as formas possíveis de resistência, a construção da coluna Trabalhadores de Apps em cena buscou “reconsiderar as formas restritivas por meio das quais a “esfera pública” vem sendo acriticamente proposta por aqueles que assumem o acesso pleno e os plenos direitos de aparecimento em uma plataforma designada.”3 Considerando o alerta de Judith Butler de que a mídia seleciona o que e quem pode aparecer4 e que “o campo altamente regulado da aparência não admite todo mundo, demarcando zonas onde se espera que muitos não apareçam”5, o projeto Trabalhadores de Apps em cena teve o propósito de fazer com que as vozes das trabalhadoras e dos trabalhadores em plataformas digitais comparecessem à cena principal, colocando em questão o enquadramento comumente produzido pela grande mídia.6
Após a publicação de uma pesquisa7 na qual busquei fazer um diagnóstico acerca do projeto político em curso, no Brasil, para os motoristas em plataformas digitais, propus, em 2021, a professores de diversas áreas do conhecimento e de diferentes universidades brasileiras que formulassem uma única pergunta para a construção coletiva de uma série de entrevistas a ser realizada com motoristas e entregadores em plataformas digitais.
A ideia foi colocar a academia na construção das perguntas e na escuta das vozes daquelas e daqueles que trabalham em condições uberizadas. Com isso, os acadêmicos, que frequentemente são convocados a falar, ao formularem as perguntas, passaram ao lugar do não saber e ao da escuta. A opção foi pela publicação de uma única entrevista8 por semana, porque era necessário escutar atentamente as vivências singulares dos entrevistados. Era imprescindível que essas vozes circulassem em uma afirmação de que a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores em plataformas digitais importa.
Com a academia, mas para além dela! Foi assim que continuou, em 2022, o projeto. Nesta etapa, além dos acadêmicos, busquei o diálogo com juízes, procuradores e advogados, numa aposta de que era preciso obter avanços institucionais, uma vez que a luta contra a precariedade politicamente induzida deve implicar também os que atuam na Justiça do Trabalho, nos sindicatos e na defesa dos direitos humanos. Com a publicação de relatos da coluna pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), foi ampliado o alcance da escuta das vozes dos trabalhadores em plataformas digitais para dentro do Poder Judiciário.
Na cena construída na mídia, pela aliança dos trabalhadores em plataformas digitais, das universidades e dos juristas, escutamos as condições de trabalho e de vida dos motoristas e dos entregadores em plataformas digitais. Assuntos pertinentes à regulação do trabalho em plataformas digitais, que está sendo discutida atualmente no Brasil, foram abordados, tais como: empreendedorismo de si mesmo; condições de subjetivação; solidariedade social; cooperativismo e relação de emprego; cidade e questão racial; luta dos movimentos sociais; gênero; pandemia e trabalho; greve; renda mínima; transferência de risco; tempo à disposição; empreendedorismo e organização coletiva; responsabilidade das plataformas; futuro da vida laboral; regulamentação; acidente; música e sofrimento no trabalho; exploração no trabalho; isolamento e tempo; lutas e direitos; perspectiva de futuro; estratégias para igualdade; identidade laboral; nova forma da contradição entre capital e trabalho; trabalho por aplicativo; algoritmo; formação popular; metamorfose ou colapso do mundo do trabalho; formas de organização e de luta; direitos trabalhistas; gênero e trabalho; composição de custos; expropriação e endividamento; solidariedade e resistência; controle do trabalho; discriminação de gênero; discriminação racial e avaliação. Ao afirmarem as existências, lideranças e não lideranças de motoristas e de entregadores em plataformas digitais − porque nenhuma vida pode ser desprezada − produziram um importante saber sobre a uberização do trabalho no Brasil.
Construir o projeto Trabalhadores de apps em cena na mídia era fundamental para que se instaurasse uma grande escuta pública. Dores em circulação, alegrias também. Vidas em circulação! Escutar o que as trabalhadoras e os trabalhadores em plataformas digitais têm a dizer, abrindo um diálogo com a sociedade, é possibilitar que haja um reconhecimento político destas vidas, que são frequentemente desconsideradas. É dizer ainda que o espaço público, para ser democrático, deve ser construído também pelas vozes dos trabalhadores em plataformas digitais.
*Daniele Barbosa, advogada, é fundadora da Rede Trabalho em Cena. Autora do livro A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber (Lumen Juris).
Notas
2BARBOSA, Daniele. A precariedade politicamente induzida e o empreendedor de si mesmo no caso Uber: Sob uma perspectiva de diálogo entre Butler, Dardot e Laval. RJ: Lumen Juris, 2020.
3BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. RJ: Civilização Brasileira, 2018, p. 14.
4Ibidem, p. 62.
5Ibidem, p. 42.
6BARBOSA, op. cit., p. 100.
7BARBOSA, op. cit.
8Disponível em https://jornalggn.com.br/?s=TRABALHADORES+DE+APPS+EM+CENA
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