Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*
O valor na sociedade capitalista não é uma substância metafísica, mas uma medida real imposta por um processo social cego que transforma trabalhos concretos em trabalho abstrato, gerando uma objetividade espectral e coercitiva
Introdução
Em artigo anterior, O fim incontornável de uma teoria, [i] tentou-se responder a uma importante crítica de Marcos Barbosa de Oliveira posta em seu escrito Considerações sobre a economia da atenção.[ii] Refletindo depois, achou-se que não se havia discutido de modo suficiente esse tema que se afigura crucial para bem compreender o primeiro capítulo de O capital e, assim, o livro como um todo.
O autor da crítica havia “acusado” Karl Marx de formular uma teoria do valor metafísica. “Marx inicia a sua obra” – escreveu ele – “com uma análise abstrata da mercadoria”. Ora,“não tenho simpatia pela teoria do valor trabalho, nem concordo com uma concepção de mercadoria que julgo essencialista”. A ideia fundamental de Marx, apanhada em Aristóteles, segundo ele, consistiria em apresentar o valor como um substrato do preço”. O valor – afirma conclusivamente – é apresentado em O capital como uma substância que teria a mesma natureza da “ousia” – o ser ou essência da coisa.
Para enfrentar esse questionamento, recuperou-se a resposta dada por Ruy Fausto a essa crítica. Na apresentação da mercadoria no primeiro capítulo de O capital, conforme ela, o discurso marxiano rememora de certo modo a velha metafísica, “mas essa metafísica [que apresenta] é reprodução da metafísica do real. É o real, o [próprio] capitalismo que é em certo sentido metafísico.”
Nessa perspectiva, Fausto diz então que “o discurso quase metafísico é o verdadeiro discurso científico de tal modo que o discurso usual da ciência se afigura como inadequado”. Ele seria impróprio porque apresentaria o capitalismo sem a mistificação que lhe é inerente. As seções que se seguem, em que se lê criticamente vários autores, estão, pois, baseadas nas interpretações rigorosas feitas por esse autor em seus livros. Em particular, faz-se uso intenso do escrito Abstração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor. [iii]
A questão penosa
A mercadoria, como bem se sabe, é apresentada em O capital, de modo imediato, como unidade contraditória do valor de uso e do valor de troca. O valor de uso em geral responde às necessidades humanas nas sociedades que existiram, existem ou existirão; o valor de troca, por sua vez, decorre da sociabilidade mercantil e se revela sob análise, de modo mediato, como manifestação do valor.
Algumas qualificações se impõem aqui. A primeira delas diz que os valores de uso das mercadorias são qualitativamente diferentes entre si e que os seus valores de troca diferem quantitativamente. Ambos são, então, explicados pelo trabalho. Para fazê-lo, Marx diz que o trabalho que produz mercadoria no capitalismo vem a ser também uma unidade contraditória; enquanto trabalho concreto, ele responde pelo valor de uso e, enquanto trabalho abstrato, ele responde pelo valor e, assim, pelo valor de troca.
O trabalho concreto não tem qualquer mistério. O trabalho de ferreiro e carpinteiro com suas ferramentas, por exemplo, produz coisas úteis de ferro e de madeira, respectivamente. E isso vale em geral, mesmo quando o produto social específico vem de um complexo de trabalhos concretos em combinação com meios de produção maquinais. Ora, o mesmo não ocorre com o trabalho abstrato.
O trabalho abstrato é o enigma a ser decifrado: “a abstração do trabalho” – diz Fausto – “é para Marx uma abstração real”.[iv] Eis que provém de uma redução constituidora de uma medida, o valor – e não propriamente de uma generalização, mesmo se essa redução incide sobre uma propriedade genérica das mercadorias: “as diferentes formas concretas dos trabalhos” – diz Marx – “deixam de se diferenciar uma da outra para reduzirem-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato”.[v]
A generalização consiste na constituição do gênero a partir das espécies mediante uma operação que conserva as qualidade comuns a todas elas; a redução consiste em ir de uma qualidade comum às espécies em geral à uma medida. Seja, por exemplo, a coleção de todas as possíveis figuras planas, tais como triângulos, quadros etc. O gênero é chamado de polígono já que todos eles são fechados por lados retos, os quais recortam e encerram áreas planas. Dadas tais áreas assim definidas, a medida dos polígonos é constituída pela redução dessas áreas a uma medida de área. E isso nada tem de misterioso.
Quem constitui essa medida de área é o geômetra; quem constitui a medida do valor é o processo social “cego, mas não mudo” da economia mercantil generalizada, já que ele, com ajuda de seus suportes humanos, fala a linguagem dos preços. E ele o faz a partir da propriedade comum a todo trabalho de ser um gasto – mais ou menos qualificado – de energia humana. O valor assim apresentado vai ser explicado pela quantidade de trabalho socialmente necessária para produzir a mercadoria. Eis que “como cristalizações dessa substância social comum a todas elas [ou seja, a todas as mercadorias], são valores – valores mercantis”.[vi]
Note-se, agora, que o termo “substância do valor” aparece como subtítulo do primeiro capítulo e em duas notas de rodapé. Na primeira, ele aparece assim: “Conhecemos agora a substância do valor. É o trabalho. Conhecemos sua medida de grandeza. É o tempo de trabalho. A sua forma (…) cunha o valor ao valor de troca”.[vii] Na segunda, ele surge numa referência bibliográfica: “Ao avaliar o valor de todas as coisas ‘em trabalho’, [Benjamin] Franklin não está consciente de que abstrai a diversidade dos trabalhos trocados — e assim os reduz a trabalho humano igual. Diz, contudo, o que não sabe. Ele fala primeiro de “um trabalho”, depois de “outro trabalho” e finalmente de “trabalho” sem outra qualificação, como substância do valor de todas as coisas”.[viii]
Diante dessas evidências textuais, uma questão avulta e ela suscitou e continua a suscitar controvérsias que parecem não ter fim: o valor é uma substância? Para examiná-la vai-se procurar resumir a posição de três autores que meditaram sobre a constituição da mercadoria no capitalismo: Moishe Postone, Robert Kurz e Pierre Dardot, nessa ordem. Não se fará referência aqui a autores que trataram o trabalho que gera valor como categoria transistórica. Já Isaac Rubin, em seu livro clássico, publicado na década de 1920, fez uma crítica devastadora da concepção naturalista da teoria do valor.[ix]
É substância metafísica
Em sua obra mais importante, Tempo, trabalho e dominação social,[x] Postone buscou fazer uma reinterpretação inovadora da obra de Marx. Como é bem conhecido, o ponto chave desse esforço consiste em afirmar que o trabalho não pode ser entendido de modo transistórico como mera atividade de produzir coisas em todas as etapas da evolução histórica do homem; e que os modos de produção, em consequência, não podem ser distinguidos precisamente pelo modo como se dá a repartição dos produtos do trabalho.
Ele acentua que a crítica marxiana não é uma mera crítica da exploração do trabalho e do modo de distribuição da riqueza vinda do trabalho, mas uma crítica do próprio trabalho, ou seja, do modo de trabalhar, no capitalismo. Este não ocorre sob relações de dependência pessoal como no escravismo e no feudalismo. “A formação social baseada na forma-mercadoria, caracteriza-se pela independência pessoal numa estrutura sistêmica de dependência coisal”[xi]; eis que as relações sociais se dão como relações entre coisas. As pessoas parecem independentes, mas elas estão atadas e dominadas por um funcionamento abstrato e impessoal que se afigura, por isso mesmo, como “natural”.
Em suas obras de crítica da economia política, Marx, segundo Postone, expõe como está estruturada em sua base a sociedade moderna e como esse sistema de produção e circulação generalizada de mercadorias tende a se desenvolver no curso da história. A mercadoria como unidade contraditória do valor de uso, expressão do trabalho concreto, e do valor, expressão do trabalho abstrato, é o liame específico de uma forma de interdependência social; ela é, por isso, uma forma específica de mediação social, cuja natureza fica clara quando aparece como um momento do circuito expansivo do valor que se valoriza, ou seja, do capital.
A duplicidade da mercadoria, valor de uso e valor, responde à duplicidade do trabalho, concreto e abstrato, o que se reflete também na duplicidade do capital. Eis que ele, enquanto capital real, tem de aparecer contraditoriamente como meros meios de produção, como dinheiro que aluga força de trabalho; enquanto capital fictício, tem de aparecer como títulos, ações etc. Por isso mesmo, o fetiche da mercadoria se estende para o capitalismo como um todo. Esse sistema, em consequência, não pode, segundo Postone, ser apreendido ontologicamente:
Uma dialética transistórica deve ter base ontológica, ou no ser como tal (Engels) ou no ser social (Lukács). Mas à luz da análise historicamente específica de Marx, a ideia de que a realidade ou as relações sociais em geral, essencialmente contraditórias e dialéticas (…) não pode ser fundamentada [ontologicamente, pois] (…) só pode ser entendida metafisicamente.[xii] “Os argumentos de Marx (…) devem ser lidos como parte de um metacomentário sobre formas de pensamento características da sociedade capitalista”.[xiii]
A crítica marxiana é, portanto, uma crítica imanente do seu objeto. Só por isso o valor, como categoria social, para além de substância fisiológica, é aí considerado como substância que tem atributos metafísicos. No capítulo sobre o trabalho abstrato de sua obra mais marcante, ele escreve que o valor constituído pelo trabalho abstrato tem as características formais do espírito absoluto de Hegel. Eis que não é apenas valor, mas valor que se valoriza; enquanto tal é substância-sujeito e, portanto, causa de si mesmo.
Sua análise do duplo caráter do trabalho no capitalismo como atividade produtiva e como mediação social permite entender o trabalho como uma causa sui não-metafísica, historicamente específica. Como o trabalho [enquanto valor] medeia a si próprio, ele se fundamenta (socialmente) e, portanto, tem os atributos de ‘substância’ no sentido filosófico. (…) O capitalismo, tal como analisado por Marx, é uma forma de vida social com atributos metafísicos – os atributos do sujeito absoluto.[xiv]
A questão que parece ficar dessa elaboração teórica é saber se o seu autor não foi longe demais. Note-se que termo “causa sui” não aparece em Marx.
É substância espectral
Postone é considerado um precursor da “crítica do valor”, corrente de pensamento radical iniciada efetivamente por Robert Kurz. Se ele desenvolveu uma interpretação da crítica do capitalismo apresentada por Marx, Kurz pretendeu ir mais além daquele que ele considerava o seu grande mestre. E isso fica bem claro em seu livro A substância do capital.[xv] Aí, ele mostra bem a sua pretensão de fazer uma grande ruptura como todo o marxismo antecedente que se valeu sempre – julga – de vacilos do próprio Marx. Nas primeiras páginas de O capital, “Marx” – segundo ele – “esboça um enfoque crítico que não levará até o fim”.[xvi] Foi com base nessa avaliação que Kurz propôs a si mesmo radicalizar a crítica marxiana, derrubando todo o marxismo tradicional.
Segundo Kurz, a categoria de trabalho abstrato de Marx não aponta nem para uma abstração linguística, que apenas expressaria algo do pensamento, nem para um dispêndio temporal e objetivo de trabalho, que embasaria a produção humana de coisas úteis em todas as etapas da história. Fiando-se no trecho do primeiro capítulo de O capital que diz do trabalho abstrato que ele consiste numa “mesma objetividade espectral, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado”[xvii] , Kurz caracteriza o trabalho abstrato como “realidade negativa” que só existiria no capitalismo e que seria seu pressuposto normativo e existencial.
“A abstração ‘trabalho’ tem um vínculo imediato com a ação [de trabalhar no capitalismo]: constitui um a priori da reprodução social [que aí ocorre] (…). Marx (…) certamente desenvolve (de modo diferente da maioria dos marxistas) uma crítica radical da abstração real contida no conceito moderno de trabalho, que permanece, no entanto, ligada à ontologia do trabalho da Ilustração e do protestantismo, uma ontologia do trabalho que também foi defendida pelo movimento operário nascido no contexto histórico de sua própria teoria”.[xviii]
Na verdade, Kurz omite a redução que constitui a medida do valor (tal como se explicou acima), supondo que a sua substância consiste diretamente no gasto de nervos, músculos e cérebros. É a partir desse “resíduo” que se forma, segundo adverte, o trabalho abstrato nas condições da produção capitalista. Se não carece de conteúdo material, não se trata, no entanto, de uma substância natural, mas social. Ora, essa passagem, assim pensada, torna-se um mistério, mas ele diz que tal mistério lhe é constitutivo, pois se trata da “materialização da idealidade da forma fetichista”.
“Para o “sujeito automático” que rege o processo de valorização (…) a única coisa que importa é que ocorram processos de combustão corporal humana (um gasto de energia) que podem ser expressos em termos de um quantum de valor, um procedimento que em si é totalmente absurdo. Como esses processos de combustão realmente ocorrem, o absurdo reside apenas no fato de que eles são tratados e “representados” [na forma de preços] independentemente de sua forma concreta e, portanto, de sua finalidade material-concreta. Ora, isso acontece porque o propósito social acaba sendo justamente essa “representação” fetichista”.[xix]
Uma das consequências desse modo de pensar o valor é que a sua determinação qualitativa se dá na produção e a sua determinação quantitativa acontece na circulação – mas Kurz só explica isso no último capítulo de seu livro. Ademais, o fetiche da mercadoria se origina na formação do valor, quando, na verdade, ele se origina de sua ocultação pelo processo social e dinâmico da relação de capital; ocorre, como diz Marx, sem que os próprios produtores o saibam.
Sendo mais preciso, assim pensado, o fetichismo da mercadoria consiste no fato de que o seu conteúdo de energia humana está representado de modo – é ele que o diz – absurdo no dinheiro, por meio dos preços – e não mais na atribuição de valor ao próprio valor de uso, tal como consta em O capital. Se a substância real advém de um gasto de energia, a sua representação nada tem de material, pois é simplesmente simbólica, ainda que enigmática. Por meio dessa forma de representação, o conteúdo energético consumido no passado se torna um conteúdo espectral que mora no presente e se projeta no futuro. Kurz, portanto, pensa que o valor está constituído por essa substância fantasmagórica e que o capital vem a ser precisamente o seu processo de expansão e de crise, como substância que é também sujeito.
Não é substância
O terceiro autor que aqui se examina, Pierre Dardot, escreveu um artigo cujo título indica a sua tese: O valor não é uma substância.[xx] Nesse escrito, ele procura criticar a tese de André Orléan segundo a qual haveria uma contradição insolúvel, de princípio, em O capital já que o valor apareceria aí, contraditoriamente, como substância e como instituição social. Essa contradição é tomada com indício de um defeito: “no cerne da crítica dirigida a Marx encontra-se, portanto, a acusação de “substancialismo”.
Para responder a essa crítica, Dardot se pergunta o que é – e porque causa tanta celeuma – “essa noção de substância” que aparece “na argumentação de Marx”. Diferentemente de Kurz, Dardot, ao enfrentar a questão, atenta e discute longamente o modo como Marx chega ao valor constituído como tal por meio de operações lógicas de redução. Para tanto, retoma as analogias feitas pelo próprio Marx entre a redução, em três estágios, de figuras geométricas equiparadas por meio da medida de área e a redução, também em três estágios, dos valores de uso igualados por meio de trocas à medida do valor.
A mercadoria, forma elementar da riqueza no capitalismo, aparece de início como unidade de valor de uso e valor de troca. O valor de uso advém da relação entre sujeito e objeto, ou seja, entre consumidores e as propriedades da coisa enquanto tal. O valor de troca advém de uma relação entre mercadorias.
Marx passa, então, a analisar a troca de duas mercadorias e, depois, uma série de trocas de mercadorias diversas, para concluir, numa primeira redução, que elas contêm algo comum e de igual magnitude: “os valores de troca (…) expressam algo igual”, são “formas de manifestação” desse algo igual.[xxi] Como descobri-lo? Ao se abstrair dos valores de uso, vê-se que esse algo igual só pode ser produto do trabalho.
A essa segue-se uma segunda redução qualitativa: se o trabalho enquanto atividade concreta responde pela produção dos valores de uso em geral, o trabalho que gera valor só pode ser um trabalho abstrato. Veja-se, agora, que essa redução vai dos trabalhos concretos a trabalho reduzido, ou seja, a “uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, dispêndio de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendida”.[xxii] Se a primeira redução era meramente analítica, essa segunda consiste em uma síntese que é feita pelo processo da produção capitalista, às costas dos produtores.
Ademais, essa segunda redução põe o pressuposto da medida que Marx chama de medida do valor. Eis que ela, como toda medida, incide sobre uma qualidade comum, uma determinação homogênea que tem expressão quantitativa. Como todo trabalho é um gasto qualificado de energia, o sistema generalizado de produção e circulação de mercadoria cria, a partir dele, a medida que necessita para o seu próprio funcionamento. Assim, uma terceira redução, agora de natureza quantitativa, põe efetivamente a medida do valor: “a própria quantidade de trabalho é medida pelo seu tempo de duração”.[xxiii]
Nesse ponto, Dardot se pergunta: dado que esse “algo comum às diferentes mercadorias trocadas é designado como ‘substância’ (…), devemos ir mais longe e dar a essa substância e conteúdo o sentido metafísico de uma ‘realidade autossubsistente’? Remetendo-se, então, à noção aristotélica de substância, ele dá uma resposta enfaticamente negativa a essa questão:
“Afirmar que a redução dos valores de troca das mercadorias ao trabalho é condição de possibilidade da igualdade de sua relação de medida não significa, de forma alguma, elevar esse trabalho indiferenciado a ‘suporte’ ou ‘substrato’ dos valores de troca, assim reduzidos a meros ‘acidentes’ dessa substância. (…) É o geômetra que realiza mentalmente o ato de redução [no caso analógico das figuras], na troca mercantil é processo social de produção que efetua esse ato de redução/abstração. (…) Vemos, assim, que Marx faz um uso singular do termo ‘substância’, que não deve muito à sua acepção propriamente metafísica, tal como foi consagrada por toda uma tradição originária de Aristóteles”.[xxiv]
Em resumo, o trabalho é substância do valor, mas o valor não é uma substância, ou seja, o valor não consiste em efetivo numa “ousia” aristotélica que atravessara o desencantamento da época moderna. Em consequência, Dardot se torna capaz de criticar explicitamente a interpretação de Postone e, implicitamente, a de Kurz:
“Onde Marx procura estabelecer que o capital apresenta a aparência de uma relação imediata consigo mesmo, desde que nos limitemos à esfera da circulação mercantil, Postone discerne uma compreensão da realidade efetiva do próprio capital. Sendo assim, o capital assume então todos os títulos da causa sui metafísica, com a consequência de que fica difícil ver como a luta de classes poderia deter essa lógica, sem falar em derrubá-la”.[xxv]
Voltando a Marx
A crítica da mercadoria e do dinheiro no capitalismo feita por Marx no primeiro capítulo de O capital passou por muitos escrutínios. O que aqueles que apontam o vício do substancialismo não enxergam é que os homens no capitalismo são suportes de relações sociais reificadas e autonomizadas. O que aqueles que legitimam o emprego não crítico das categorias aristotélicas e/ou hegelianas não veem é que, para Marx, nada pode ocorrer na sociedade e na história sem a ação humana. São os homens que se apropriam da natureza e criam uma realidade, ao mesmo tempo, material e simbólica; e eles o fazem mesmo se ela se afigura para eles como estranha e fantasmagórica.
Os homens que funcionam como suporte das relações sociais coisificadas experimentam um mundo que se lhes afigura como metafísico. Os analistas do capitalismo enfrentam, por isso, uma armadilha: se negam abstratamente ou se afirmam acriticamente esse caráter caem em contradição. Marx, ao contrário, assume a contradição. Na seção sobre o fetichismo da mercadoria, apresenta essa contradição: diz que a mercadoria “é uma coisa muito complicada, cheia de subtilezas metafísicas e manhas teológicas”, mas diz também que esse caráter misterioso dessa forma social não advém de que seja coisa útil ou produto do trabalho humano.
“É evidente que o homem por meio de sua atividade modifica as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é modificada quando dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua sendo madeira, uma coisa ordinária física. Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível suprassensível”. [xxvi]
O caráter enigmático e metafísico da realidade capitalista advém, portanto, da forma assumida pelos produtos do trabalho. A mercadoria vem a ser forma elementar e generalizada de riqueza num modo de produção capitalista que está estruturado como um sistema intransparente de organização do trabalho. Nesse sistema, as relações sociais de produção não aparecem como relações diretas, comunicativas, entre aqueles que trabalham, mas como “relações reificadas (indiretas) entre as pessoas e relações sociais entre as coisas”
“A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade de valor dos produtos de trabalho, a medida do dispêndio de força de trabalho do homem, por meio da sua duração, assume a forma da grandeza de valor dos produtos de trabalho, finalmente, as relações entre os produtores, em que aquelas caraterísticas sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho”.[xxvii]
Em resumo, a análise da constituição do valor mostra que ele não é verdadeiramente uma substância metafísica, ou seja, não é causa sui; contudo, a fenomenologia da vida cotidiana no capitalismo trai já o objetivismo e o cientificismo dessa análise, mostrando o contrário. Pois, o valor aparece aí como se fosse propriedade intrínseca do valor de uso; para a consciência comum, as coisas úteis têm valor como tais. Se Dardot tem razão em sua análise do processo de constituição do valor, Postone tem também razão ao apontar que Marx usa a linguagem da metafísica para criticar a metafísica inerente às formas sociais do modo de produção capitalista.
[xxviii]E se, ao dizer isso, chega-se a uma contradição, trata-se de uma contradição do próprio capitalismo. Ora, essa conclusão está inscrita na frase lapidar de Ruy Fausto que apareceu na introdução deste artigo, mas também numa formulação que a complementa de modo inequívoco e que agora se cita para fechar a questão: “É necessário fazer do trabalho uma coisa-social substância porque o valor não é um quantum que os agentes estabelecem subjetivamente (…), mas algo que se impõe socialmente (…) para chegar a uma definição do capital como movimento-sujeito.”[xxix]
Notas
[i] Ver em A terra é redonda: https://aterraeredonda.com.br/o-fim-incontornavel-de-uma-teoria/
[ii] Ver em Outras Palavras: https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/consideracoes-sobre-a-economia-da-atencao/.
[iii] Fausto, Ruy – Abstração real e contradição: sobre o trabalho abstrato e o valor. In: Marx: Lógica e Política, tomo I. Editora Brasiliense, 1983, p. 101.
[iv] Idem, p. 90.
[v] Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Abril Cultural, 1983, p. 46.
[vi] Idem, p. 47.
[vii] Idem, nota 2ª, p. 49.
[viii] Idem, nota 17ª, p. 56,
[ix] Rubin, Isaak Illich – A teoria marxista do valor. Brasiliense, 1980.
[x] Postone, Moishe – Tempo, trabalho e dominação social – Uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. Boitempo, 2014.
[xi] Idem, p. 149.
[xii] Idem, p. 165.
[xiii] Idem, p. 167.
[xiv] Idem, p. 182-183.
[xv] Kurz, Robert – La sustancia del capital. Enclave de Libros, 2021.
[xvi] Idem, p. 61.
[xvii] Marx, op. cit., p. 47.
[xviii] Kurz, op. cit., p. 61.
[xix] Idem, p. 68.
[xx] Dardot, Pierre – La valeur n’est pas une substance. https://www.academia.edu/36236235/La_valeur_nest_pas_une_substance
[xxi] Marx, op. cit., p. 46.
[xxii] Idem, p. 47.
[xxiii] Idem, p. 47.
[xxiv] Dardot, op. cit., p. 10-11.
[xxv] Idem, p. 17.
[xxvi] Marx, op. cit., p. 70.
[xxvii] Idem, p. 71.
[xxix] Fausto, op. cit., p. 100.





















