O vínculo empregatício e a sessão da tarde

Imagem: Eric Goverde
image_pdf

Por ANDRÉ COSTA*

Há uma construção histórica desde a década de 90 que favorece as relações de trabalho precarizadas, começando pela terceirização em atividades-fins, chancelada pelo STF no Tema 725 de repercussão geral

Por esses dias começou no STF o julgamento sobre o reconhecimento de vínculo empregatício entre empresas de plataformas e trabalhadores plataformizados, mais conhecidos como entregadores e motoristas por aplicativo. Para uma primeira impressão, pode-se achar que o debate acima fica reduzido ao ambiente do Direito do Trabalho, porém, não é verdade. Também se escorre perigosamente para o campo do Direito Constitucional. Vejamos.  

O art.1º IV, da CF/88 diz que a República Federativa do Brasil tem como fundamento os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa. Mas essas não são as únicas considerações referentes à seara trabalhista. O art.7º, como se sabe, no embalo de quem o pesado passado escravocrata do país pede atenção ao tema, elenca um “pout porri” de incisos (do I ao XXXIV) que não deixam restar dúvidas da intenção dos Constituintes em proteger os trabalhadores e trabalhadoras. 

Desde a percepção da relação de emprego protegida, salário mínimo fixado em lei, garantia de salário nunca inferior ao mínimo, décimo terceiro salário, adicional noturno, jornada de trabalho, repouso semanal remunerado, férias, licença-maternidade, licença-paternidade, aposentadoria, dentre tantos outros, inclusive, igualdades de direito entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso etc. Todos em seus respectivos incisos.

Agora, me diga, caro leitor ou leitora, qual é o absurdo lido nesses direitos elencados? Há algo que seja irrazoável, mesmo que discordes? Sinceramente, creio que não. Há um debate flagrantemente enviesado em que simplesmente se tenta tratar dos direitos trabalhistas como uma conta meramente econômica esquecendo, muitas vezes por uma amnésia tendenciosa, da sua principal vocação: Direitos Humanos.

Sim, o nome é este mesmo: direitos humanos. Se há qualquer receio com a definição, esse sentimento diz mais sobre você do que sobre o corrente texto. Nesse contexto, o trabalho, a partir do momento que entra na lógica economicamente produtiva, automaticamente atrai um olhar de zelo humano pelas relações desiguais nos polos envolvidos e justapostos. E quem faz chamar a atenção é o próprio percurso da história com a escravização de pessoas, inclusive, por métricas hodiernamente terríveis como a racial.

E o que tem a ver o julgamento do vínculo citado logo na primeira linha desse texto já alongado a testar a sua paciência? Absolutamente tudo. Diferentemente do aludido, o vínculo empregatício não é uma prisão ou uma escravidão legal, consentida, é exatamente o contrário. A lógica é, já que você estará vendendo a sua força de trabalho, não mandará no seu próprio tempo, que seja lhe garantida uma segurança mínima, numa relação que a priori não se inicia por amor (pode até terminar), mas por necessidade.

O vínculo empregatício não é um cadeado, é apenas um compromisso de direitos assumidos. E qual seria o interesse de tantas pessoas a falarem mal do vínculo, a quererem deslegitimar essa importante relação jurídica? Primeiro, veja o lado dessa pessoa nessa relação e se a opinião dela, antes de mais nada, está atrelada ao interesse econômico. E não há nenhum problema nisso. Apenas pra deixar claro.

Às vezes essas pessoas inocentemente escutam tanto uma determinada ideia ou opinião que passam a acreditar na sua verdade absoluta. Isso acontece muito, praticamente o tempo todo, com os direitos trabalhistas. Alguém em algum lugar está falando mal sem sequer saber o que se passa realmente pelos interesses de quem demoniza simplesmente pactuar dignidade numa relação desigual.

O fato é que uma norma trabalhista está imune a defeitos? Óbvio que não. Como qualquer outra norma jurídica, também surgiu de interesses humanos e de todas as imperfeições da nossa natureza. Então pode ser questionada? Sim, pode. Mas pare pra pensar um pouco, você, caro leitor ou leitora, acha mesmo que na maioria das vezes o debate das leis trabalhistas se dá pelos motivos certos? Sinceramente, acho que não.

Por isso, tenhamos muita atenção com esse julgamento do vínculo empregatício entre empresas de plataformas e trabalhadores plataformizados. Na verdade, há uma construção histórica desde a década 90 aqui no Brasil de favorecer as relações de trabalho precarizadas, a começar pela própria terceirização, inclusive, em atividades-fins, chancelada pelo STF no Tema 725 de repercussão geral. Todas essas relativizações dos legisladores e julgadores, porém, esqueceram um pequeno detalhe: a Constituição Federal de 1988 e a sua vocação.

Aliás, aqui talvez se entre no ponto mais sensível desse texto, o papel da Justiça do Trabalho e do STF. Sabe-se que a Constituição, por mais que tenha força jurídica, na verdade, é uma carta de intenção. Principalmente em estados instáveis em regimes políticos como o brasileiro. Porém, todavia, contudo, entretanto, tal condição não permite aos magistrados e magistradas simplesmente ignorarem a vocação social democrata, de Estado de Bem-Estar Social, do nosso texto constitucional e aplicarem, sem qualquer freio, normas infraconstitucionais em detrimento do aludido pelas normas constitucionais, aliás, a única hierarquia mais revelada entre as leis e logo ela ignorada.

Não se engane, nesse julgamento, serão colocadas tecnicidades, especificidades, não para esmiuçar o caso, mas para confundi-lo. Pelo fetiche da tecnologia vão desdizer o que o caminho da história diz todos os dias. Tentarão lhe fazer achar que é algo diferente ou inédito que nunca se viu. Mas, nesse momento, não se esqueça, esse julgamento é um déjà vu. É um filme de Sessão da Tarde.

*André Costa é advogado e professor, mestre em Direito e Ciência Jurídica pela Universidade de Lisboa. Doutor em Direito pela UFPE.

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.


C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES