Os direitos das mulheres

Imagem_ColeraAlegria
image_pdf

Por RACHEL MORENO*

O Governo bolsonaro quer reduzir as mulheres à condição de meras reprodutoras, ignorantes e complacentes, estimulando um retorno aos valores medievais

“O governo de Jair Bolsonaro aprofunda uma postura ideológica em negociações diplomáticas sobre uma resolução da ONU que condena a discriminação de gênero e tenta fortalecer o direito das mulheres”, diz o jornalista Jamil Chade, em sua coluna no UOL.

Está em questão um texto, apresentado pelo México, que visa “eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas”, reforçando a luta pela igualdade de gênero como um dos objetivos das metas de 2030.

Mas a estranheza não é só do Jamil Chade. Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, também diz:

“O Brasil mais uma vez dá um vexame internacional e se firma no grupo de países que adotam as posturas mais retrógradas nas discussões sobre gênero nas Nações Unidas”.

“O Itamaraty vai contra todo o consenso construído ao longo de décadas no assunto e passa a ser visto com descrédito. A postura do órgão não condiz com as políticas adotadas no Brasil há anos e com os compromissos internacionais assumidos pelo país em matéria de gênero e direitos sexuais e reprodutivos”, disse ela.

O texto em questão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, ganhou importância principalmente no momento em que a pandemia revela a disparidade com que a crise vem afetando de forma desproporcional as mulheres no mundo.

Mas, diante dessa situação, o ministro Ernesto Araujo, representando o Brasil, fechou posição com alguns dos governos mais repressivos contra mulheres, como os sauditas e os de países islâmicos.

A Rússia também adotou posturas parecidas com as do Itamaraty, sob esta atual e vergonhosa direção.

Já os europeus, Israel e latino-americanos apoiam o texto proposto na ONU

Alegando que a recomendação brasileira visa não permitir o uso de “expressões que geram controvérsias”, o Itamaraty afirma que “Planejamento familiar é um assunto de liberdade do casal e o estado é responsável por prestar recursos a esse direito, sem coerção”, completou.

Para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) os 193 países-membros das Nações Unidas adotaram oficialmente a nova agenda de desenvolvimento sustentável, intitulada “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, na Cúpula de Desenvolvimento Sustentável, realizada na sede da ONU em Nova York, em setembro de 2015. Essa agenda contém 17 Objetivos e 169 metas.

Reproduzo a seguir um resumo publicado no site da organização multilateral sobre as conquistas brasileiras.

Dentre as conquistas em relação aos ODMs no Brasil estão:

Metas 01 Erradicação da pobreza e Meta 02 Fome Zero – em que as metas internacionais e nacionais foram alcançadas em 2012, depois dos dois governos Lula e início da gestão da Presidenta Dilma Roussef. A pobreza extrema caiu de 25%, em 1990, para 3%, em 2013.

Meta 04 Educação de qualidade – busca assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos. Na educação básica a desigualdade do acesso à escola pelas crianças de 7 a 14 anos foi superada graças às sucessivas políticas de universalização do ensino. Quanto aos jovens de 15 a 24 anos com pelo menos seis anos completos de estudo, a percentagem passou de 59,9% em 1990, para 84% em 2012.

Meta 03 Saúde e bem estar – impacta positivamente na saúde da mulher com a meta da mortalidade infantil alcançada, com redução para 17,7 óbitos por mil nascidos vivos em 2011, com tendência progressiva de melhora, além da Saúde materna com a taxa de mortalidade materna brasileira caindo em 55%, de 1990 a 2011. Intensificou-se o acompanhamento da gestante.

Meta 05 Igualdade de Gênero – busca alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Atualmente, as mulheres brasileiras têm maior acesso à educação que os homens e também houve progresso quanto à participação feminina no mercado de trabalho e à representação política das mulheres.

Neste ano (2020), um dos objetivos seria ainda o de tratar da sobreposição – ou intersecção – de discriminações sofridas por mulheres. Mas o atual ministro chefe do Itamaraty, Ernesto Araújo,  pede que o parágrafo inteiro que tenta definir o conceito de intersecção seja excluído. A proposta do Brasil é também apoiada por países islâmicos como Paquistão, Iraque ou Indonésia.

Num outro trecho, o Brasil ainda pede a eliminação de referências aos direitos reprodutivos e saúde sexual para mulheres, desnudando o caráter machista e retrógrado, indo contra os avanços sociais e civilizatórios conquistados com a Constituição Brasileira de 1988.

Junto com os sauditas, o Itamaraty desse governo atual, que merece o estigma de estar nos devolvendo à idade média, quando as mulheres não tinham direitos, sugere ainda suprimir um parágrafo no projeto sobre acesso a “planejamento familiar e métodos modernos de contracepção”.

Aqui, quadro se fecha

No Brasil, a ministra Damares, minimizando irresponsavelmente a violência contra as mulheres, e indo contra todos os indicadores sobre a violência de gênero, já diagnosticou autocraticamente que ela seria consequência da demanda das feministas por igualdade – “as feministas pedem igualdade, e aí os meninos pensam que as meninas aguentam a violência do mesmo jeito que eles, e batem nelas!”. Uma atitude tendenciosa, ignorante e autoritária por parte da ocupante do Ministério de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

E que, hoje, reúne profissionais selecionados para desenvolver política de abstinência sexual, como “política de governo”.

Mais recentemente, o novo secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos (onde se monitoram os estudos clínicos sobre medicamentos e se avalia a sua eficácia), Hélio Angotti Neto, além de se declarar Olavista, e de defender o uso da cloroquina em todas as coletivas de imprensa, também persegue declaradamente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Em uma recente entrevista, Angotti teria declarado

“Há uma grosseira manipulação de expressões como saúde e direito, de forma que a tentativa de legalizar o assassinato da própria prole, de nossos filhos, torna-se um direito reprodutivo e saúde reprodutiva. É manipulação semântica de baixíssima qualidade, mas que convence pessoas despreparadas em termos filosóficos. Que se considere saudável, digno ou justo matar fetos indefesos é sinal claro de que há sim uma postura controversa em relação à vida humana e a sua dignidade.”

E, agora, o Brasil se junta a países islâmicos contra resolução da ONU pelos direitos das mulheres, e pede a eliminação de referências aos direitos reprodutivos e saúde sexual para as mulheres, além da supressão do parágrafo que fala de “acesso a planejamento familiar e métodos modernos de contracepção”, bem como à educação sexual.

Alinhado como está, este governo quer reduzir as mulheres à condição de meras reprodutoras, ignorantes e complacentes, estimulando um retorno aos valores medievais.

Esta atitude se soma ao empenho em outras áreas (saúde, educação, economia, tratamento às e aos jornalistas, alinhamento político e subalterno) em levar o País para tempos sombrios, carregados de ignorância, mediocridade, e de violência desferida contra os que discordam dessa intenção.

O quadro não se fecha só nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Teremos, ainda, a acusação referente ao tratamento do Bolsonaro aos jornalistas em geral, e às mulheres jornalistas, mais particularmente.

Bianca Santana tomará a palavra para apresentar o seu caso (em maio, ela foi acusada pelo presidente de escrever ‘fake news’, depois que publicou um artigo sobre a relação entre familiares e amigos de Bolsonaro com os acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco).

Isso, para além da denúncia de uma série de entidades brasileiras (entre os quais o Movimento de Pequenos Agricultores, a Coordenação das Nações Indígenas, os remanescentes de Quilombos do Para e outros), nessa mesma reunião em Genebra, contra o desmonte das políticas ambientais do governo Bolsonaro, alertando ainda quanto à postura do ministro de Meio Ambiente – Ricardo Salles – de “passar a boiada”, aproveitando a distração da população e da mídia, com a pandemia.

Tempos ignóbeis que nos envolverão até as próximas gerações, caso não façamos algo para impedi-los, e já!

*Rachel Moreno é psicóloga e militante feminista. Autora, entre outros livros, de A imagem da mulher na mídia (Expressão popular).

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES