Por GUILHERME PREGER*
A especulação como novo regime de acumulação toma a dianteira mesmo a partir do modo pós-fordista de regulação econômica, em meados dos anos de 1970, com o surgimento do programa do neoliberalismo
A história do capitalismo é a de seus cercamentos. Tudo começa, segundo Karl Marx, com a acumulação primitiva dos cercamentos da terra. Aquilo que era um bem comum (commons) e garantia a soberania alimentar de milhares de camponeses foi cercado (enclosure) e deu-se início à privação dos bens naturais. É nesta época, em meados do século XVI, que o problema da pobreza começa a ficar evidente e é retratado no clássico de Thomas More, Utopia (1516). O pobre, ou o Pedinte, aparece então como aquele que foi privado de sua subsistência.
A terra se tornou então a primeira “mercadoria fictícia” no dizer de Karl Polanyi, em seu clássico A grande transformação (1948). Ela é fictícia porque na realidade não tem valor de troca. Trocar terra por dinheiro só se torna possível depois que a ficção de sua propriedade se torna legal, como direito jurídico.
Assim, o capitalismo se inicia pela expropriação das terras. Uma multidão de camponeses se torna “livre”, ou seja, pobre, e migra para as cidades para se tornar mão de obra da indústria (estamos já no século XVIII). E, de fato, agora com o trabalhador assalariado começa a segunda onda de cercamentos, criando nova “mercadoria fictícia”, que vem a ser justamente o trabalho. Assim como a terra, ninguém vende realmente, “força de trabalho”. O trabalhador que vende a sua força existencial por um salário vai junto com ela, não sendo efetivamente uma troca justa, nem sequer uma troca em qualquer acepção da palavra.
Observe-se que nesta época importante era criar um espaço segregado para a produção social em fábricas e escritórios. Estes são os novos cercamentos capitalistas, onde se dá a “exploração capitalista”, que significa, segundo Karl Marx, que uma parte do trabalho do trabalhador, ou do seu tempo de dedicação ao patrão, não é remunerada.
A terceira mercadoria fictícia é o dinheiro. É verdade que se troca dinheiro, mas é sempre dinheiro por dinheiro. Mais do que fictícia, é uma falsa troca. Pode-se trocar uma nota de 100 por duas de cinquenta, mas isso é, no dizer coloquial, “trocar seis por meia dúzia”. Com isso se cria o modo de acumulação denominado de “especulação financeira”. Os bancos são os cercamentos do dinheiro, são instituições financeiras que magicamente fazem o dinheiro se multiplicar.
A observação de que o capitalismo se torna financeiro já faz parte da análise de Vladimir Lênin em seu clássico Imperialismo, estágio superior do capitalismo (1916). Lênin observa a associação entre bancos e empresas e que estas passam a ser dirigidas pelas finalidades daqueles. Isto acirra a competição inter-imperialista, levando à guerra.
No entanto, podemos dizer que, na vigência do fordismo, o capitalismo industrial ainda dá as cartas, e a especulação financeira é um “amplificador” do capital produtivo. O grande problema, que gera a crise de 1929, ainda é o problema da superprodução, o excesso de mercadorias que não consegue ser “realizado” pelas vendas nos mercados.
Assim, a partir do modelo das vitrines parisienses do século XIX, se desenvolveu no século XX uma indústria da publicidade que criou outra figura para o “outro do capital”, além daquela figura do trabalhador livre: o consumidor. É preciso incentivar o consumo para aliviar as crises de superprodução. Se o pedinte era antes um pobre, o consumidor é primeiro um trabalhador. O consumidor, que vive nas esferas existenciais extraeconômicas, é o outro do cercamento fabril da produção.
A especulação como novo regime de acumulação toma a dianteira mesmo a partir do modo pós-fordista de regulação econômica, em meados dos anos de 1970, com o surgimento do programa do neoliberalismo. Trata-se de um estágio “superior” de financeirização: não apenas os bancos tomam a dianteira do sistema, mas fundem-se com as próprias empresas. As empresas “produtivas” se tornam agora rentistas, entidades financeiras.
É a partir do neoliberalismo que começa a ser criada nova figura do outro do capitalismo: o homo economicus, que em nossos dias é chamado de “empreendedor”. Essa figura, cujo principal criador foi o teórico Joseph Schumpeter, mas também figura ficcionalmente na obra da escritora russa-americana Ayn Rand, é o empresário individualizado que deve abrir seu próprio negócio. Por que a figura do empreendedor se torna tão importante para o capitalismo? Porque com o neoliberalismo há uma passagem do capital a lucro para o capital a juro.
Esta passagem, crucial para o que é chamado hoje de capital rentista, já estava descrita na obra magna de Marx. Empreendedor será aquele que justamente irá se endividar para “consumir” capital a juros, ou capital acionário. O dinheiro se torna assim mercadoria por excelência, sendo consumida pelos novos “empreendedores de si”, ou seja, os novos endividados, que são trabalhadores disfarçados de empreendedores. Assim, não espanta que a dívida privada tenha explodido no final do século XX. Sinal de que o sistema trocou o lucro (capital produtivo) pela dívida (capital improdutivo).
O cercamento do setor financeiro que se “autonomiza” se torna viável pelo surgimento de uma nova mercadoria fictícia, não prevista por Karl Polanyi: a informação. Assim como as demais mercadorias fictícias, a informação não tem valor de troca. Quem tem informação, ao vendê-la, continua com a informação, não precisa “repor o estoque”. Com os antigos bens comuns, a informação também é abundante, mas pode se tornar rara por novo cercamento. O primeiro modo de cercamento foi através da chamada “sociedade do espetáculo”.
Podemos observar que o espetáculo é um cercamento da informação, transformando-a em imagem condensada. No tratamento clássico de Guy Debord (1968), o espetáculo é uma imagem cuja produção foi alienada de seu produtor (o homem comum) e apresentada a ele como algo distante, na qual ele não se reconhece como produtor. Todo o tema da indústria cultural, levantado inicialmente pela Escola de Frankfurt, foi trabalhado para elucidar essa passagem de cercamento sobre a informação que produziu o fetichismo cultural, inicialmente com fins estéticos. Nessa época foram consolidadas as leis de propriedade intelectual.
Mas com o surgimento da internet e a digitalização das comunicações, um fenômeno típico do século XXI, surge outro cercamento da informação, a saber, as plataformas, que são verdadeiros “jardins murados” da informação. Por causa desses novos muros e fortalezas comunicativas, obtidas graças a algoritmos proprietários e opacos como novas “fórmulas da coca-cola”, alguns teóricos vêm falando de “tecnofeudalismo” para caracterizar a nova fase do capitalismo, ou mesmo de pós-capitalismo. Eles se referem ao caráter sobretudo rentista da exploração econômica das tecnologias da informação e comunicação. Mas no próprio movimento histórico do capital já estava inscrita desde sempre a lógica social dos cercamentos. Não há novidade real nesse movimento.
As plataformas absorveram o espetáculo e criaram mais uma figura do outro exterior aos cercamentos: o influenciador. Em particular, uma figura que combina as figuras do empreendedor e do influenciador numa só: o coach. Por que a figura do influenciador se tornou crítica para esta nova fase do capitalismo e de seu cercamento? Basicamente, porque esse novo regime de acumulação, a especulação, é uma atividade de “segunda ordem”, formada pela observação dos fluxos de informação na sociedade mais abrangente.
A exploração econômica pelo lucro é de “primeira ordem”, pois baseia-se em operações diretas (imediatas) de feedback: se houve lucro, há acumulação; se houve prejuízo, perdeu-se dinheiro (capital). Mas a especulação, por sua vez, joga com expectativas futuras dos investidores, isto é, joga com variáveis temporais. A especulação precisa lidar com as incertezas do mercado. Ora é sabido que precisamente a informação serve para reduzir a incerteza (ou é aquilo que mede a incerteza).
Daí certo paradoxo: o cercamento significa traçar de forma clara um limite entre um espaço interior ao capital, onde se dá a valorização, e mesmo a autovalorização, e um espaço exterior, onde se dá o consumo, o desgaste das mercadorias, ou seja, a desvalorização. Quanto mais rígido é o cercamento, mais “fechado” (vedado) informacionalmente é o espaço interior do capital. Mas a especulação precisa saber “o que acontece lá fora” do cercamento, pois lida com as incertezas dos negócios.
Afinal, há sempre um mundo além da economia, que Marx denominou de esfera do valor de uso. Se o capital tende a vê-lo como espaço de desvalor, de “trabalho improdutivo”, é um problema seu. O uso dos objetos e das informações pelos habitantes do “mundo da vida” é algo que tem valores próprios aos seus usuários.
Os influenciadores procuram então “dirigir” esses usos, e prover o sistema de informações sobre o “mundo lá fora”, isto é, sobre o ambiente do sistema capitalista. Assim como a publicidade procurava dirigir e acelerar o consumo das mercadorias produzidas e assim acelerar a “rotação do capital”, hoje são os influenciadores que tentam induzir as ondas especulativas de valorização ou desvalorização dos mercados acionários através de todo tipo de expediente ficcional (“narrativas”) ou falacioso (as famosas fake news).
Expropriação, exploração, especulação e espetacularização dão nome a quatro regimes de acumulação do capital, todos movidos por cercamentos que criam “mercadorias fictícias”. É através dessas mercadorias-chave que o capitalismo cria sua ilusão de um mundo fechado e autônomo, com leis próprias, relegando a seu exterior, o ambiente social, as demais verdades e mentiras da vida, que não têm, na sua perspectiva, “valor”, são, portanto, improdutivas. Também lhe compete criar os personagens de sua ficção: o pedinte, o consumidor, o empreendedor e o influenciador.
Mas aqui é preciso tomar o devido cuidado: esses personagens são projeções, heterorreferencias de sua própria imagem autorreferente. São alter egos, enquanto o ego capitalista é, nas palavras de Karl Marx, um sujeito automático. Portanto, menos autônomo do que automático.
Enquanto projeções fantasmáticas, esses personagens estão inseridos dentro do roteiro e da dinâmica ficcional do sistema. São esses fantasmas que garantem sua rotação livre e surda às objeções, o giro incessante e incansável do capital. É sabido que ele não pode ficar parado, pois à sua espreita está sempre a desvalorização. O capital roda sempre mais rápido, expulsando de si esta entropia (desgaste), para a sociedade “lá fora” onde circulam os viventes desprovidos de propriedades, incapazes de construir seus próprios abrigos de defesa.
Por causa disso, não há espanto que esta rotação infrene e automática de um sistema globalizado e alimentado por combustíveis fósseis acabe por despejar uma quantidade imensa de entropia em seu ambiente, que vem a ser precisamente o planeta que serve de cenário a tais insanas e miseráveis ficções: a Terra e sua biosfera. O nome desta entropia expulsa pelo sistema em grandes quantidades é “aquecimento global”. Como sabemos pela termodinâmica, a entropia é uma tendência irreversível. As mercadorias podem ser fictícias, mas as mudanças climáticas são reais.
*Guilherme Preger é doutor em Teoria da Literatura pela UERJ. Autor, entre outros livros, de Teoria geral dos aparelhos (Caravana).
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