Por JAMES W. CARDEN*
O legado pós-soviético é pertinente para entender a atual crise nas relações Leste-Oeste e o conflito na Ucrânia
Vivemos numa época em que impera a narrativa. O que é verdadeiro, o que é falso, o que é fato, o que é ficção… são distinções que perderam o sentido, engolfadas pela supremacia da narrativa.
É impressionante a quantidade de pessoas que continuam convencidas de que foi a Rússia que pavimentou o caminho de Donald Trump, das colunas sociais e de fofocas para a presidência dos Estados Unidos. Alegações de conluio entre a campanha de Trump e o governo russo (o Russiagate) constituem uma teoria da conspiração tão selvagem e imponderável quanto seu reverso, o Pizzagate. Demonstrada como falsa pelos relatórios Mueller e Durham, a ideia de que Hillary Clinton deve sua derrota a uma potência estrangeira ― e não a si mesma e a uma campanha inepta ― continua sendo artigo de fé entre milhões de cidadãos norte-americanos, graças ao poder da narrativa.
Hoje, a política externa norte-americana não enfrenta desafio maior que a guerra na Ucrânia. E aqui a narrativa é de uma simplicidade atroz: “não teria havido guerra se não fosse por Vladimir Putin, o agressor”. Nessa perspectiva, a Ucrânia precisaria então ser vista como a primeira linha de defesa do Ocidente, ou, como disse o partidário mais toxicamente desonesto do Russiagate, o deputado democrata Adam Schiff, os Estados Unidos devem ajudar a Ucrânia, para que “possamos lutar contra a Rússia lá, e não precisemos lutar contra a Rússia aqui”.
Essa narrativa deixa pouco ou nenhum espaço para a história real do conflito entre a Rússia e o Ocidente. No entanto, uma prescrição correta sempre requer um diagnóstico correto, e, no que diz respeito à guerra na Ucrânia, a narrativa – quaisquer que sejam seus usos pela elite norte-americana para incitar as paixões da mídia e da massa contra o mais recente inimigo número um dos Estados Unidos – não faz mais que obscurecer a natureza da crise atual.
Pior: qualquer esforço por tentar aportar um pouco de clareza a esse clima de neblina e mentiras tem sido, costumeiramente, no próprio Ocidente, e na melhor das hipóteses, uma tarefa ingrata.
No entanto, a história importa. E a história da Rússia, repleta de invasões à sua vasta e indefensável estepe eurasiana, ainda não foi, lá, relegada à província dos livros, filmes e museus, como nos Estados Unidos do século XXI.
A Rússia alimenta a tradição de uma zhivaya istoriya, ou história viva. E, se as memórias do sofrimento sofrido pelos russos durante a Segunda Guerra Mundial permanecem frescas, as memórias da humilhante década pós-soviética dos anos 1990 – na qual a Rússia padeceu seu maior colapso econômico e demográfico já registrado em tempos de paz – permanecem ainda mais. Assim, o legado de quarenta anos de Guerra Fria ainda está vivo (e bem vivo) nas mentes da atual geração de líderes russos; talvez especialmente na mente de seu líder máximo, que testemunhou, impotente, de um posto avançado em Dresden, o colapso do império soviético.
O legado pós-soviético é, no mínimo, ainda mais pertinente para a atual crise nas relações Leste-Oeste. David P. Calleo, um antigo professor de ciência política na Escola John Hopkins de Estudos Internacionais Avançados, certa vez observou de forma mordaz que “os estadistas americanos parecem ter sido muito mais esclarecidos no início da Guerra Fria do que depois de seu fim”. A prova disso está em como os formuladores de políticas norte-americanos – incluindo o presidente em exercício – entorpeceram o relacionamento Estados Unidos-Rússia na era pós-soviética.
A expectativa amplamente aceita e promovida após a Guerra Fria, de que a Rússia concordaria humildemente em desempenhar um papel subserviente ao império americano e permitiria que sua ampla esfera de influência na Europa Oriental e na Ásia Central fosse reduzida a postos intermediários e a pistas de pouso para a OTAN, acabaria frustrada. A ideia de que a Rússia também aceitaria a tutela norte-americana no que diz respeito aos seus arranjos políticos domésticos mostrou-se ainda mais sem sentido.
A introdução fracassada – na verdade desastrosa –, pelo Ocidente, do capitalismo financeiro ao estilo americano na Rússia de Boris Yeltsin; assim como a série de “revoluções coloridas” na periferia da Rússia, apoiadas por ONGs financiadas pelo governo norte-americano; tanto quanto o belicismo das guerras eternas norte-americanas, após o 11 de setembro; e por último, mas certamente não menos importante, a política de expansão da OTAN, liderada pelos Estados Unidos… tudo isso diz muito para a explicação do atual e temerário estado de coisas.
Durante anos, o establishment da segurança nacional nos Estados Unidos foi alertado, por vozes da direita, da esquerda e do centro, de que o país precisava mudar o curso que sua política em relação à Rússia vinha tomando. Foram recorrentes os avisos que a Rússia não poderia ser derrotada nas regiões dos arredores das suas fronteiras. Foram recorrentes os avisos que Kiev – ao lançar uma campanha “antiterrorista” contra seus próprios cidadãos de língua russa – iria antagonizar frontalmente, e de forma imprudente, com a Rússia.
Foram recorrentes os avisos de que alçar à condição de semidivindade um instrumento tão corrupto como os oligarcas ucranianos era um erro óbvio. Foram muitas as advertências sobre o quão equivocado era confundir os interesses das facções etno-nacionalistas de extrema direita de Kiev e Lviv (e seus aliados em Varsóvia, Riga, Talin e Vilnius) com os interesses nacionais norte-americanos. Foram muitos os avisos para levar a sério os numerosos protestos do presidente Vladimir Putin contra a expansão da OTAN.
No entanto, a elite governante bipartidária dos Estados Unidos decidiu ignorar todos esses avisos. Agora, os resultados falam por si.
*James W. Carden é colunista de política internacional. Foi consultor do Departamento de Estado norte-americano para relações bilaterais Estados Unidos-Rússia durante a presidência de Barak Obama.
Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.
Publicado originalmente em The American Conservative.
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