A guerra como continuação da política

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por VLADIMIR SAFATLE*

O terrível assassinato de Marcelo Arruda em sua própria festa de aniversário provavelmente não será o último

Infelizmente, há de se reconhecer que algo como o assassinato de Marcelo Arruda por um homem armado que entrou em sua festa de aniversário gritando “aqui é Bolsonaro” já era esperado. Esse caráter de algo já anunciado aumenta ainda mais o assombro e a amargura pelo ocorrido. Pois tal ausência de surpresa mostra de forma clara onde estamos, ou ainda o tipo de projeto de engenharia social ao qual estamos submetidos.

Já na eleição passada, o Brasil havia se deparado com pessoas mortas por apoiadores de Jair Bolsonaro, como o caso de Mestre Môa. Na ocasião, há de se lembrar qual foi a reação do senhor que ocupa atualmente a presidência da República. Nenhuma declaração pública de consternação e luto, apenas a afirmação de: “Mas quem levou uma facada fui eu”. Agora, o padrão é o mesmo: ausência completa de consideração a respeito da morte, apenas a reclamação de que o caso estaria sendo tratado de forma distinta da maneira com que fora tratado seu próprio incidente que redundou na famosa facada.

Esse padrão do governo não é estranho. Infelizmente, sua racionalidade é bastante evidente. Trata-se de naturalizar a lógica da guerra como forma de relação entre grupos sociais. Em uma guerra, não haveria razão alguma para demonstrar consternação pela morte de inimigos. Na verdade, em uma guerra é fundamental que tais mortes ocorram, pois elas podem produzir uma espiral de violência cuja verdadeira função é empurrar o país inteiro para uma tensão armada, consolidando as posições antagônicas. Daí a necessidade de minimizar tais assassinatos como “incidentes” não muito distintos de uma “briga de trânsito”, como insinuou o líder do governo na Câmara.

Essa generalização da guerra seria a situação ideal para o governo do sr. Jair Bolsonaro. Pois isso lhe permitiria afirmar que o país se encontra em uma situação de caos, abrindo espaço assim para um jogo duplo, a saber, tanto procurar criar as condições para uma saída golpista (ou algo parecido) quanto crescer no medo, recuperando setores conservadores que saíram de sua órbita, mas que podem sempre voltar se a lógica da guerra imperar. Ou seja, tudo isso nos lembra que o terrível assassinato de Marcelo Arruda em sua própria festa de aniversário provavelmente não será o último.

Alguns podem se perguntar como chegamos até aqui. E é sempre bom lembrar nesse contexto que o Brasil conheceu 13 anos de governo de esquerda sem nenhum caso de violência eleitoral que tenha terminado em assassinato perpetrado por apoiadores ou apoiadoras do antigo governo. Não há possibilidade alguma de falar em alguma forma de acirramento mútuo. Se mesmo diante da violência simbólica normal dos embates políticos nunca houve casos reversos é porque não há linha direta entre violência simbólica e violência real. Muitas vezes, a violência simbólica é, na verdade, um anteparo contra a violência real, pois ela desloca a violência para uma outra cena, com dinâmicas próprias.

Há de se insistir nesse ponto não para apagar a responsabilidade desse governo em atos dessa natureza. Ao contrário, trata-se de mostrar onde exatamente está tal responsabilidade. Pois se estamos em uma situação como essa agora, devemos procurar uma de suas causas principais na generalização da lógica de milícias que marca o fascismo popular de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo provoca uma reordenação social cujo eixo central é a “quebra de monopólio” no uso estatal da violência. É essa reordenação a verdadeira responsável por assassinatos brutais como esse.

Já se notou que a base fundamental desse governo não é apenas as forças armadas, mas principalmente as forças policiais. A lógica de extermínio, desaparecimento e assassinato que compõe a espinha dorsal da polícia brasileira ganhou um elemento suplementar quando tais ações passaram a serem feitas sem necessidade de sombras, sem precisar se deslocar dos holofotes, como aconteceu nesse governo.

Algo de fundamental ocorre quando a mesma coisa é feita, mas sem a necessidade de mascaramento, com a certeza absoluta da impunidade e com aplausos do Palácio do Planalto. Nesse caso, o fundo miliciano da polícia brasileira aparece de forma completamente desrecalcada, podendo produzir uma dinâmica irresistível de contágio social. Ou seja, outros grupos sociais, ou mesmo indivíduos isolados, se vem cada vez mais autorizados a agirem como se estivessem em uma situação de guerra.

De fato, como em movimentos fascistas históricos, a base armada desse projeto político não vem exatamente das forças militares tradicionais, mas da organização da sociedade a partir da lógica de milícias. A milícia se torna então o modelo fundamental de organização social. Isso significa que o exercício da violência aparece como atributo fundamental do exercício da cidadania, por mais estranho que isso possa inicialmente aparecer. Ser cidadão, ser cidadã é, nessa lógica, poder usar a violência para se “autodefender”, sendo que sempre é bom lembrar (e isso a experiência colonial nos mostra claramente) que nem todos tem o pretenso “direito de autodefesa”. Alguns tem apenas a condição de corpos a serem alvejados.

Assim, não erra quem afirma que o objetivo maior desse governo é fazer de todo brasileiro e brasileira um miliciano potencial. Ou seja, fazer de todos os que se identificam com esse “Brasil”, com suas cores nacionais, sua história de apagamentos e genocídios, com seu agronegócio depredador, um miliciano reconciliado consigo mesmo.

Alguém indiferente a morte de “inimigos”, solidário a corrupção vinda dos seus, identificado a figuras brutalizadas de poder e força, ao mesmo tempo que se vê como o defensor armado do ocidente e seus valores. Esse não é apenas um projeto de poder, mas efetivamente um projeto de sociedade. Contra isso, precisaremos de algo do tamanho da força de outra imagem de sociedade.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Salem Nasser Henri Acselrad José Geraldo Couto João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Fabbrini Liszt Vieira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Lorenzo Vitral Samuel Kilsztajn Boaventura de Sousa Santos Michael Roberts Marjorie C. Marona Gabriel Cohn Mariarosaria Fabris José Costa Júnior Ronald León Núñez Rafael R. Ioris Elias Jabbour Daniel Afonso da Silva Dênis de Moraes Gerson Almeida Celso Favaretto Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Trivinho Mário Maestri Chico Whitaker Paulo Nogueira Batista Jr Sandra Bitencourt Igor Felippe Santos Walnice Nogueira Galvão Maria Rita Kehl Luís Fernando Vitagliano Priscila Figueiredo Valerio Arcary Armando Boito Luiz Carlos Bresser-Pereira Milton Pinheiro Slavoj Žižek Alexandre de Freitas Barbosa André Singer Jean Pierre Chauvin Jean Marc Von Der Weid Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Tales Ab'Sáber Juarez Guimarães Bento Prado Jr. Caio Bugiato Flávio Aguiar Antonio Martins Vinício Carrilho Martinez Luiz Marques Marcelo Módolo Marcus Ianoni Anderson Alves Esteves Renato Dagnino Denilson Cordeiro Ricardo Abramovay Alexandre de Lima Castro Tranjan José Micaelson Lacerda Morais Valerio Arcary Tarso Genro Luiz Roberto Alves Ricardo Antunes Julian Rodrigues Francisco Fernandes Ladeira João Sette Whitaker Ferreira Leonardo Sacramento Luiz Bernardo Pericás Everaldo de Oliveira Andrade João Carlos Salles Marcelo Guimarães Lima Claudio Katz Érico Andrade Benicio Viero Schmidt Eleutério F. S. Prado José Dirceu Leonardo Boff Vanderlei Tenório Afrânio Catani Paulo Sérgio Pinheiro Manchetômetro José Machado Moita Neto Anselm Jappe Berenice Bento Paulo Martins Jorge Luiz Souto Maior José Luís Fiori Roberto Bueno Flávio R. Kothe Michael Löwy Yuri Martins-Fontes Alexandre Aragão de Albuquerque Carlos Tautz Bruno Machado Ladislau Dowbor Roberto Noritomi Paulo Capel Narvai Lincoln Secco Daniel Brazil Dennis Oliveira Bernardo Ricupero Luiz Werneck Vianna Celso Frederico Marcos Aurélio da Silva Heraldo Campos Sergio Amadeu da Silveira Marilena Chauí Eleonora Albano Leonardo Avritzer Eugênio Bucci Henry Burnett Tadeu Valadares Ari Marcelo Solon Andrew Korybko Fernão Pessoa Ramos Fernando Nogueira da Costa Luiz Eduardo Soares Vladimir Safatle Francisco Pereira de Farias Luiz Renato Martins Paulo Fernandes Silveira Atilio A. Boron João Carlos Loebens Gilberto Maringoni Carla Teixeira Eliziário Andrade João Adolfo Hansen Daniel Costa João Feres Júnior Ronaldo Tadeu de Souza Luis Felipe Miguel Thomas Piketty Chico Alencar Marilia Pacheco Fiorillo Rubens Pinto Lyra Rodrigo de Faria Leda Maria Paulani Luciano Nascimento Airton Paschoa André Márcio Neves Soares Remy José Fontana Annateresa Fabris Jorge Branco João Lanari Bo Antônio Sales Rios Neto Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fábio Konder Comparato Otaviano Helene José Raimundo Trindade Matheus Silveira de Souza Eduardo Borges Marcos Silva Lucas Fiaschetti Estevez Antonino Infranca Manuel Domingos Neto Kátia Gerab Baggio Ronald Rocha Osvaldo Coggiola Gilberto Lopes

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada