Por GUTO LEITE*
Considerações sobre a vida e a obra de Manoel Antônio de Almeida
Manoel Antônio de Almeida nasceu em 1831 numa casa humilde da Gamboa (nome que remete a uma armadilha para peixes), um mangue insalubre à época. Era filho de um tenente e de uma dona de casa, provavelmente portugueses. Embora não se saiba muito sobre sua primeira infância – Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, provavelmente seu amigo de escola, não deixou testemunho sobre o período – sabemos que sua família se mudou pouco tempo depois para o centro. Mal haviam se instalado, seu pai faleceu e a mãe tratou de cuidar do sustento da casa por um bom tempo, com Maneco, um irmão e duas irmãs. O autor fez os preparatórios no Colégio São Pedro de Alcântara e conseguiu entrar para Faculdade de Medicina em 01/04/1848, com dezessete anos.[i]
Pausa: o prestígio e o rendimento dos médicos em meados do dezenove estavam muito longe do que temos hoje. Basta ver, logo adiante, que Almeida escolherá a profissão de jornalista, quando podia já se valer da medicina. Havia muita desconfiança sobre os métodos e os resultados das práticas dos profissionais. No romance Memórias de um sargento de milícias, no capítulo “Arranjei-me do compadre”, a profissão será satirizada na figura do padrinho barbeiro, que toma parte na empreitada do tráfico negreiro para fazer sangrias sem qualquer qualificação, e se dá bem. Na prática, era um caminho possível para quem não tinha condições de fazer os cursos de Direito em São Paulo ou em Olinda. Aliás, mesmo mais acessível, Manoel Antônio teve dificuldades para cursar regularmente, interrompendo ou atrasando a matrícula anual eventualmente.
Volta: a primeira publicação de Manoel Antônio de Almeida foram dois poemas numa coletânea, em 1849. Em seguida, foi publicar somente em fevereiro 1852, uma réplica a um texto de Varnhagen reproduzido na revista Guanabara (dirigida por Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves Dias e Manoel de Araújo Porto Alegre, impressa na Tipografia Dois de Dezembro, de Francisco de Paula Britto). O autor começou a fazer traduções do francês para a Tribuna Católica.
Sua mãe morreu em seguida, o que o empurrou de imediato para o jornalismo como meio de subsistência. Começou a trabalhar no Correio Mercantil, periódico de larga tradição liberal. Na prática, nas pautas, não se observava diferença tão substancial entre liberais e conservadores, luzias e saquaremas, nos termos de época, exceto a crítica à influência portuguesa na sociedade carioca e os debates sobre o risco de regressismo (JAROUCHE, 2006). (Esse “antilusitanismo”, bom dizer, é sensível no romance, embora nem seja citado pelo ensaio canônico de Antonio Candido. Se Jarouche sublinha muito essa nota, quando me parece que a atmosfera de graça modula tudo, o fato de Candido não dizer nada, nadinha, a respeito é realmente um problema de leitura.)
Por fim, justamente em 1852, a edição dominical inteiramente em francês do jornal foi substituída pela “Pacotilha”, uma seção crítica, satírica e multiforme (composta de notícias, petardos, folhetim etc.). Memórias de um sargento de milícias foi publicado pela primeira vez na “Pacotilha”, entre junho de 1852 e julho 1853, quando Manoel Antonio de Almeida tinha 23 anos. Embora contemporâneos dos primeiros folhetins de sucesso brasileiro, o romance não fez muito sucesso; nem mesmo quando publicado em livro, dois volumes, em 1854 e 1855 – algumas publicações em jornal tempos depois indicam o encalhe da edição. (Uma curiosidade é que a segunda edição do livro, clandestina, foi editada em Pelotas, em 1862.)
Para se ter um comparativo, foram contemporâneos justos de Memórias de um sargento de milícias: Últimos cantos (1851), de Gonçalves Dias, Úrsula (1852), de Maria Firmino dos Reis, Lira dos vinte anos (1853), Macário (1855) e Noite na taverna (1855), de Álvares de Azevedo, e O noviço (1853), de Martins Pena. À luz do momento de intensa atividade do IHGB, da conturbada vida política dos gabinetes com o jovem D. Pedro II e do esforço coletivo e não coordenado de “fundação da literatura brasileira”, Memórias de um sargento de milícias se revela bastante despretensioso, isto é, não parece muito empenhado na construção nacional.
Provavelmente inspirado nos relatos de Antônio Cesar Ramos, veterano da Guerra da Cisplatina (1817) e que trabalhava no Correio Mercantil. Muitas das vezes escrito na casa do pai de Francisco J. B. da Silva, em meio a declamações, fados, lundus e discussões políticas numa reunião de moços. O estilo “sem rodeiros nem rebuços”, expressão de Ronald de Carvalho, com traz imprecisões e cochilos que tornam a novela mais pulsante, errática, tensiva, e menos positiva. A filha de D. Maria na primeira parte do folhetim vira sobrinha na segunda parte. As descrições do Padre e de Vidigal são muito próximas, bem como as cenas em que a natureza risível dessas figuras é revelada. Em que pesem todas essas ligeirezas, a maior oscilação é com certeza a construção da passagem do tempo diegético do romance.
“Era no tempo do rei”, que abre a narrativa, traz um recorte justo em termos históricos, entre 1808 e 1821. Esta frase é dita no capítulo temporalmente mais adiante no romance, o capítulo de abertura, com Leonardo Pataca já veterano dentre os meirinhos, com uma bengala, adquirida depois dos cinquenta anos de idade. No capítulo VII, ”Pátio dos Bichos”, Leonardinho tem sete anos e sabemos que também era tempo do rei porque o monarca aparece na história. Com base nesses parâmetros, teriam Leonardo e Maria da Hortaliça chegado ao Rio antes da Corte Portuguesa, no máximo até 1803? O Vidigal verdadeiro, que viveu quase cem anos, entre 1745 e 1843, certamente não perseguia Leonardinho aos sessenta, setenta anos, certo?
Onde estão, no romance, as datas importantes do período joanino (como os tratados comerciais com a Inglaterra em 1810, o Congresso de Viena em 1814, a morte de D. Maria I em 1816 ou a Revolução Pernambucana em 1817, por exemplo)? “Quantas glórias gozei”, de Candido Inácio da Silva, é cantada por Vidinha no capítulo VII da segunda parte, mas o compositor, nascido em 1800, teria no máximo 17 anos de idade à altura desse mesmo capítulo – deslize já reparado por Mário de Andrade. O bairro da Cidade Nova, onde Leonardo vai tirar a fortuna bem no começo do romance, só nasceu a partir de um decreto de abril de 1811, de isenção da Décima (um imposto sobre as construções urbana), o que de novo causa graves problemas à linha cronológica.
Enfim, o mais razoável, o contrato possível de leitura, é pensar que movimentos diversos se combinam na construção do romance e de seu tempo. Isto é, dizendo diretamente, não podemos ser rigorosos com os marcos temporais de Memórias de um sargento de milícias. O relato de época do militar reformado, a rememoração do jovem escritor, a crônica de costumes do presente e do passado e a disposição crítica, satírica e política da seção do periódico em que os capítulos eram publicados, para citar quatro das forças protagonistas, puxam o tempo da narrativa para lá e para cá. Ou seja, o tempo do romance não é estritamente “o tempo do rei”, mas um tempo que vai, em retrospecto, de meados do dezenove ao final do dezoito.
O realismo do romance, que vai ser devidamente flagrado por Antonio Candido em seu ensaio clássico, é resultado dessa combinação, mas percebam que não se trata da discriminação precisa das forças em jogo. É algo muito mais cômico e feérico, muito menos sério e materialista, na comparação com as leituras que Erich Auerbach (2021) faz de Stendhal ou de Balzac. A ver em que medida eram esse realismo e o de Martins Pena os que estavam disponíveis àquela altura, antes dos romances de José de Alencar (amigo, aliás, de Manuel Antônio de Almeida, a quem o folhetinista vai recorrer quando endividado) e de Machado de Assis. A ver, de mesmo modo, o quanto um realismo rigorosamente balzaquiano seria, com efeito, cômico, por essas praias.
Para ser ter a ideia de como funciona o realismo de Manuel Antônio de Almeida, vale analisar no detalhe a representação de duas categorias de destaque no romance: os meirinhos e a milícia.
Os meirinhos são os oficiais de justiça daquele tempo. Com a chegada da Corte Portuguesa, e toda a estrutura da administração metropolitana – e observando-se que vieram de Portugal, com o Rei, somente os meirinhos-mor – é razoável que aos olhos da população se denominasse um Canto dos Meirinhos, pois seu número aumento muito após 1808. Como eram um dos extremos da “formidável cadeira judiciária” do Rio de Janeiro, “eram gente temível e temida, respeitável e respeitada”. Os tipos daquele tempo (rememora o narrador, que está no presente de 1852), diferentemente, tinham “certo ar de majestade forense” formada pela consciência de sua terrível posição, refletindo-se na roupa e nos acessórios, usualmente derivações de roupas usadas pela nobreza.
Leonardo Pataca é apresentado como uma “rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado”, o “decano da corporação”. Estava sempre na esquina dos meirinhos, porque não o procuravam mais. Velho, “atrasava o negócio das partes” e recebia “a módica quantia de 320 réis”, uma pataca, o que lhe conferia o apelido. (Para se ter uma noção do valor: um escravo sapateiro de 18 anos, 243$000; uma sege completa, 160$000; a assinatura semestral da Gazeta de Notícias, 50$000; o valor recebido de uma comenda de Cristo, das mais baixas, de um coronel de milícias, 16$000 réis; um bacalhau, 1$500 a arroba; um livro barato, 950 réis; a batata, 800 réis a arroba; e uma ferradura de cavalo, 360 réis [preços de 1821]). Algibebe (mascate) de origem, tinha conseguido o emprego “não se sabe por proteção de quem”. Podemos desconfiar que seja ajuda do tenente-coronel, protetor de Leonardo, Maria e Leonardinho, mas o narrador nada nos diz a respeito no capítulo X.
Um meirinho, portanto, já consiste em certa posição social, tanto que Vidigal repreende assim Leonardo: “Pois homem, você, um oficial de justiça, que devia dar o exemplo…” Quando o recolhe, leva-o à Casa da Guarda e depois à cadeia, onde passará alguns dias até ser solto por Vidigal. Ao mesmo tempo, entre os peixes grandes, o ofício não parece digno de nota. Quando o tenente-coronel apela a um fidalgo de valimento a soltura de Leonardo, o fidalgo pondera: “Homem, pois eu hei de ir ao palácio por causa de um meirinho? El-Rei há de rir-se do meu afilhado”. A existência de um protetor, é evidente, faz de Leonardinho um meirinho especial.
Manuel Antônio de Almeida consegue fixar esses movimentos em seu romance, essa espécie da “dança”, como diz Antonio Candido, ou “rixa”, na modulação de Otsuka, ou um “comportamento regido por um insistente e sofisticado senso de teatro, as pessoas representando papéis a todo momento”, expressão de Richard Grahan (in MALERBA, 2000) para descrever o momento da corte no Brasil. Essa rivalidade sem fim, mais amena ou menos amena, em que revanches, trapaças, reprimendas e até cadeia são permitidas, talvez esteja restrita às camadas médias do romance.
Até onde vejo, os primos do Mangue e Chico Juca, de um lado, e D. Maria e Luiza de outro – como também Leonardinho, no tempo depois do fim do romance – ficam fora desse jogo. De todo modo, a pergunta radical é: em que medida essa sensação de que tem algo postiço, algo de não real, está assentada em nossa leitura burguesa de realismo, ao passo que o que autor está conseguindo apreender responde a essa combinação de Antigo Regime e burguesia do Rio de Janeiro da primeira metade do dezenove?
As milícias civis, por sua vez, são a segunda linha da organização militar do Antigo Regime: o exército, organizado em geral pela nobreza; as milícias civis, recrutadas para manter a ordem ou defender o burgo; e as ordenanças, os homens livres saudáveis entre 18 e 60 anos. Em tempos antigos, com o exército muitas vezes ausente, sua atuação foi decisiva. Sua função sempre foi também disciplinar a população civil recrutada, em troca conferia prestígio e meios de ascensão aos milicianos. (Esclareço que embora a palavra polícia esteja na boca do povo no romance, a Intendência Geral da Polícia tinha função mais abrangente, de segurança, mas também de acompanhamento de obras, fiscalização, planejamento, contemplando também aspectos higienistas. (BRETAS, 1998)) Com Pombal, outra vez se atribuiu um papel mais relevante às milícias na defesa do território, especialmente colonial.
Como se lê na obra, embora as milícias estivessem organizadas, sua instrução militar era rudimentar ou inexistente, mal treinada e com escasso armamento. Havia quatro companhias de granadeiros, uma para cada regimento de Infantaria (mais um regimento de Cavalaria, com sete companhias) – um dos regimentos de Infantaria era de pardos e libertos; o que é relevante porque não era o regimento de Leonardinho. Todos os regimentos tinham seu “pequeno estado-maior” e seus oficiais agregados. Um último aparte, no período joanino “houve nítido predomínio do exército profissional sobre as demais linhas” (WEHLING & WEHLING, 2008, p.30), em especial se consideramos a atuação das tropas arregimentadas em batalhas anteriores.
Dito isso, fica claro que o tenente-coronel, “filho de Portugal, que acompanhara el-Rei ao Brasil”, figura protetora mais elevada de Leonardo e filho, é superior ao major Vidigal por caminhos mais tortos do que poderiam parecer inicialmente (bem como que proteção dos leonardos tem a ver, no arco mais externo, com as relações portuguesas e, no arco mais interno, com as “brasileiras”). O estatuto de Vidigal também traz uma indefinição curiosa. Embora seja chamado de “rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração”, sua condição história era provavelmente a de chefe de uma companhia de granadeiros, mais outros soldados escolhidos por ele, para patrulhar a cidade à noite
Dizendo de outro modo, o tamanho de Vidigal, o Bicho Papão do romance, é dado por sua relação com o protagonista. E vemos esse tamanho real quando sua autoridade é bloqueada pela intervenção do tenente-coronel ou no episódio com o funcionário da ucharia, em que o narrador observa: “era o toma-largura gente da casa real, e nesse tempo tal qualidade trazia consigo não pequenas imunidades” – para justificar por que Vidigal não o prendia. Para o destino de Leonardo, contudo, o poder é mais do que suficiente: “Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis: – um era sua baixa da tropa de linha; outro, sua nomeação de Sargento de Milícias” Como sabido, a promoção o retira da perigosa condição de granadeiro, o “côvado e meio às costas”, e o promove a sargento de milícias.
Para nossos termos, o principal me parece é a representação desse estado de coisas em que a posição não assegura o tratamento digno, para cima ou para baixo. Em outras palavras, o vadio não tem os mínimos direitos diante da arbitrariedade do major de milícias, que por sua vez pouco pode diante do tenente-coronel do Exército Português ou de gente da Casa Real – este é o nexo, aliás, entre malandragem e arbítrio, entre Maneco e Machado, entre Candido e Schwarz. A realidade não é fixa (nem sólida talvez…), a ironia vem a calhar e qualquer pretensão séria revela certo desconhecimento das regras do jogo. A forma acabada e de longo alcance desse arranjo parece vir mesmo com a parte moderna da obra de Machado, mas não dá para subestimar o acerto de Manoel Antônio de Almeida.
Para não deixar solta a ponta da biografia, após a publicação do romance, o autor escreveu crítica literária no jornal, chamada Revista Bibliográfica, em 1854, foi um dos fundadores da primeira sociedade carnavalesca do Rio de Janeiro em 1855 – Congresso das Sumidades Carnavalescas, com o jovem Alencar, dentre outros –, foi secretário da Sociedade Protetora das Belas Artes, em 1856, diretor da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional em 1857; foi nomeado para a Tipografia Nacional em 1858 – onde conheceu e foi uma espécie de primeiro tutor de Machado de Assis –, escreveu uma ópera em três atos, encenada alguns meses depois de sua morte; foi nomeado segundo oficial da Secretaria dos Negócios da Fazenda, com dois contos anuais, tentou fugir dos credores em Petrópolis por uma temporada e se animou com a possibilidade de uma carreira política. Numa ida a Campos, por seu futuro como deputado, morreu num naufrágio aos 31 anos.[ii]
*Guto Leite, escritor e compositor, é professor de literatura brasileira na UFRGS.
Referências
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental; trad. George B. Spender, Equipe da Perspectiva; ver. de trad. e trad. do apêndice, Rainer Patriora. São Paulo: Perspectiva, 2021.
CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem”, em _________. O discurso e a cidade. Rio de Janeiro / São Paulo: Ouro sobre Azul / Duas Cidades, 2004.
JAROUCHE, Mamede Mustafa. “Galhofa sem Melancolia: as Memórias num mundo de luzias e saquaremas”, em ALMEIDA, Manoel Antônio. Memórias de um sargento de milícias. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006.
MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
OTSUKA, Edu. “Espírito rixoso”, em Revista do IEB, nº. 44, 2007, p.105-124.
REBELO, Marques. Vida e obra de Manoel Antônio de Almeida [2ª ed. revista]. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1963.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “A Corte no Brasil e a distribuição das mercês honoríficas”, in História, nº54, 2008, p.51-73.
WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José. “Exército, milícias e ordenanças na Corte Joanina: permanências e modificações”, em Revista DaCultura, ano VIII, nº4. FUNCEB, 2008.
Notas
[i] Os dados de sua biografia foram colhidos em textos diversos, mas sobretudo em REBELO (1963).
[ii] Texto derivado de uma aula no Curso Livre da Pós-Graduação em Letras da UFRGS em 2022, ministrado com os professores Luís Augusto Fischer e Homero Vizeu Araújo, a quem agradeço sempre pelas orientações, mas que não são responsáveis por estas linhas.