Own this!

Peter McClure, Praças, 2011.
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Por LUCIANA BRUNO*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Trebor Scholz

Embora tenha sido inicialmente vista como uma ferramenta de democratização da informação e de conexão entre pessoas, a internet parece ter se transformado num repositório do que há de mais deletério no capitalismo contemporâneo: monopólios como Amazon, Apple, Microsoft, Meta, Alphabet, Netflix, Uber e Paypal têm a maiores capitalizações de mercado nos Estados Unidos. SAP, Takeaway, Spotify e Delivery Hero dominam o mercado europeu. O mesmo cenário se repete na China, com Alibaba, Tencent e Mei. Na região da Ásia-Pacífico, com a Samsung. Na África, com Prosus e Naspers. Na América Latina, com o Mercado Livre.

Controlando áreas essenciais como alimentação, educação e transportes, essas empresas operam segundo a lógica da maximização dos lucros e da exploração brutal dos empregados, que, desprovidos de direitos trabalhistas e redes de proteção social, ganham apenas o bastante para subsistir, capturados numa mistura tóxica de pagamento insuficiente, monitoramento aprimorado, violação de dados privados e condições precárias de trabalho. Um modelo fadado a destruir o tecido social.

Em uma conferência de negócios realizada em Madri em 2017, o pesquisador Trebor Scholz perguntou ao professor de economia e colunista do New York Times Tyler Cowen a respeito da viabilidade de modelos alternativos, como as cooperativas, caso relatado no livro Own This! – How Platform Cooperative Help Workers Build a Democratic Internet, lançado pela editora Verso. “Cooperativas constituem uma parte insignificante do PIB mundial. São marginais demais para serem consideradas”, respondeu Tyler Cowen, afirmação que Trebor Scholz atribui a uma “visão limitada” em relação ao assunto.

Se um economista respeitado desconhece o potencial transformador das cooperativas, não espanta que a maioria das pessoas tampouco dê a devida atenção ao tema. Nesse sentido, o grande mérito de Own this! é abrir a mente do leitor para as incríveis potencialidades desse modelo econômico alternativo que prioriza a equidade, a justiça e a sustentabilidade, calcado na propriedade coletiva e na autogestão, em prol de uma internet mais justa e democrática.

Entre as muitas definições que permeiam o livro, pois cooperativas são plurais, heterogêneas e diversificadas, destaca-se a seguinte: “Uma cooperativa de plataforma refere-se a um projeto ou negócio que usa principalmente um site, aplicativo móvel ou protocolo para vender mercadorias (por exemplo, dados) ou serviços, e depende de uma tomada de decisão democrática e propriedade comunitária compartilhada por trabalhadores e usuários.”

Cooperativas de plataforma apresentam um rol expressivo de vantagens quando comparadas ao modelo tradicional das Big Techs do capitalismo de plataforma. Em geral, são mais produtivas, pagam melhor, estipulam pisos salariais, operam com mais transparência, promovem a justiça social e racial, a diversidade sexual, a economia verde, priorizam o bem-estar dos seus membros, investem em inclusão e inovação, oferecem melhores condições de trabalho, respeitam direitos autorais e forjam um importante senso de comunidade e solidariedade entre os cooperados. O modelo também colabora para um maior engajamento com as comunidades em que as cooperativas atuam, promovendo, em última análise, transformações sociais.

Trebor Scholz cita uma série de exemplos bem-sucedidos de cooperativas de plataforma, como a Smart, ou Societé Muttuelle Pour Artistes, que transforma contratantes independentes em cooperados e, ao reunir artistas, designers, pintores, técnicos, consultores e escultores em um mesmo guarda-chuva operacional, alivia freelancers do penoso trabalho administrativo, além de disponibilizar proteção legal e pagamento justo. Seu slogan resume bem a ideia do negócio: “Você cria, nós administramos.”

No Brasil, a plataforma digital Cataki congrega milhares de catadores com o objetivo de otimizar a coleta de materiais recicláveis junto a empresas, condomínios e prefeituras, contribuindo para o processo de reciclagem de resíduos sólidos. Seu modelo de governança e de propriedade, no entanto, ainda precisa ser aprimorado[i] para que se torne de fato uma cooperativa de plataforma, com maior participação dos trabalhadores nas decisões e na propriedade da organização. Os potenciais, contudo, são imensos. “Por todo o mundo há sessenta e quatro milhões de super-heróis como os catadores que estão tentado salvar o planeta, ganhando a vida de forma honesta com o que as pessoas consideram lixo”, diz o artista paulistano Mundano, idealizador do projeto.

Mas como manter os valores comunitários, a competitividade e, por fim, expandir no contexto do capitalismo predatório? A despeito das inúmeras particularidades de cada mercado, o autor cita os modelos “scalling up”, “scalling out” e “scalling deep”, que apontam avanços para cima, para fora e para dentro, a depender de como o negócio funciona, se de forma local, global ou intermediária. O detalhamento desses modelos é um passo adiante de Trebor Scholz em relação ao seu livro anterior Cooperativismo de plataforma, publicado em 2017 no Brasil em coedição pelas editoras Elefante e Autonomia Literária.

Compatibilizar o modelo de cooperativas com a economia capitalista é um objetivo desafiador, mas não impossível de ser alcançado. Em parceria com governos, prefeituras e sindicatos, instituições como a ICA (International Cooperative Alliance) desatam os nós regulatórios de um mercado que já emprega quase trinta milhões de pessoas e representa de três a cinco por cento do PIB mundial.  O Brasil, com seu histórico de sucesso no cooperativismo e na economia solidária, pode contribuir com o processo de disseminação das cooperativas de plataforma, especialmente entre trabalhadores precarizados do capitalismo de plataforma.[ii]

Por mais relevantes que sejam do ponto de vista econômico, contudo, cooperativas desafiam o paradigma do livre mercado justamente por serem centradas no aspecto humano. Essa redefinição passa pela obsolescência do conceito de PIB (em inglês GDP, Gross Domestic Product) e pela substituição do valor de mercado pela qualidade de vida dos trabalhadores e consumidores, garantindo direitos digitais e governança democrática dos recursos coletivos em sintonia com a Agenda 2020 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

No penúltimo capítulo, o autor traz um engenhoso exercício de ficção especulativa. Escrevendo de 2035, apresenta uma realidade na qual as plataformas dominantes como Facebook, Twitter, Mysapce e Aol desapareceram, dando lugar a uma miríade de cooperativas alinhadas com valores democráticos e comprometidas com a valorização do capital humano. Por mais utópico que pareça, descortina um futuro possível que, não obstante os desafios regulatórios, pode, talvez em menor escala, se tornar realidade.

A conquista dos direitos digitais no século XXI se equipara, nesse ponto, à conquista dos direitos civis no século XX, assim como cooperativas ressignificam aquele que outrora foi o papel dos sindicatos. Esse lento, porém, necessário processo passa pela consolidação do conceito de cidadania digital e pela ampliação e descentralização das formas de conectividade.

Se tudo isso parece animador, o último capítulo é particularmente útil do ponto de vista prático por apresentar um guia simples para lançar uma cooperativa de plataforma, lançando mão de fundos de financiamento coletivo e métodos de liderança participativa. Após ler Own This!, a sensação que fica no leitor é que, embora cooperativas de plataformas já atuem em setores tão diversos da economia quanto transporte, hospedagem, construção civil e serviço social, em breve elas estarão em todos os lugares – para o bem da coletividade!

*Luciana Bruno é jornalista.

Referência


Trebor Scholz. Own this! – how platform cooperative help workers build a democratic internet. Londres, Verso, 2023, 240 págs. [https://amzn.to/3SCrb5R]

Notas


[i] Fonte: “Collecting Dignity: Recyclable Waste Pickers of Brazil”. Luciana Bruno (2019). ICDE Research Fellow, The New School, NYC.

[ii] Capitalismo de plataforma (do inglês, “platform capitalism“) é o termo usado para designar um conjunto de atores corporativos (as plataformas) que se apresentam como meros intermediários tecnológico-comunicacionais e que articulam uma relação de serviços e negócios entre indivíduos ou instituições (SRNICEK, 2017).


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