A tragédia de Antígona

Imagem: Anh Nguyen
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARI MARCELO SOLON*

Hegel disse que essa é a obra mais bela de todos os tempos e também disse que a tragédia grega não se repete nunca mais

No capítulo IV, do livro IV da Fenomenologia do espírito, Hegel estabelece um mecanismo que move a história: é a luta pelo reconhecimento. É uma luta em que duas autoconsciências lutam pelo puro prestígio. Isto é mais materialista que a luta de classes, mas engloba a luta de classes.

Pelo que se luta? Pelo desejo do outro. Isso gera, de um lado, a figura do mestre que se impõe como dono do trabalho e de outro escravo que, para não morrer, trabalha para o mestre. A beleza da Fenomenologia do espírito de Hegel, que também é uma fenomenologia no sentido de Husserl e de Heidegger, é que não se dá apenas no plano da Selbstbewusstsein (autoconsciência), mas no plano histórico.

No Livro VI, o mundo antigo e a consciência ética, Hegel menciona uma única vez a tragédia de Antígona. Creonte é o guerreiro e, no mundo antigo, os donos são os guerreiros que fazem guerra pelo reconhecimento. Creonte representa a universalidade da polis. Antígona representa a particularidade da mulher. Contra a polis universal, Antígona representa a religiosidade subterrânea, a da religiosidade ctônica (a olímpica é representada por Creonte). Hegel disse que essa é a obra mais bela de todos os tempos e também disse que a tragédia grega não se repete nunca mais.

Por que Antígona é a verdadeira tragédia? Por não ter solução. Antígona deve aceitar seu destino e Creonte o seu, como em Édipo Rei. Não tem como Antígona fazer valer perante a polis a sua liberdade religiosa. Não há uma potência perante a polis grega. Com o surgimento do cristianismo, la mauvaise conscience, e do direito romano, temos uma nova fase desta luta pelo reconhecimento. No Estado romano que vigora até a revolução francesa, o escravo não é mais escravo, é pseudoescravo, e o mestre não é mais mestre, é pseudomestre.

Esta luta pelo reconhecimento se dá no desejo de igualdade formal: Estado soberano, liberdade contratual, propriedade privada.

Como é possível, se não há tragédia? Afinal, só Antígona é uma tragédia, isto é, só os gregos são capazes de elaborar tragédias. No entanto, há as tragédias de Shakespeare. Hegel com fineza percebe que as tragédias modernas são tragédias escritas por intelectuais, mais próximas de comédias. Em Hamlet, no final, a vista se exerce no dinamarquês que, depois de todo aquele morticínio, irá trazer paz para as terras. Esta, no entanto, ainda não é o verdadeiro Anerkennung, o verdadeiro reconhecimento. Na era do direito burguês cristão, você tem pseudoescravos e pseudoburgueses, mas não há verdadeiros cidadãos.

Quem elimina a tragédia? O Estado soberano, a propriedade privada e a liberdade contratual e Napoleão, com os direitos humanos, em 1807. Hegel ouviu de sua janela os canhões da batalha de Jena e, então, concluiu a Fenomenologia do espírito. A sincronicidade explica o fim da história da filosofia. A luta pelo reconhecimento se torna verdadeira. De um lado, um cidadão que trabalha e luta, de outro, o imperador que, segundo Hegel, é o espírito objetivo que passou por sua janela.

Desde 1807 não há mais filosofia e necessidade de luta. O Estado vira um Estado kantiano, cosmopolita, de direitos humanos. Todos são reconhecidos homogeneamente. “Professor, tem guerra desde então”, seria uma indagação possível. Não se vocês entenderem Aristóteles: em ato tem guerra, mas em potência não há mais. O désir, o desejo, roubado por Lacan deixa de ser puramente humano. É o que Marx fala: de dia eles vão caçar, de noite jogarão bilhar. Antígona só existe como crime, e não como direito. Como criminosa, viola a lei da pólis e consegue reconhecer sua liberdade religiosa. No Estado pós-napoleônico é possível fazer uma ADIn. Até as crianças são cidadãs.

Foi reconhecido pelo STF que os sabatistas não estão aqui para defender seus interesses particulares, mas seus interesses de cidadãos, afinal, o ENEM se tornou algo obrigatório, e antes não o era. Querem participar da educação universal. A análise de Hegel é tão perfeita que Kojève explicou para Lacan, em um curso de 1936. Depois, Kojève morreu. Ele morava em um subúrbio, em Vincennes, e Lacan foi até a casa dele roubar a cópia anotada da Fenomenologia do espírito. Não era contra, pois o sujeito pode se apropriar de todos os trabalhos intelectuais.

*Ari Marcelo Solon é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prisma).
https://amzn.to/3Plq3jT


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES