Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o livro recém-reeditado de João do Rio
João do Rio será o homenageado da FLIP de 2024. Para muitos, um desconhecido. Alguns já ouviram falar do autor de A Alma Encantadora das Ruas, inovador e precursor de uma geração de cronistas que colocaram sua lupa sobre o povo carioca e acabaram criando o mais brasileiro dos gêneros literários. Mas pouquíssimos conhecem a obra ficcional de Paulo Barreto (1881/1921), esgotada há décadas.
Paulo Barreto? Sim, este é o nome de batismo do escritor, cronista, jornalista, tradutor, crítico de teatro e ensaísta João do Rio, eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1910, com 29 anos. Escreveu na imprensa do início do século XX oculto sob outros pseudônimos, como Claude, Caran d’Ache, Joe, José Antônio José, Máscara Negra, Godofredo de Aguiar e Jacques Pedreira. Era negro, filho de professores pobres, obeso e homossexual. Comportava-se como um dândi tropical, frequentando as altas rodas da sociedade da época.
Estas informações estão no precioso Prefácio do volume recém lançado Pavor dentro da noite, de Hedjan C. S. – um especialista em literatura gótica e de horror. A partir daí mergulhamos na obra desse personagem que parece se revelar sutilmente em várias páginas de sua ficção.
São dez contos onde as taras, manias e perversões da sociedade carioca da época são esmiuçadas de forma assustadora. João do Rio não descreve ali horrores da classe operária, da pobreza, mas dos extravagantes salões que conhecia de perto. A pequena burguesia também é retratada sem piedade, quando ainda pegava bonde e sonhava andar de coche.
Escritos há mais de cem anos, ao mesmo tempo em que ecoam um espírito vitoriano e carregam a herança da literatura do século XIX, os contos apontam para uma estranha modernidade literária, que ainda era um bebê de tarlatana rosa (nome do mais famoso conto do volume).
Do sádico com propensão a enfiar agulhas na pessoa amada até o proustiano Barão Belfort, personagem que aparece em três contos, o desfile de personagens burlescos e tétricos é impressionante. Ora ecoam O Jogador de Dostoiévski, ora antecipam um clima digno de Jorge Luís Borges, como a fantástica narrativa O Fim de Arsênio Godard.
Em várias histórias escabrosas João do Rio pincela um toque de humor, como no conto Aventura de Hotel:
“Sempre grandes nomes, gente importante, um complexo armorial de celebridades funcionárias e de titulares empastilhados. E, à noite, no saguão de entrada, saguão de mármore que o gerente forrara de velha tapeçaria e guarnecera de um indizível mobiliário hesitante entre o estilo otomano, os belchiores e o confortável inglês, podia-se ver os representantes de todas as classes sociais desde a diplomacia até o trololó, um teatro divertido”.
Celebridades funcionárias e titulares empastilhados continuam presentes no século XXI, para nosso desgosto. Sem a densidade de um Machado de Assis, e ainda fiel ao modelo francês que tanto influenciou sua geração, o ousado João do Rio soube lançar as sementes de uma nova forma de literatura, que iria germinar e florescer no Modernismo.
A primorosa edição da Bandeirola, além da capa dura e grafismos delicados enfeitando a leitura, conta ainda com um elucidativo posfácio do professor Júlio França, da UERJ, que conclui de modo magistral: “Podem agora fechar o livro, leitores, mas as criaturas de João do Rio seguirão, à espreita, em algum canto esquecido de suas memórias”.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência
João do Rio. Pavor dentro da noite. Paraty, Bandeirola, 2024, 144 págs. [https://amzn.to/4dlJrYX]
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