Aldir Blanc, cronista

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Daniel Brazil*

O enorme compositor-letrista acabou ofuscando o escritor. Aldir Blanc é cronista mesmo, refinado, com vários livros publicados

Abalados pela morte do letrista, compositor e poeta Aldir Blanc (1946-2020), os comentaristas e o público amante da música popular inundaram as redes sociais com versões de seus grandes sucessos, como O Mestre-Sala dos Mares e O Bêbado e a Equilibrista, feitos com o parceiro maior, João Bosco. Jornalistas relembraram sua criatividade, sua verve, suas firmes posições políticas, seu humor sarcástico, sua carioquice. Alguns analistas lembraram a sua capacidade de concretizar em letra de música verdadeiras crônicas, cenas populares, relatos mordazes de situações urbanas.

Nada mais justo, se prestarmos atenção a obras primas como De Frente pro Crime, Incompatibilidade de Gênios. A Nível De… ou Siri Recheado e o Cacete, retratos cheios de graça de um certo jeito de ser carioca, entre malandro e trouxa, convivendo com a violência, o desacato, o compadrio, a traição e outros desvios. Bebeu de fontes preciosas, como Noel Rosa, Geraldo Pereira, Wilson Batista, Billy Blanco e mais uns poucos. Não é fácil contar uma história, criar um enredo com abertura e desfecho, em poucos versos.

Mas o enorme compositor-letrista acabou ofuscando o escritor. Aldir Blanc é cronista mesmo, refinado (ou grosso, dependendo da hora), com vários livros publicados. Convidado pela turma do Pasquim, publicou seu primeiro volume de crônicas, Rua dos Artistas e arredores, em 1978. Ali se revelava um arguto investigador dos hábitos, costumes e idiossincrasias populares, herdeiro legítimo de uma tradição que vinha do pioneiro João do Rio, incorporando o inconformismo de um Lima Barreto e compartilhando o senso de humor de um Stanislaw Ponte Preta.

As coletâneas seguintes (Porta de Tinturaria, Brasil Passado a Sujo, Um Cara Bacana na 19ª, Direto do Balcão) confirmaram o talento literário do compositor-letrista. Sua formação acadêmica (fez medicina, com especialização em psiquiatria) se mesclava em química perfeita com o amor pela literatura, destilando o exímio retratista de tipos humanos, de situações hilariantes, de pequenas e grandes malandragens de um Brasil que se transforma a cada dia, deixando de sorrir e mostrando os dentes. Talvez não escrevesse crônicas, mas diagnósticos…

Reler Aldir Blanc hoje é se reencontrar com esta quase perdida tradição de cronistas satíricos metropolitanos. Os textos de humor crítico migraram para a TV, para as comédias stand-up, para as redes sociais. Apenas Luiz Fernando Veríssimo pode ser comparado, no cenário da literatura brasileira contemporânea.

Mesmo quando Blanc se aventurou por outros gêneros, como memórias (Vila Isabel – Inventário de Infância), livros infantis (Uma Caixinha de Surpresas), ou relatos saborosos em homenagem a seu time de coração (Vasco – A Cruz do Bacalhau), o espírito de “cronista carioca” esteve impregnado de forma indelével. Aldir Blanc ainda será lembrado como um dos mais originais escritores de nossa época, último recriador de um Rio de Janeiro que, depois da pandemia, nunca mais será o mesmo.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES