Pensar o impensável – a vida e o tempo

Imagem: Cris Baron
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Por LEONARDO BOFF

O que é o tempo senão o hiato onde o finito toca o infinito, e cada instante se revela como participação no eterno?

1.

Há que considerar a “vida”, o valor supremo, acima do qual só há o gerador de toda vida, aquele ser que faz ser todos os seres. Os cientistas, especialmente o maior deles que se ocupou com o tema da vida, o russo-belga Ilya Prigogine afirmou: podemos conhecer as condições físico-químico-ecológicas que permitiram o irromper a vida há 3,8 bilhões de anos. O que ela seja, no entanto, permanece um mistério.

Mas se não podemos compreender o que é a vida, podemos, no entanto, conferi-lhe um sentido. O sentido da vida é viver, simplesmente viver, mesmo na mais humílima condição. Viver é realizar, a cada momento, a celebração desse evento misterioso do universo que pulsa em nós e quiçá em muitas outras partes do universo.

A vida é sempre uma vida com e uma vida para. Vida com outras vidas, com vidas humanas, da natureza e com vidas que por acaso existirem no universo e que um dia puderem se comunicar conosco. E vida é para dar-se e unir-se a outras vidas para que a vida continue vida e sempre possa se reproduzir.

A vida é tomada por uma pulsão interior que não pode ser freada. A vida quer irradiar, se expandir e se encontrar com outras vidas. A vida é só vida quando é vida com e vida para.

Sem o com e sem o para a vida não existiria como vida assim como a conhecemos, envolta em redes de relações includentes e para todos os lados.

A pulsão irrefreável da vida faz com que ela não queira só isso e aquilo. Quer tudo. Quer até a totalidade, quer o infinito. No fundo, a vida quer ser eterna como ponderava Friedrich Nietzsche.

Ela carrega dentro de si um projeto infinito. Este projeto infinito a torna feliz e infeliz. Feliz porque encontra, ama e celebra outras vidas e tudo o que está ao seu redor, mas é infeliz porque tudo o que encontra, ama e celebra é finito, lentamente se desgasta, cai sob o poder da entropia e acaba desaparecendo. Apesar dessa finitude em nada enfraquece a pulsão pelo infinito e pelo eterno.

Ao encontrar esse infinito repousa, experimenta uma plenitude que ninguém lhe pode dar, mas que só ela pode desfrutar e celebrar. O infinito em nós é o eco de um infinito maior que sempre nos chama e nos convoca.

A vida é inteira, mas incompleta. É inteira porque dentro dela está tudo: o real e o potencial. Mas é incompleta porque o potencial, ainda no espaço-tempo, não se fez real. E como o potencial é ilimitado, a vida limitada não comporta o ilimitado. Por isso nunca se faz completa para sempre. O ser humano é um ser desequilibrado. Mas permanece como abertura e espera para uma completude que quer e deve, um dia, acontecer. É um vazio que reclama ser plenificado. Caso contrário a vida não teria sentido. Não seria a morte o momento de encontro do finito com o infinito?

2.

A nossa vida se dá sempre no tempo. Que é o tempo? Ninguém soube até hoje defini-lo nem os mais argutos pensadores como Santo Agostinho e Martin Heidegger. Por minha parte ousaria dizer: o tempo é a espera daquilo que pode vir a acontecer. Essa espera é a nossa abertura, capaz de acolher o que pode vir. Esse hiato seria o tempo.

Há que se viver intensamente cada momento do tempo! O passado já não existe porque passou, o futuro não existe porque ainda não veio. Só existe o presente. Viva-o com absoluta intensidade, valorize cada momento, ele traz o futuro para o presente e enriquece o passado.

Cada momento é a irrupção do eterno. Explico: o presente só pode ser vivido. Não pode ser apreendido, aprisionado e apropriado. Só ele é. Um dia foi (o passado) e um dia será (o futuro). Do tempo nós só conhecemos o passado. O futuro nos é inacessível porque ainda não é.

Nós, no entanto, vivemos o “é” do presente que nunca nos é concedido prendê-lo. Ele simplesmente passa por nós e se vai. Ele possui a natureza da eternidade que é um permanente “é” O tempo assim significa um momento da presença fugaz da eternidade. Nós estamos imersos na eternidade porque estamos imersos no tempo presente.

Há que se viver esse “é” como se fosse o primeiro e o último. Assim a pessoa, de certo modo, se eterniza. E eternizando-se participa Daquele que sempre é sem passado nem futuro: a essência da divindade.

Podemos falar do tempo, mas ele é impensável. Precisamos do tempo para pensar o tempo. Esse é um momento do eterno que está vinculado ao que as tradições espirituais e religiosas da humanidade designaram como Mistério, Tao, Shiva, Alá, Olorum, Javé, Deus, nomes que não cabem em nenhum dicionário e estão para além de nosso entendimento. Diante dele afogam-se as palavras. Só o nobre silêncio é digno.

Mesmo assim cada um participa, pelo presente fugidio, da natureza do divino, mesmo que nem tenha consciência dele. Ao imergir na consciência, rende-se à essa suprema realidade. Dá-lhe o nome que expressa sua participação n’Ele. Esse nome fica inscrito em todo o seu ser presente, mas principalmente pulsa em seu coração. Então o seu coração e o coração d’Aquele que eternamente é, formam um só e imenso coração: é o todo em sua esplêndida plenitude.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Ecologia: grito da Terra,grito dos pobres (Vozes) [https://amzn.to/3KHEa4L]


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