Por JOSÉ EDUARDO FERNANDES GIRAUDO*
Em condições de capitalismo tardio e sob a sombra homologante do “wokismo” neoliberal, talvez a melhor forma de reivindicar Pasolini seja não celebrar o seu centenário
Konstantinos Kavafis escreveu, em 1911, o poema Che Fece… Il Gran Rifiuto, cujo título tomou de um verso do canto terceiro do Inferno de Dante:
Chega para alguns o dia, a hora
Em que devem dizer o grande Sim
Ou o grande Não. Logo aparece quem
Dirá Sim, ao dizê-lo acrescendo
Sua propria certeza e sua propria estima.
Quem recusa não se arrepende. Diria
De novo Não, se lho exigissem. Pagará
O Não, o justo Não, por toda a vida.
O poema descreve perfeitamente a característica central da vida e da obra de Pier Paolo Pasolini, um dos maiores intelectuais do século XX, nascido em 5 de março de 1922 e morto em 2 de novembro de 1975, aos 53 anos, no Idroscalo de Ostia, na periferia de Roma. Segundo a versão oficial, assassinado por um garoto de programa.
Pier Paolo Pasolini foi professor, jornalista, poeta, romancista, ensaista, dramaturgo, tradutor, roteirista, diretor, crítico e teórico do cinema, encarnando uma espécie de “intelectual total” como poucos antes ou depois dele.
Foi, como poucos antes ou depois dele, o grande artista do “Não”. Disse “Não” ao fascismo (numa época em que isto não era fácil e não rendia likes nas redes). Comunista e católico, disse “Não” ao Partido e à Igreja (idem). Escritor, disse não às modas, às cliques, ao esnobismo.
Amaldiçoado, nunca aceitou o lugar de “maldito” oficial. Cineasta, disse “Não” a Hollywood e à própria ideia do entretenimento: “O cinema é uma forma de conhecimento.” Enfant terrible da revolução, recusou tornar-se, como tantos, enfant gaté da burguesia.
Marxista, reivindicou o lumpenproletariado e os que “não podem ser representados”. Revolucionário, disse “Não” ao revolucionarismo fácil do pós-68. Teve a coragem de chamar filhos de papai aos filhos de papai, e de filhos do povo aos policiais oriundos do sub-proletariado da Itália meridional, filhos de braccianti desprezados e por vezes mortos por filhos “revolucionários” de juízes, engenheiros e advogados.
Homossexual, nunca aceitou ser tratado com condescendência, como “bicha de estimação” das páginas de fofocas ou dos cadernos B. Provavelmente não aceitaria ser descrito como “gay”, etiqueta imposta pela indústria cultural aos homens que fazem sexo com homens, como se estes houvessem de ser ou vítimas trágicas ou loucas de carnaval.
Laico, amigo inseparável de feministas como Oriana Fallaci, nunca foi perdoado por expressar suas restrições filosóficas ao aborto.
Vivendo em “tempos progressistas”, reivindicava, sem converter-se num reacionário ou num romântico, o legado da cultura camponesa, pré-industrial, italiana, investindo contra a indústria cultural, o consumismo e a “homologação” promovida pelo capitalismo tardio.
Letrado e cosmopolita, nascido na douta Bolonha, escrevia seus poemas no árido dialeto friulano, aprendido na infância passada na casa da avó materna em Casarsa della Delizia.
Recentemente, a escritora estadunidense Maya Angelou foi homenageada com a impressão de sua efígie numa moeda de vinte e cinco centavos, para celebração de muitos incautos que aqui saudaram o “reconhecimento”.
Reconhecimento, talvez. Pois nem de “recuperação” se pode falar, já que os escritos da “poeta laureada” do governo Bill Clinton nunca ameaçaram ninguém: rescendem à literatura edificante para meninas, tipo Pollyanna e Pollyanna Moça (Harold Bloom a descreve como “escritora inspiracional, de auto-ajuda”) e têm a cara do “progressismo neoliberal” homologado e homologante, ideologia oficial do discurso político norte-americano, no qual as “diferenças” são hipostasiadas e transformadas em “identidades”, que por sua vez se transformam em “estilos de vida”, ou melhor, em padrões de consumo. Nenhum reconhecimento seria mais natural, numa cultura em que, literalmente, tudo se transforma em dinheiro.
Pasolini era irrecuperável. Como talvez o tenha sido, nos EUA, apenas um James Baldwin. Como um Jean Genet, um Rainer Werner Fassbinder, um Eduard Limonov. Intragável, indigerível, inassimilável. Intimamente odiado até por quem dizia admirá-lo.
Como os santos e os loucos, que nos confrontam, a cada palavra, a cada gesto, a cada “Não”, com nossa própria mesquinharia, nossos compromissos e nossa mediocridade. Como a Jenny, boa pra apanhar, boa de cuspir, boa de jogar bosta, a maldita.
Ao contrário da de Celestino V, que Dante credita à “vileza” ou covardia, a renúncia de Pasolini foi sempre um ato de coragem, talvez até de temeridade. De masoquismo. Ou de santidade. E ao contrário do próprio Dante, e de seu mestre e guia Virgílio, o primeiro dos poetas laureados, Pier Paolo Pasolini nunca reivindicou para si quaisquer louros, quaisquer honrarias.
No dia de mortos de 1975, na hidrobase de Ostia, junto à foz do Tibre, nos arredores de Roma, Pier Paolo Pasolini disse seu ultimo “Não”.
Em condições de capitalismo tardio e sob a sombra homologante do “wokismo” neoliberal, talvez a melhor forma de reivindicar (e de “vingar”, como a etimologia oportunamente sugere) a Pier Paolo Pasolini seja não celebrar o seu centenário. Não cunhar moedas com sua efígie. Não reduzi-lo a logo, a brand, a meme, a hype.
Talvez apenas repetir as palavras de Sofia de Mello Breyner Andresen, escritas três anos antes da morte de Pier Paolo Pasolini, e cinco após a daquele outro apóstolo da grande recusa, o Che Guevara:
Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos patetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra
De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas
Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece.
P.S. Este texto foi escrito às vésperas do centenário do nascimento de Pier Paolo Pasolini, em março de 2022.
José Eduardo Fernandes Giraudo é diplomata. Autor de Poética da memória: uma leitura de Toni Morrison (ed. UFRGS).
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