Por MARCOS NAPOLITANO*
Prefácio do livro recém-lançado de Rosane Kaminski
Nos anos 1970, o Brasil começava a esperar pelo futuro, acreditando na promessa de “Abertura” do General Ernesto Geisel, e tentando encontrar a saída do labirinto histórico vigiado por uma ditadura que parecia não ter fim, mas que estava cada vez mais questionada pelo cidadão comum. Foi neste contexto, em 1976, que foi lançado o filme Aleluia, Gretchen, de Sylvio Back, sobre a saga de uma família de imigrantes alemães no Sul do Brasil que sofria os influxos da história europeia e brasileira. A sequência final era especialmente impactante: o piquenique-carnaval nazista, simulacro de festa de integração de classes e raças, que ao mesmo tempo celebrava o nascimento do Quarto Reich nos trópicos.
A bem da verdade, os trópicos retratados em Aleluia, Gretchen não eram tão tropicais. As paisagens e fotogenias sulinas do cinema de Back nos mostravam outro Brasil, distante do sertão / morro que alimentou o imaginário crítico dos artistas de esquerda dos anos 1960 e 1970.
Recorde-se que o Sul tinha ficado fora do imaginário de brasilidade construído nos tempos do Estado Novo de Getúlio Vargas, época na qual o filme se iniciava. Vargas, ironicamente um filho exemplar da oligarquia gaúcha, impôs uma série de restrições linguísticas e culturais às comunidades alemãs e italianas do Sul – que se acirraram quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, em 1942. Na peculiar geografia ideológica e afetiva da brasilidade “nacional-popular” da direita (e mesmo da esquerda que incorporou em parte essa figuração cultural), as “forças vitais” da nação estavam situadas entre o Nordeste histórico do sertão e as paisagens costeiras, a começar pelos morros cariocas com vistas para o mar, com algum toque de resquício romântico das selvas amazônicas.
O resto era considerado, pelos ideólogos da brasilidade conservadora estadonovista, ou como vazio ou como bolsões estrangeiros em território nacional. O Estado Novo decidiu que era preciso marchar para Oeste, ocupar os “vazios” – para azar dos indígenas que ali estavam havia séculos – e nacionalizar o Sul. O estado de São Paulo, lugar dos capitães da indústria, dos oligarcas do café, dos jecas rurais e italianos operários, emprestou seu mito regional – o Bandeirante – para legitimar este movimento.
O Sul foi reinventado neste momento, tornado um “outro” de ideologia da brasilidade. A partir daí, enquanto imaginário social, os “sulistas” se dividiram entre um nativismo orgulhoso em ser diferente e a angústia crítica de não ser igual, sendo frequentemente vistos desta maneira pelos “outros” brasileiros.
Mas o Sul também era sertão, tanto quanto outros brasis. A paisagem imaginária dos filmes do Cinema Novo, essência de uma brasilidade arcaico-moderna, também foi retratada no cinema de Back, com outras lentes e gentes. Antes da reinvenção do Sul estrangeiro, abrasileirado a fórceps nos anos 1930, houve uma guerra entre sertanejos, latifundiários e militares, na qual, como no Sertão mítico de Canudos, se anunciava o fim do mundo e o começo de outro, além da geografia e da história terrenas. A Guerra dos Pelados, mais conhecida como Contestado, também foi uma das certidões de nascimento da nossa República, unindo a história do Sul à dialética do Brasil Grande Sertão onde, como disse Roberto Schwarz, o “atraso é vergonha e o progresso é tragédia”.
Estes são os dois filmes centrais na cinematografia de temática histórica de Sylvio Back – Aleluia, Gretchen e A Guerra dos Pelados – analisados por Rosane Kaminski, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Rosane Kaminski constrói um olhar analítico sofisticado que evita transformar os filmes em “representações” da história, “expressão” de um contexto ou mero “veículo das ideias do autor”. Os filmes são analisados a partir de suas mediações com a autoria e com a matéria histórica que os inspiraram, mas ao mesmo tempo tomados como obras com autonomia e com leituras que nem sempre estão limitadas às intenções e ao contexto.
A partir desta perspectiva metodológica que renovou os estudos de cinema e história no Brasil, Rosane Kaminski estabelece o diálogo crítico com a linhagem de estudos que se inicia com Ismail Xavier e que, no campo específico dos estudos históricos, tem como referências iniciais os trabalhos de Eduardo Morettin, Claudio Almeida e Alcides Ramos, feitos ao longo dos anos 1990. A esta linhagem o livro de Rosane Kaminski vem agregar novas perspectivas, objetos e olhares, fruto de uma formação transdisciplinar que passa pelos estudos visuais, audiovisuais e historiográficos.
O livro se constrói a partir de dois eixos centrais que estruturam os filmes citados: o tempo histórico “sem qualidade” ou sem redenção, e as relações de poder (e violência) que reiteram as hierarquias sociais e o imobilismo político. A partir destas categorias e suas diversas articulações e expressões no plano das narrativas fílmicas, Rosane extrai a visão de história presente na obra de Sylvio Back voltada para uma reflexão crítica sobre o processo histórico brasileiro, do Sul em particular, bem como acerca do processo histórico tout court, de caráter mais “universal”.
As pequenas e longínquas comunidades rurais do Sul do Brasil retratadas nos filmes são atravessadas por forças que lhes são externas, tanto em A Guerra dos Pelados quanto em Aleluia, Gretchen. A estrada de ferro no primeiro, símbolo do capitalismo internacional, e os nazistas, símbolo da opressão do “fascismo eterno”, trans-histórico e transnacional, DNA das ditaduras latino-americanas. A partir dessas forças, os pequenos espaços rurais se transformam em microcosmos nos quais ocorre o embate entre arcaísmo e progresso, imobilismo e mudanças sociais, poder opressor e resistência. Monta-se um teorema, percebido por Rosane: a violência impede a realização do telos histórico prometido, impedindo que a passagem do tempo, na forma do Progresso ou da Revolução, liberte o homem do obscurantismo e da opressão. Por outro lado, mesmo sem apontar caminhos ou exortar ações de solução dramática fácil, Back cria as condições ficcionais para um olhar crítico.
Basicamente, este olhar, a cargo do espectador conduzido pela narrativa dos filmes, permite identificar as permanências e as opressões de várias épocas, e desconfiar do futuro fácil e dos simulacros de ruptura anunciados pelos donos do poder. Esse olhar “trans-histórico” de Back é analisado por Rosane Kaminski a partir do “específico fílmico”, sempre em cotejo com a fortuna crítica, com as falas do diretor e com o roteiro original. Dessa maneira, o livro não apenas realiza um exercício de interpretação da obra a partir dela mesma, como nos oferece um painel da sua inserção em circuitos sociais e culturais concretos e delimitados.
Back, catarinense descendente de alemães e húngaros, que viveu e se formou em Curitiba, foi nomeado como “o cacique do Sul” por Glauber Rocha. Esta frase, aliás, pode ser interpretada a partir de muitas perspectivas, mas o que importa é que ela chancelou o seu reconhecimento pela “turma” do Cinema Novo, que no Brasil dos anos 1960 e 1970 não era pouca coisa. No cinema de Back, como nos mostra Rosane, além da vontade de fazer cinema para compreender e mudar o Brasil, coabitam muitos elementos: existencialismo, marxismo, cinema de vanguarda, literatura, jornalismo e história. Mas, ainda conforme a autora, esta mistura deve ser lida a partir de um tempero peculiar: a angústia, transformada em poética, ou seja, um modo de pensar e fazer cinema.
Esse modo de pensar e fazer cinema opera como chave de leitura da história encenada, sobretudo nos filmes em questão. Realizados entre a experiência dos Anos de Chumbo da ditadura e as primeiras esperanças de uma distensão política, ambos os filmes revelam um olhar que não apenas procura decifrar o tempo, mas também o espaço no qual uma dada experiência específica da história brasileira acontece. Decifrar o Sul profundo, igual e diferente, brasileiro e estrangeiro, pampa, serra e sertão, provinciano e universal, tem sido uma das marcas do cinema de Sylvio Back. Mas a angústia de Back também decorre das dúvidas sobre o sentido da história como experiência social e humana, sobretudo quando envolvida nas forças do arcaísmo que marcam a sociedade brasileira.
Rosane nos mostra que A Guerra dos Pelados (1971) ainda incorpora a matéria da resistência armada contra a ditadura e da expectativa de futuro, tema clássico dos anos 1960, que à época de realização do filme estava já no limiar de uma derrota política e militar definitiva. Ainda havia a sugestão, como encenada na última sequência do filme, que o cortejo popular encontraria sua terra prometida, tal como o camponês solitário de Glauber Rocha que termina Deus e o Diabo na Terra do Sol correndo em direção ao sertão-mar. Em Aleluia, Gretchen, Rosane Kaminski destaca a ironia alegórica ao final, que não realiza nenhum projeto histórico de futuro, ao mesmo tempo em que incorpora todos os arcaísmos, reiterado pela legenda “Hoje”, como se as outras épocas citadas na obra, 1937 e 1955, fossem condensadas na “atualidade”.
Para Rosane Kaminski, este olhar desencantado sobre o tempo histórico, sobretudo em Aleluia, mas que de alguma maneira já está sugerido em A Guerra dos Pelados, ao mesmo tempo em que conecta Sylvio Back com o criticismo dos anos 1960 e 1970, também revela o momento formativo do autor, calcado no existencialismo e na angústia como dado do livre-arbítrio do ser humano, cuja trajetória vai do “nada ao nada”. Neste entretempo, vivemos e sofremos a história, mais do que possamos modificá-la. A autora argumenta que a desconstrução da teleologia revolucionária é fruto deste choque dialético que marca a perspectiva do diretor. Claro, à medida que os filmes não são mera expressão coerente das suas ideias, como Rosane Kaminski faz questão de frisar, há algo de uma matéria histórica coletiva e de um imaginário do tempo como permanência que se afirmam nos filmes históricos de Back e que remetem a outras tradições e autores.
Neste ponto, eu acrescentaria, a angústia backiana dialoga com a ironia melancólica que é um dos traços mais importantes da modernidade brasileira. Mesmo o modernismo, movimento portador de um ativismo otimista diante das tarefas históricas que se colocavam para construir a nação brasileira, não esteve imune à melancolia como traço cultural. Esta melancolia decorre justamente da percepção de que o tempo está passando, algo está se perdendo, sem necessariamente afirmar o novo como libertação e promessa de felicidade no futuro.
Além disso, a melancolia também é produto da percepção de que a caminhada para o futuro impõe um preço muito alto às coletividades, produzindo novas vítimas da história. O artista melancólico percebe tudo isso, mas não tem como efetivamente comunicar-se com o “outro” que está sendo tragado, principalmente o sujeito popular, suposto herói coletivo da história. O artista melancólico e angustiado se realiza em um entretempo e em um entrelugar: sua obra. Este é um traço muito forte na vida cultural brasileira, perceptível desde Machado de Assis, um dos primeiros a perceber que a passagem do tempo repõe o arcaísmo e não muda a natureza humana que dá as batatas ao vencedor e as cascas aos vencidos. Mas também reaparece em Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Chico Buarque, entre outros.
O cinema de Back, além da angústia existencialista destacada por Rosane Kaminski, também pode ser visto como um capítulo desta melancolia do modernismo tardio brasileiro, quando a realidade da ditadura tinha demonstrado que o trem da História também pode rumar para o abismo, sob o olhar impotente das melhores consciências críticas, tal como o do liberal professor Ross ao final de Aleluia, Gretchen.
Assim, entre o imperativo crítico da resistência e do engajamento, uma das marcas da angústia existencialista e seu compromisso ético com a liberdade, e a percepção crítica do imobilismo e da derrota, Back realizou filmes essenciais para se compreender o Brasil dos anos 1970 e de hoje (2021). Como disse uma das personagens ao final do filme, também crítica àquela celebração do Quarto Reich tropical: “…muitos anos se passaram, mas ainda está fecundo o ventre de onde saiu esta gente”.
Os anos se passaram desde Aleluia, Gretchen e “essa gente”, nascida e crescida, ocupou o palco principal da cena brasileira. Rever a angústia de Back, tal como interpretada nesse livro de Rosane Kaminski, reconduz o leitor da poética à política sem sacrificar a primeira.
*Marcos Napolitano é professor de História Social na USP. Autor, entre outros livros, de Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar 1964-1985 (Intermeios, 2017).
Referência
Rosane Kaminski. Poética da angústia: cinema e história em Sylvio Back. São Paulo, Intermeios/UFPR-PPGHIS-AMENA, 2021.