Praça dos heróis

Estanislau Pamukchiev, Kaury, 2014
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Por GABRIELA BRUSCHINI GRECCA*

Comentário sobre encenação dirigida por Frank Castorf da peça teatral de Thomas Bernhard

Burgtheater, Viena, 19 de dezembro de 2024. Quase dez meses após a estreia de uma nova versão para a peça Heldenplatz (“Praça dos Heróis”), a polêmica peça de autoria de Thomas Bernhard, interpretada pelo diretor berlinense Frank Castorf, retorna ao mesmo palco – desta vez, com duração reduzida praticamente pela metade. Em 17 de fevereiro, o público do Burg defrontou-se com uma peça de um pouco mais de cinco horas, dentre vaias, assobios e alguns aplausos após o desfecho¹.

Na recepção de dezembro, em que estive presencialmente, após uma versão reduzida de aproximadamente 2h25min, houve aplausos de curta duração e o público não tardou no esvaziamento do teatro. Tudo sem muita empolgação. Ou, diria Theodor Adorno… com uma tranquilidade contemplativa?

A Heldenplatz de Thomas Bernhard

Heldenplatz (1988) foi a última peça de Thomas Bernhard, escrita e encenada poucos meses antes de sua morte. Os acontecimentos subjacentes à construção da trama nos remetem à família Schuster, de origem judia, que foi forçada a fugir da Áustria em 1938 e volta a Viena em 1968. A família de Schuster decide, então, retornar por insistência do prefeito de Viena, para que o professor universitário Josef Schuster, o patriarca da família, pudesse voltar a assumir sua cátedra.

No entanto, nem ele nem sua esposa Hedwig conseguem se readaptar. Josef, por um lado, enfrenta hostilidades de colegas universitários. Já Hedwig – também chamada de Frau Schuster ao longo da peça – que alucina constantemente a escutar os clamores e os aplausos vindos da Praça dos Herois em 1938, quando Hitler invade a Áustria e chega a Viena sob recepção calorosa de inúmeros austríacos. A praça de onde Hitler decidiu anunciar a Anschluß (a anexação da Áustria à Alemanha), e que dá o título à obra de Thomas Bernhard, fica de frente ao palácio imperial de Hofburg, de onde governavam os Habsburgos encontram-se, atualmente, a Biblioteca Nacional austríaca, a Escola de Equitação, dentre outros museus, tesouros e até o gabinete presidencial.

Os “heróis”, representados por meio de duas estátuas gigantes, uma de cada lado da praça, são homenagens de Franz Joseph I a Eugene de Savoy e ao arquiduque Karl – dois militares que, em momentos históricos diferentes, tornaram-se ícones de guerra e “salvadores da pátria” na visão dos austríacos. Na peça de Thomas Bernhard, Herr e Frau Schuster moram em um apartamento de frente para este local.

Vinte anos depois, em 1988, Josef decide, contra a vontade da esposa, retornar ao exílio em Oxford. Porém, quando todos os preparativos se concluem, Josef atira-se da janela do apartamento. Suicida-se acreditando que a Áustria continua tão nazista quanto – e pior – nos anos da Anexação.

Tudo isso é o material do passado da peça – que, no entanto, não finge ser drama burguês, autônomo e autorreferencial. Pelo contrário, o presente dos que restaram da família está em completa função do passado que não consegue (não pode e não deve) ser apagado. Boa parte dos acontecimentos é trabalhada já na cena I, através do diálogo entre duas empregadas, Frau Zittel e Herta, que escovam sapatos e passam camisas enquanto comentam o que houve com o patrão, bem como seu caráter.

Todas as cenas posteriores do texto teatral de Thomas Bernhard, que ocorrem após o enterro do professor, continuam sendo impregnadas pelas sombras deixadas pelo suicida, que sempre retorna como significante aos membros restantes a família, além de temas ligados à fuga, ao exílio e ao retorno – ao mesmo tempo em que estes, os vivos, gastam monólogos a fio (característica de toda a obra ficcional e não-ficcional de Thomas Bernhard) fazendo um retrato da Áustria como um país aniquilador, onde “você precisa ser católico/ ou nacional-socialista/ todo o resto não é tolerado”, e “imbecis da Estíria idiotas de Salzburgo/ […]/ a vida intelectual nesta cidade/ praticamente já sufocou nesse baixo nível/ […]/ a cidade de Viena não passa de uma infâmia estúpida”.

A Heldenplatz por Franz Castorf

A Heldenplatz do berlinense Franz Castorf, de 2024, não poderia desafiar mais os horizontes da peça original. De início, ao se abrirem as cortinas, a própria construção do espaço cênico faz com que o espectador sinta que veio assistir à peça errada: o palco, giratório, é feito de cenários enormes com andaimes atrás de cada uma de suas partes, para além de uma construção de quatro paredes que imita uma casa em que é possível efetivamente entrar e sair dela. Será futuramente esta a casa de Frau Schuster; contudo, todo o resto da composição do palco faz menção aos… americanos.

A parte do cenário que fica mais tempo de frente para nós, espectadores, recria um quarteirão de frente à estação Borough Hall Station, no Brooklyn. Há um anúncio da Coca-Cola bem perto. Do lado esquerdo, uma representação enorme de uma barra de vestido com pernas de cabeça para baixo, possivelmente Marilyn Monroe. Do lado direito, a imagem icônica de Al Capone com um charuto representado em meio à bandeira estadunidense. Em alguns momentos, quando o palco gira um pouco mais à esquerda, é possível ver pequenos cartazes de 1939 convocando “verdadeiros patriotas americanos” para um comício em massa no Madison Square Garden, também em Nova Iorque.

Por fim, um letreiro, que nunca fica de frente para o público em nenhuma das rotações do palco, que não chega a ser completa, é possível ler de trás para frente a pergunta “Umbringen sollte wir Ihnen?” – um sintomático desvio linguístico de “Umbringen sollte man sie?” (deveríamos matá-la(s)/-los(s)?). A iluminação é pouca e pontual; a atmosfera é bastante escura e, em alguns momentos, enevoada.

A única coisa que não muda é a imagem gigante de fundo, atrás desses elementos giratórios todos: uma fotografia gigantesca de uma massa entusiasmada em um comício nazista, fazendo a saudação.

No primeiro momento da peça, o já mencionado ator Marcel Haupermann vem à frente do palco, olha para todos e grita: “Boo!” Três vezes Haupermann direciona esta vaia ao público, em crescendo. Dá as boas-vindas ao público de uma maneira enigmática, e depois mais três vaias de furar os tímpanos. O público vai às gargalhadas, como se o recurso do ator anunciasse o início de uma trama cômica. Ironicamente, este é justamente o instante em que o ator pergunta à plateia se “é quando o auditório está no escuro o momento em que, em Viena, o ‘deve-ser’ se transforma?” (“Wenn der Zuschauerraum dunkel ist, soll das der Moment sein, in Wien sich das Muss sein verändert?”). Inclusive, naquele dia, durante a encenação, em diversos momentos, risos nervosos e/ou fora de contexto foram frequentes nos momentos mais confrontadores da peça, para além das situações em que o projeto claro era o de usar o humor.

Que personagem Haupermann representa neste início? E o ator mais velho (Branko Samarovski) que passa pelo fundo jogando conversa fora baixinho em um telefone nos primeiros quinze a vinte minutos da peça? E a senhora decadente (Inge Maux) que vem lhes somar? Falha-se miseravelmente ao tentar induzir uma correlação imediata entre o trio (bem como de outros três atores que aparecerão depois) e os personagens do texto dramático de Thomas Bernhard.

Soma-se, assim, à desidentificação do cenário a não-rastreabilidade de quem os atores ali em cena efetivamente estão representando. Só depois descobrimos, paulatinamente, que cada um dos seis atores representa múltiplos personagens, revezando os papeis a cada cena – cujas mudanças são principalmente marcadas pelas rotações de cenário no palco. Apenas posteriormente os atores irão reproduzir a cena do jantar – que, no texto de origem, é a final – quando todos estão à mesa e, no fim, com um áudio de fundo reproduzindo os berros da multidão na Praça dos Heróis, Frau Schuster tomba abruptamente a cabeça na mesa e a peça de Bernhard se encerra.

Na versão de Frank Castorf, no entanto, para além de ser uma cena intermediária, mesmo o modo de mostrá-la é completamente inusitado: os atores entram dentro da já mencionada casa erigida no meio palco e, dentro dela, os atores começam a ser filmados por cinegrafistas em tempo real. O espectador não consegue enxergar nada do que ocorre lá dentro, ficando o restante do palco menos apagado e totalmente vazio de movimentação. No lugar, uma grande tela desce do alto do palco e transmite, ao vivo, as cenas do interior do local – usando técnicas cinematográficas, como os closes nas expressões dos atores.

Outro momento em que os personagens originais de Heldenplatz aparecem está mais ao final da peça, mas mesmo aí o diretor recorre ao insólito: traz-nos um Josef Schuster enrolado em bandagens e vindo do mundo dos mortos para nos falar sobre ter desistido de protestar – frase dita, no original, por seu irmão, Robert, no Volksgarten (“Já protestei tanto na minha vida/ e não serviu para coisa alguma”). Um pouco antes, é a atriz Marie-Louise Stockinger que também nos conecta um pouco mais ao texto de partida: interpretando a filha dos Schusters, Anna, ouvimos as linhas mais memoráveis de Heldenplatz, que nos dizem que “há hoje [1988] mais nazistas em Viena/ que em 1938/ você vai ver/ isso vai acabar mal/ nem precisa ser muito/ inteligente para saber/ eles vão voltar a sair/ de todos os buracos/ que ficaram tapados por quarenta anos/ basta conversar com qualquer pessoa/ que em pouco tempo se percebe/ que ela é nazista”.

À parte dessas situações precisas e reconhecíveis, o restante da Heldenplatz de Castorp soma-se a diversos outros textos e referências. Recordo pelo menos uma canção em iídiche interpretada por Inge Maux, no momento específico em que encarna (também) Frau Schuster. Em entrevista contida em uma brochura que os espectadores podem comprar logo após a entrada noBurgtheater, Frank Castorf revela o uso das intertextualidades – um recurso que, aliás, é característico de suas outras adaptações teatrais.

Assim, para além de Heldenplatz, o espectador também ouve na boca dos personagens excertos de um relato de viagem do jovem John F. Kennedy, que esteve em Munique em 1937 e ficou fascinado por Hitler e pelos alemães – por sua “ordem” e por serem “bons demais” naquilo que estavam fazendo². Para Castorf, “Kennedy viajava pela Alemanha com curiosidade turística e desejo de diversão, admirando a limpeza das pequenas cidades medievais ao longo do Reno. Havia também uma dose de etno-pop, com visões estereotipadas sobre diferentes povos e traços de uma educação latentemente antissemita que ele aparentemente havia recebido”.

Há, também outros textos constantemente interseccionados à peça escritos pelo estadunidense Thomas Wolfe (1900-1938), que dedicou sua obra ficcional e autobiográfica, além da crítica ao antissemitismo e à ascensão dos nazistas, à vida cultural e multiétnica que caracterizou a Nova Iorque dos anos de 1930. Os contos usados são “Only the Dead Know Brooklyn”, “The Proud Brother” e “Dark in the Forest, Strange as Time” – todos publicados na coletânea From Death to Morning (1935). Wolfe, inclusive, tinha complexos com o fato de ser descendente dos alemães, principalmente após a ascensão do Nazismo, o que em muito dialoga com as inquietações de Thomas Bernhard com relação à sua “origem”.

Seus escritos são bastante recorrentes na primeira parte da peça, em que os atores Haupermann, Saramovski e Maux estão diante da mencionada estação Borough Hall e, em um dado momento, pessoas do apoio técnico da peça vêm à frente do palco trazendo um vagão feito de papelão e tecido, dentro do qual os três atores entram e simulam serem três judeus em fuga de Viena a Nova Iorque por meio desse vagão surrealista, ao passo em que conversam sobre as dificuldades atravessadas, rasgam os tecidos e zombam sobre as possibilidades de um plano eficaz para escaparem da morte.

No entanto, Thomas Wolfe também foi escolha de Franz Castorf por dois outros motivos: por aquilo em que é diametralmente oposto a Thomas Bernhard – o primeiro, mais difuso e indireto em sua expressão de ideias do que este último, o perturbador-mor – e por vários de seus escritos tocarem na ideia da impossibilidade de retorno do exilado, algo vivenciado por Josef Schuster de 1968 até o suicídio em 1988 e que não é diretamente visto por nós, espectadores, na peça original. Com isso, os sentidos de Heldenplatz ampliam os seus horizontes e se ramificam em direções antes inimagináveis.

Mas um setor da crítica de língua alemã viu nessas idiossincrasias intertextuais de Franz Castorf um problema: a peça de Castorf teria se rendido a um emaranhamento excessivo quanto às questões americanas, fazendo do original uma lembrança, e retomado pouco de Áustria. Talvez, é possível especular, boa parte dos apreciadores de Heldenplatz de hoje se acostumou a lê-la em completa aderência à polêmica que permeou seu contexto de produção e encenação: a peça havia sido uma encomenda solicitada a Thomas Bernhard pelo então diretor do Burgtheater, Claus Peymann, a fim de celebrar os 100 anos do Burg em 1988 – coincidindo com outro marco histórico: a memória dos 50 anos da Anexação.

Josef com “ph”?

Conforme relata Alexandre Flory no prefácio à mais recente tradução de Heldenplatz por Christine Röhrig (2020, editora Temporal), a expectativa dos eventos oficiais que aconteciam em Viena naquele ano de 1988 era de reforçar o imaginário cultural da Áustria como “a primeira vítima do nazismo, numa anexação forçada”. Além disso, Flory acentua que “[o]s eventos procuravam, em especial, esquecer o escândalo da eleição à presidência de Kurt Walheim dois anos antes, em 1986” – presidente eleito ainda que tivesse ficado provado sua participação na SS, a organização paramilitar nazista.

Contra as omissões e os tapa-buracos, Thomas Bernhard coloca na boca justamente de uma família judia – os Schusters – avisos como “mas só porque o senhor uma vez comeu bem/ em um restaurante/ ou tomou um bom café numa cafeteria/ o senhor não deve esquecer/ que se encontra no mais socialmente perigoso/ de todos os Estados europeus/ […]/ onde os direitos humanos são espezinhados/ […]/ Para pessoas como nós o cemitério sempre foi/ a única saída”. Na adaptação de Franz Castorf, inclusive, os elementos ligados ao judaísmo são até mais exacerbados: do mencionado uso do iídiche e algumas músicas a parte do figurino.

O escândalo, como relata Alexandre Flory, acompanhou a peça antes, durante e depois de sua produção. Em outro texto, um artigo de 2010 sobre a “provocação formal” em Heldenplatz, o pesquisador de longa data da produção dramatúrgica e romanesca de Thomas Bernhard resume alguns momentos que dão o tom do ocorrido: “A crítica teatral Sigrid Löffler consegue trechos da peça, vazados em meio aos ensaios, e os publica na revista Profil – o que, segundo muitos, teria ocorrido com a anuência implícita de Bernhard e Peyman – em agosto e setembro de 1988, dois meses antes da estreia, o que instaura um escândalo pelas invectivas dos personagens contra a Áustria e os austríacos […] Jornais como o Neue Kronen Zeitung e políticos como o vice-chanceler Alois Mock, além do ex-chanceler Bruno Kreisky, posicionam-se contra a montagem da peça, enquanto a ministra da educação Hilde Hawlicek e autores do porte de Elfriede Jelinek, Michael Scharang e Peter Turrini defendem a liberdade de expressão. […] Surgem campanhas de difamação contra Peyman e Bernhard que, de certa forma, fazem com que o texto da peça seja atualizado, por assim dizer, no palco real da opinião pública austríaca, antes mesmo da encenação, conforme disse HÖLLER (2001: 7): “De uma hora para outra havia esforços para o boicote da apresentação e se exigia a expulsão do autor e do diretor, como se o teatro tivesse conseguido provar a provocante asserção da peça, de que os anos de 1938 e 1988 seriam intercambiáveis”.

Nesse sentido, aliás, é como se a repetição do “Boo!” por Marcel Haupermann viesse comunicar que, de alguma forma, a adaptação continua de onde o original parou – e não pela diegese em si…

Para alguns dos atuais admiradores de Thomas Bernhard, ou para os críticos que possuem algum respeito à sua obra, parece, assim, que a visão sobre a última peça teatral do autor austríaco não consegue se emancipar de um certo “folclore” criado em torno da recepção. O que também não deixa de provocar uma reflexão: se a produção literária de Bernhard tem em vista justamente colocar na boca de seus personagens (e narradores, no caso do romance) as assertivas mais incômodas possíveis, o que significa essa deglutição de suas palavras a ponto de se tornarem um fetiche? De “sujador de ninhos” (Nestbeschmutzer) a objeto do gozo imposto?

Em 1988, era desejável falar sobre a Áustria como primeira vítima de Hitler para abafar a eleição de Kurt Waldheim. Em, 2024, estaríamos em uma nova lógica de querer falar sobre o finado Kurt Waldheim para abafar que a extrema direita venceu as eleições parlamentares gerais na Áustria pela primeira vez desde a Segunda Guerra – com Herbert Kickl na liderança do “Partido da Liberdade da Áustria” (FPÖ), fundado justamente… por ex-membros da SS³? E ganhando ascensão a partir da forte propaganda anti-imigração4? Me parece haver a persistência de um sintoma coletivo: em poucas palavras, a recusa por um olhar em paralaxe. Em prol de uma tranquilidade contemplativa dos agora fanáticos por Thomas Bernhard e pelas fantasias que buscam cooptar às custas (e, com certeza, muito à revelia) do autor.

Uma última provocação – sem entrar no juízo do valor da peça, mas nos enquadramentos5 relativos a Franz Castorf ter “se perdido” em um “excesso” de referências americanas, “fugindo” do texto original. À parte de uma genérica afirmativa que poderia ser dita a respeito da sombra do retorno predador do trumpismo nos últimos meses ou sobre a expansão do tema do antissemitismo como algo que não diz respeito a um só país ou a um só espaço, mas a questão é ainda mais concreta no que se parece (até porque muito da bagunça entre União Europeia, antissemitismo europeu e genocídio palestino foi bastante agitada e entusiasmada nos úlimos anos por outro Josef, o com “ph”, Biden).

O título do artigo de Matthew Karnitsching ao Politico da União Europeia é auto-explicativo: How Hitler’s homeland became Israel’s European BFF⁶. Novamente, uma visão um pouco mais paralática faria bem aos austríacos, que realmente possuem problemas severos de entendimento com a palavra “reparação” (não que nós, brasileiros, pudéssemos ensiná-los alguma coisa nesse quesito…), posto que, em pouco tempo, passaram do discurso de “desaprovação ao Hamas” à retirada de toda a ajuda humanitária que exercia na Faixa de Gaza (retornando alguns meses depois).

Na Assembleia Geral de 2023, EUA e Áustria votaram lado a lado, com somente mais oito países, contra a aprovação do cessar-fogo na Faixa de Gaza, surpreendendo, por diversas razões, até a já quase septuagenária Declaração de Neutralidade militar permanente – condição para que a ocupação dos Aliados pudesse desocupar o país em 1955 e a segunda República da Áustria retornasse. A meu ver, as dificuldades com a recepção menos fazem do que denunciam a dificuldade dos europeus em lidar com a representação multifacetada das crises que caracterizam o mundo contemporâneo – uma das razões pelas quais, possivelmente, estão levando um baile da extrema direita.

(No dia seguinte, abro um jornal menor vienense, gratuito em todas as estações de trem e metrô: ¾ da página são ocupados por uma fada pequena, de feições doces, jogando uns pontinhos de glitter na mensagem central: “graças a você, leitor, o ano de 2024 foi mágico”! [“Dank Ihnen war 2024 zauberhaft”]).

Logo, a releitura de Franz Castorf no mínimo colabora para despertar reflexões sobre toda essa história que começa na Heldenplatz e termina em Jerusalém: os danos pela não-reparação do nazismo permanecem, e é na posição confusa dentro do capitalismo contemporâneo e no flerte com a direita populista radical que as avarias se espraiam. Thomas Bernhard, que, no fundo, sempre falou disso sem nem haver nomeação para tal, sai ainda mais agigantado.

(Aos interessados, no Burg, a próxima seção da Heldenplatz de Frank Castorf está prevista para o dia 06 de fevereiro, e, segundo o site, voltará a ser encenada a versão de cinco horas – com intervalo).

*Gabriela Bruschini Grecca é professora do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Minas Gerais – unidade Divinópolis.

Notas


¹Resenha do dia seguinte à estreia, por Walter Mayr: https://www.spiegel.de/kultur/frank-castorf-thomas-bernhard-heldenplatz-was-diese-regisseure-den-schauspielern-antun-kritik-a-b293171e-0ed5-4993-9662-bbeec13f9d1d.

²As anotações desta visita estão no livro Unter Deutschen: Reisetagebücher und Briefe 1937-1945, organizado por Oliver Lubrich em 2013. Há algum comentário sobre algumas partes da obra feito por Marc von Lüpke-Schwarz ao Deutsche Welle, com tradução para o português acessível em https://www.dw.com/pt-br/livro-revela-rela%C3%A7%C3%A3o-de-kennedy-com-a-alemanha/a-16910118.

³Alguns dados em língua portuguesa: https://www.dw.com/pt-br/fp%C3%B6-a-turbulenta-hist%C3%B3ria-de-um-partido-de-extrema-direita/a-48797532.

4 Basta ver o pacote de medidas anti-imigração no site do próprio partido: https://www.fpoe.at/asylstopp-jetzt.
5A enxurrada de repercussões de desprezo à versão de cinco horas da Heldenplatz de Castorf foram sintetizadas pela atriz e escritora Gabi Hift ao Nachtkritik: https://nachtkritik.de/index.php?option=com_content&view=article&id=23466:heldenplatz-burgtheater-wien-frank-castorf-inszeniert-thomas-bernhards-skandaltraechtiges-stueck-in-hochform&catid=80.
⁶https://www.politico.eu/article/adolf-hitler-homeland-austria-became-israel-europe-bff-palestine-conflict/


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