Quando a medicina e a psicologia entram na escola

Imaggem: Anna Shvets
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Por RÔMULO CAIRES*

A explosão de diagnósticos médicos e psicológicos nas escolas não parecem representar qualquer espécie de avanço na perspectiva emancipatória

1.

Outro dia, conversava com um amigo sobre a atual explosão de diagnósticos psiquiátricos e psicológicos e como esse fenômeno tem influenciado e interferido na dinâmica da vida escolar. Aos olhos de meu interlocutor, a entrada em cena do diagnóstico parecia um avanço. Ele lembrava de seus tempos de escola, dos colegas que não eram lá “muito normais” e que poderiam se beneficiar dos “avanços” ocorridos na área da saúde.

Uma boa lembrança que poderíamos trazer ao meu amigo é que a medicina e a psicologia não começaram a participar da vida escolar apenas recentemente. Na realidade, essa relação é um pouco mais antiga e data principalmente da virada do século XIX ao século XX. Nesse período era grande a tentação naturalista de chamar de doença todo processo que não seguisse um determinado rumo dentro da ordem, toda transformação que não aparecesse como orgânica e linear. Poderiam então ser classificados de doentes todos aqueles que não eram “bem nascidos”.

Eram chamados de doença, por exemplo, os grandes movimentos de massa que assombravam o mundo das classes proprietárias, seja a Revolução Haitiana, seja os levantes da classe trabalhadora em solo europeu. Um famoso psicólogo francês, Gustave Le Bon, escrevia sobre as predisposições insanas das lutas coletivas organizadas. Outro francês, Alfred Binet, inventava testes para medir a inteligência e poder separar os “naturalmente dotados” daqueles que não poderiam ter uma “carreira aberta ao talento”.

Não é outro o chão histórico em que aparece o conhecido psiquiatra italiano, Cesare Lombroso, buscando estabelecer “cientificamente” os estigmas que predisporiam ao crime. Em Turim, cidade do norte italiano industrializado, avistava os habitantes do Sul, pobre e agrário, como povos inferiores, dotados de características mais “bárbaras”. Cunhou o conceito de atavismo para apontar uma boa dose de “animalidade” que existiria nesses “criminosos congênitos” e que poderia vir à tona em qualquer momento.

Do outro lado do mundo, os psicólogos norte-americanos viraram o século em busca de ampliar o escopo das pesquisas e experimentações de Alfred Binet. Foi principalmente nessa sociedade que floresceu abundantemente os instrumentos de “psicometria”, os testes psicológicos para mensurar de forma quantitativa determinados caracteres, aptidões e comportamentos. No momento em que os países centrais solidificavam os seus sistemas nacionais de ensino, crescia a influência da psicologia, da criminologia, da psiquiatria e dos demais ramos da medicina nos rumos do pensamento e da prática pedagógica.

2.

Tais elementos chegam num país como o Brasil enquanto verdadeiras panaceias que supririam o atraso em relação aos países mais desenvolvidos e também auxiliariam na regeneração e constituição moral de seu povo. Vem também da psiquiatria a ideia de “degeneração”, qualificativo muito utilizado para caracterizar os traços raciais que seriam responsáveis pela incivilidade do povo brasileiro. As teorias geradas no auge do racismo científico aportavam em terras brasileiras com o intuito de resolver nossos múltiplos problemas, inclusive nosso grande “dilema” pedagógico.

O Brasil, na mesma virada do século XIX ao XX, padecia de enormes taxas de analfabetismo. Foi um médico, o Miguel Couto, que chamou tal situação de verdadeira “doença” do povo brasileiro. Os primeiros médicos sanitaristas, subindo no ombro das observações de Euclides da Cunha, denunciavam as mazelas dos sertões brasileiros. Monteiro Lobato, outro importante escritor da época, já tinha criado sua figura do Jeca Tatu.

Se antes de conhecer o trabalho dos médicos sanitaristas, ele já achava que o problema do Jeca era a falta de terra própria, a certa altura diz que o mesmo sofria, na verdade, de lombrigas. Dos escritos de Monteiro Lobato, sairá a aliança entre o Jeca Tatu e o Biotônico Fontoura, medicamento destinado a tratar os males do personagem. Foram produzidos mais de 30 milhões de exemplares do livro que propõe tal correlação, escritos os quais foram absorvidos por inúmeras famílias interessadas no bom desenvolvimento de seus filhos.

É interessante observar esse desnível entre a pretensão de importar o que há de mais “científico” na produção europeia e a dura realidade brasileira, advinda de longo passado colonial e escravocrata. Se o país possuía níveis alarmantes de analfabetismo, se seu povo era tão mal constituído, a Medicina e a Psicologia trariam os verdadeiros remédios. Não à toa, o primeiro ministério da Educação, no governo de Getúlio Vargas, foi também ministério da Saúde. Saúde e educação vinham juntas nos primeiros passos da formação do Estado burguês no Brasil. Não se falava em reforma agrária, não se discutia as raízes verdadeiras do “atraso” brasileiro, sequer se buscava compreender profundamente a estrutura nacional de ensino, mas jogava-se na dita ciência neutra todas as esperanças de regeneração nacional.

Findado os dias do racismo científico mais escrachado com a vitória sobre a besta nazifascista, a relação entre saúde e escolarização tomou novo rumo. A psicologia continuou postulada como guia máximo da prática pedagógica pelos principais nomes da “Escola Nova”, amplo processo de renovação da Educação Brasileira. Essa psicologia, entretanto, já não era mais a mesma do período anterior. Entrava em cena os motivos ambientais, as chamadas “deficiências culturais”, os “móveis inconscientes”, mas o que se manteve e será a tônica constante até os dias atuais é a ideia de que a saúde vem para sanar o que há de falho na educação.

3.

Com a produção do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) essa ideia se cristalizou com maior força. De sua primeira versão até a versão mais recente (DSM 5) já foram incluídos mais de 300 novos diagnósticos. Os que mais chegaram às escolas foram os diagnósticos de dislexia e mais atualmente o de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Dificilmente alguma pessoa passa pela escola hoje sem ao menos ouvir falar dessa entidade psiquiátrica. Mais do que ouvir falar, muitas crianças são diagnosticadas com TDAH e fazem uso da medicação Ritalina, nome comercial do metilfenidato, o qual a venda atinge cifras alarmantes no Brasil.

Se nas escolas particulares e entre aqueles com melhores condições materiais o diagnóstico pode servir a práticas pedagógicas mais individualizantes, não podemos dizer que a experiência nas escolas públicas é a mesma. Observar essa diferença joga luz na própria dinâmica e estrutura do fenômeno da medicalização da educação, ou seja, a transposição de problemas educacionais para a gramática da medicina e da saúde, transformando problemas inseridos na totalidade social em questões médicas.

A medicalização não se resume à maior venda de medicamentos ou sequer maior oferta de serviços médicos e psicológicos. A medicalização opera com a criação de um determinado campo de “normalidade” que passa a direcionar as ações políticas, mais especificamente as ações de saúde.

No mundo do capital, no qual há vigência de uma brutal divisão social e racial do trabalho, a escola pode ser e tem sido, na maioria dos contextos, veículo de reprodução da ideologia da sociedade burguesa. Em países periféricos, nos quais parte da população sequer terá acesso ao mundo do emprego formal, parte dessa função da escola sempre esteve deslocada em relação aos modelos europeus.

Estudando a história brasileira, vemos como a necessidade de controle desses segmentos “excluídos” passou muito pela imposição de campos de normalidade produzidos pela medicina e pela psicologia, que ao adentrarem o campo jurídico-político, servem de arma de dominação e repressão da burguesia sobre a classe trabalhadora e a população pobre.

Buscar os elementos que predispõem à criminalidade e que atendam ao percurso “natural” de dominação sempre foi uma das funções principais da medicalização da educação no Brasil. Além de dar corpo às medidas do aparato repressor, a medicalização também falseia a real materialidade do chamado “atraso brasileiro”. Ao invés de procurarmos os móveis da situação educacional na estrutura da sociedade de classes brasileiras mediante observação da real situação das escolas brasileiras, a medicalização faz parecer que é apenas um problema sanitário o que é muito mais um problema econômico-político, que só pode ser resolvido pela transformação da totalidade social a partir das mediações do poder político.

4.

Voltando aos questionamentos que iniciaram nosso texto, poderíamos agora, com mais contundência, dizer que a atual explosão de diagnósticos médicos e psicológicos nas escolas não parecem representar qualquer espécie de avanço na perspectiva emancipatória. Principalmente nas escolas públicas, os diagnósticos têm servido como produtores de estigmas e armas de exclusão. O diagnosticado faz parte de uma espécie de profecia autorrealizada, na qual o diagnóstico médico serve para justificar o fracasso escolar planejado pelas classes dominantes brasileiras.

Mais do que produzir diagnósticos de saúde, que podem ser úteis em situações clínicas específicas, as verdadeiras forças emancipatórias devem se preocupar com as especificidades da escola. O que faz uma boa escola são bons psicólogos e bons médicos? Não seria essa explicação justamente o sepultamento da especificidade da escola? Se nos basearmos na história brasileira, no mínimo deveríamos duvidar dessa aliança que já uniu eugenistas e higienistas e muitos dos considerados patronos da educação brasileira.

*Rômulo Caires é médico de saúde da família e mestrando em Educação na UFBA.


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