Por ANDRÉ QUEIROZ
Considerações sobre a peça teatral encenada pela Companhia de Dramaturgos Viciados
Para Adriana Maia e os atuadores da Cia Viciados Dramaturgos.
Para Conceição Evaristo.

O palco é pouco extenso para os percursos de Natalina – com a urgência das horas marcada no torneio das pernas, ela desce em pés descalços as escadas laterais e dispara afoita desembestada em meio às gentes. Será é tarde, talvez ela se pergunte? De nosso púlpito acanhado, ousamos saber que para Natalina sempre será tarde, sempre lhe foi tarde, sempre será de brusco, aos saltos, ela cresce de golpe em golpe, como que a passos largos pulando sobre obstáculos e vertigens.
Nunca lhe sobraram horas nos carretéis da promissão. Nunca lhe era do coser em calmaria o fazimento dos dias. Era sempre para ontem o seu quinhão de tarefas cotidianas, o lastro de suas obrigações de pouca monta.
Natalina tem as costas atravessadas pelo acumulado de tanto esforço, os joelhos lhe gritam os rejuntes e o desgaste. Mas ela corre, a atriz que lhe empresta o corpo ela corre entre as gentes que testemunhamos, quietos, cheios de olhos e de escuta.
Talvez Natalina se pergunte: Será é tempo – como se se pusesse a tomar pela cauda um cometa que passa rasteiro – queria ela quer uma aventura em folga, a aposta benfazeja, será é hora, Natalina estica as mãos, ela corre sem tropeços, sem esbarrões, talvez tenha outro filho ali no meio das pernas, talvez ele escorra lambuzado de placenta, talvez ele lhe será fugidio, será ele vinga por debaixo dos panos do figurino?
Natalina talvez aguente outra fornada, os caldos quentes na casa de purgar, ela tem calos espalmados, a pele ressequida de tanta conduta, de tanta andança, dia trás dia, noite trás noite, Natalina vem dos longes do engenho, dormira na cama de pregos de um eito desfazido, ela se esbaldara de carne de Ceará, em vestidos de chita, nos dias feriados, ela amara o senhorio que lhe derribara como esticação de ofícios, ela fora prenda trocada em jura, ela fora moeda apostada em feira, sete contos e uma sela.
Natalina se deitara cedo fazendo escorrer a infância pelo caldo das pernas, ela era inocente, se banhara no rio pra limpar os grudes do silêncio, Natalina se encheia de passado, o passado não lhe passa lírico uma valsa ao bailado, Natalina se esbalda nas larguezas do roçado, ela lambuza a boca de melado, ela pisa descalça no chão batido da casa, dizer que é casa aquilo, dizer que é trabalho aquilo, dizer que é vida?
Natalina carrega espécie mal ajambrada de tufão nos quadris, uma protuberância que se espalha para os lados, um quisto uma deformação, uma desgraça outra desgraça que se anuncia pelos chutes na altura do ventre, um cancro postergado, uma criança breve como uma chaga natimorta, Natalina corre para fora do palco, a atriz lhe serve de artífice-cavalo, a atriz lhe serve de colo-que-embala.
Natalina não aguenta os limites do tablado, ela não suporta as luzes poucas de uma ribalta que não promete milagres e que não lhe contém o avanço, e ela chispa, ela chispa, ela desce do palco, ela está embutida de uma vida em chapa quente, Natalina precisaria gritar, lhe era e lhe seria urgente gritar em voz alta e estridente, ela precisaria de um feixe de palavras de corte, afiadas, pontiagudas, palavras com veneno nas pontas de cada verbo, e é tão pequeno o teatro para as cruzes de uma vida natalina, de uma vida severina, de uma vida jucundina[i] – ela escapa, elas todas escapam sempre, Natalina está escapando ainda.
Natalina passa de mão em mão, os atuadores da Companhia Viciados Dramaturgos acolhem seus humores distintos, eles lhes são esteio, eles são como uma rede de cuidados, , eles são rendeiros em pontos de cruzes, eles são locomotivas no que empurram a armação de alumínio, eles encarnam os ventos que atravessam os sertões de Guimarães Rosa, suas Minas de altos e baixos.
Eles rebatem silenciosos os jagunços de fazer acertos de conta, jagunços que se fazem ouvir, espalhados em outros ofícios e máscaras, no que os atores da Companhia sopram cânticos de conformação, eles Riobaldam por caminhos que Natalina é refugiada, tanta picada para a deserção, tanta casamata para esconderijo, certa hora, hora tão larga que escapole para fora do tempo, nas caladas da noite veloz, ela cresce num encanto, como se se esticasse para cima ela cresce em milagres, será ela se faz ave de arribação?

Noutra feita, Natalina, ela se espalha nos cabelos de fogo e no rosto expressivo de uma atriz, outra atriz, um ator, outro ator – eles são carroceis brincantes em um parque de diversão, Natalina tem tantos nomes guardados para uso contínuo nos conformes da pressa, ela passa de mão em mão como nos jogos da infância sustada, alguns nomes não cabem na mala de viandante, ela é tropeira, ela está encarregada de fardos pesadumes, na certa que atravessou, outrora, os alagados da Amazônia, a farra dos insetos, a malária cuspida em febre terçã, a solidão milenária da floresta – Natalina deve ter subido a contrafluxo os rios lamacentos, na certa que Natalina deve ter se encontrado fincando o terçado em troncos seringueiros.
Natalina foi soldada da borracha, tentou vida entre peões e capatazes – passageira, passageira, entre chuvas e estios, outro fardo à travessia, que nome terá esse caboclo?
Natalina precisa sacar do embornal um repertório de gestos, um aramado de espinhos, um nome para fazer caber na criança que não dura, ela passa avante a criança, ela entrega a criança, ela a catapulta a destinações outras…
E Natalina corre entre as gentes, ela sobe e desce ladeira, ela vara desbragada às hostes áridas da Seara Vermelha, será se perde nalguma paragem de trem onde as mulheres precipitam comércios amoldados à casa de lava das pernas, a folgança dos entres, um hiato de caprichos azeitados ao sabor da paga? Será Natalina se ajeita aos apetrechos da rua da Lama, será se lambuza de maquiagens baratas e rasteiras, será que Natalina se compreende no azedume de suores banhados de movimentos de arrombar o resguardo dos órgãos?
Ou será que não, ou será que nada, será que Natalina faz a curva, faz a gira, um rodopio capoeira, ela segue sertão a dentro em direção a Pedra Bonita, um rifle na cinta, o livro sagrado na mão, Natalina vai ter encontro com beato que prega a palavra do fim, o derradeiro precipitado das almas na viração do mundo de deus pai tão vilipendiado pela maldade dos homens, será que Natalina segue o beato nas suas promessas de outro tempo, será que Natalina se enfurna no cangaço, será ela aprende os movimentos de Corisco, as pernas lépidas, o tronco vergando para um lado e para o outro, um painel paisagem, o cenário retorcido em rechaços e clandestinidade, um mar de água tomando para si o que era a caatinga de vegetação rasteira…
Natalinas são tantas, têm um colar de apelidos e alcunhas que lhes cabe como luva e pincel. Natalinas são aquarelas com diversos matizes, nuançadas na paleta das cores que trespassa esse nosso território continente, Natalinas sustenta olores antiquíssimos que inda agora nos servem às virações do tempo escandido.
É de exílio em exílio que Natalina faz a engorda, quantos filhos terá Natalina, ainda, ainda, quantos filhos testarão a integridade de suas paredes íntimas? e ela tomará chá de soltura, e ela enche e esvazia o ventre como se fora a um fole canção, uma desgraça outra desgraça sempre uma desgraça, um filho se equilibra aí, a esta corda desnorteada que inda lhe enforca as juntas, que ainda lhe perpassa os órgãos, que ainda se lhe estica até o arredondado do pescoço onde pulula a vida que lhe cabe que lhe coube.
Natalina desce o palco, os atores da Companhia Dramaturgos Viciados descem com ela, ela corre, ela salta e sobe os degraus da sorte, ela insiste, ela resiste, ela passa entre as escadarias de uma Penha todos os dias, ela se põe de joelhos em paga, uma vela para o santo, outra para o estafeta, uma palavra saída da boca lhe é um sopro, outro sopro, Natalina…
*André Queiroz, escritor e cineasta, é professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros de Cinema e luta de classes na América Latina (Insular).
Referência
Quantos filhos Natalina teve?
Companhia de Dramaturgos Viciados
Direção: Adriana Maia.
Texto: Conceição Evaristo.
Direção Musical: Zé Motta.
Cenografia: Solange de Assis Tavares.
Elenco: Hélio Amaral, João Vitor, Marina Isabel e Nay Rezende.
Nota
[i] Cf. https://anovademocracia.com.br/materias-impressas/seara-vermelha-resenha-de-uma-saga-camponesa/
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