Quem vai pagar a conta?

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Fábio Konder Comparato*

Torna-se indispensável começar a atuar no sistema tributário, que se funda muito mais nos impostos sobre o consumo – cujo montante é igual para todos, ricos ou pobres – do que no imposto de renda.

Ninguém mais duvida que a humanidade sofre no presente uma das maiores catástrofes dos últimos cem anos.Os seus efeitos, em todos os campos da vida humana, são ainda incomensuráveis porque, de um lado, não há uma previsão segura da duração da hecatombe e, de outro, porque até hoje não chegamos a construir instituições de âmbito planetário, nem mesmo, para atuar eficazmente no terreno sanitário. A instituição internacional que chegou mais perto de fazê-lo foi a Organização Mundial da Saúde, mas ela se limita fazer recomendações, as quais nem sempre – como se está a ver no Brasil – são levadas a sério.

Importa, pois, que cada país estabeleça planos de socorro à sua própria população, a começar pela competente utilização dos recursos econômicos disponíveis, sob a supervisão das autoridades governamentais. Com base nessas premissas, concentremos nossa atenção sobre o Brasil, começando por deixar de lado a ridícula ideia de que o enfrentamento da pandemia do coronavírus pode ser feito por meio de doações privadas.

Tratando-se de uma moléstia que atinge o povo como um todo, e precipuamente a população indigente, é indispensável ter em mente, em primeiro lugar, que os recursos a serem utilizados no seu combate, qualquer que seja a sua origem, são públicos, no original sentido do vocábulo na língua latina; ou seja, pertencem ao povo brasileiro. Além disso, não podemos jamais esquecer que o Brasil é um dos países de maior desigualdade social do mundo.

Para romper essa situação de extrema desigualdade social, parece-me indispensável começar a atuar no sistema tributário, que se funda muito mais nos impostos sobre o consumo – cujo montante é igual para todos, ricos ou pobres – do que no imposto de renda. Para corrigir essa injustiça social, podemos nos servir da via legislativa, sem qualquer mudança no texto constitucional, como exemplifico a seguir.

Em nosso país, a alíquota máxima do imposto de renda das pessoas físicas é de 27,5 %. Ocupamos com isto a 89ª posição na lista mundial de países, arrolados segundo o valor dessa alíquota. À nossa frente estão 16 países europeus, sendo que em seis deles a alíquota pode subir a mais de 50%. Estamos também atrás de oito países latino-americanos. Vale ainda notar que nos Estados Unidos, modelo sempre invocado pelo atual Presidente da República, a alíquota da personal income tax é de 37%.

Como se essa fraqueza tributária não fosse satisfatória para o pessoal da classe média, sem falar dos bilionários, em 1995 foi aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei nº 9.249, que estabeleceu a isenção do imposto de renda sobre os lucros e dividendos, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas aos seus sócios ou acionistas. Suponhamos, então, que um sujeito abonado decida investir o grosso de seu patrimônio, para compensar os riscos, em uma dezena de companhias. Quanto pagará de imposto de renda pelos dividendos recebidos? Zero.

Quanto ao imposto de renda das pessoas jurídicas, a alíquota no Brasil varia de 6% a 15%. Ainda aí, o nosso legislador procurou preservar os patrimônios empresariais, sem dúvida na suposição de que todas as empresas aqui domiciliadas contribuem para a riqueza nacional. Acontece que, ao fazermos uma comparação internacional, verificamos que a alíquota máxima desse imposto no Brasil é inferior à de 35 (exatamente trinta e cinco) outros países, inclusive aquela aplicada no paraíso sempre exaltado pelo nosso Chefe de Estado, os Estados Unidos da América: 25,9%.

Ainda no campo da política tributária, vale lembrar que a Constituição de 1988, numa inesperada inovação, criou o imposto sobre grandes fortunas, a ser instituído pela União Federal (art. 153, inciso VII). No entanto, como era desde logo óbvio, sobretudo para aqueles a quem tal imposto seria dirigido, a lei complementar necessária para dar efetividade a esse dispositivo constitucional até hoje não foi votada pelo Congresso.

Esses são apenas alguns exemplos dos remédios que podem e devem ser utilizados, para minimizar os efeitos da moléstia pandêmica; embora todos saibamos que o seu custo será suportado, como sempre neste país, sobretudo pela multidão dos pobres e miseráveis.

*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Sobre a ignorância artificialEugenio Bucci 15/06/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Hoje, a ignorância não é uma casa inabitada, desprovida de ideias, mas uma edificação repleta de baboseiras desarticuladas, uma gosma de densidade pesada que ocupa todos os espaços
  • Franz Kafka, espírito libertárioFranz Kafka, espírito libertário 13/06/2024 Por MICHAEL LÖWY: Notas por ocasião do centenário da morte do escritor tcheco
  • A sociedade da história mortasala de aula parecida com a da história usp 16/06/2024 Por ANTONIO SIMPLICIO DE ALMEIDA NETO: A disciplina de história foi inserida numa área genérica chamada de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e, por fim, desapareceu no ralo curricular
  • Impasses e saídas para o momento políticojosé dirceu 12/06/2024 Por JOSÉ DIRCEU: O programa de desenvolvimento tem de ser a base de um compromisso político da frente democrática
  • Fortalecer o PROIFESsala de aula 54mf 15/06/2024 Por GIL VICENTE REIS DE FIGUEIREDO: A tentativa de cancelar o PROIFES e, ao mesmo tempo, fechar os olhos para os erros da direção da ANDES é um desserviço à construção de um novo cenário de representação
  • Introdução a “O capital” de Karl Marxcultura vermelho triangular 02/06/2024 Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: Comentário sobre o livro de Michael Heinrich
  • Hélio Pellegrino, 100 anosHelio Pellegrino 14/06/2024 Por FERNANDA CANAVÊZ & FERNANDA PACHECO-FERREIRA: Na vasta elaboração do psicanalista e escritor, ainda há um aspecto pouco explorado: a luta de classes na psicanálise
  • A greve das Universidades e Institutos federaisvidros corredor 01/06/2024 Por ROBERTO LEHER: O governo se desconecta de sua base social efetiva ao afastar do tabuleiro político os que lutaram contra Jair Bolsonaro
  • A armadilha de Volodymyr Zelenskystar wars 15/06/2024 Por HUGO DIONÍSIO: Quer Zelensky consiga o seu copo cheio – a entrada dos EUA na guerra – ou seu copo meio cheio – a entrada da Europa na guerra –, qualquer das soluções é devastadora para as nossas vidas
  • A PEC-65: independência ou patrimonialismo no Banco Central?campos neto cavalo de troia 17/06/2024 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: O que Roberto Campos Neto propõe é a emenda constitucional do almoço grátis para a futura elite do Banco Central

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES