Por KÁTIA GERAB BAGGIO*
O racismo, que é estrutural, tem raízes históricas profundas vinculadas à escravidão, como também ao colonialismo e ao imperialismo, sustentáculos da construção, expansão e fortalecimento do sistema capitalista
O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, em Porto Alegre, na noite de 19 de novembro — véspera do Dia da Consciência Negra no Brasil —, foi mais um entre inúmeros casos inaceitáveis de violência cometida por policiais e seguranças terceirizados de empresas privadas contra pessoas negras e pardas, quase sempre pobres ou de classe média baixa.
A pressão social para mudanças profundas na formação de policiais e seguranças de empresas privadas, no sentido da valorização dos direitos humanos e contra a mentalidade assassina que permeia expressões como “faca na caveira”, é fundamental e urgente.
Quando escutei pela primeira vez, há muitos anos, na cidade de São Paulo, a expressão “direitos humanos para humanos direitos”, levei um choque. Ela quer dizer, claramente, que direitos humanos só deveriam valer para os “humanos direitos”, ou seja, para os autonomeados “cidadãos de bem” ou “homens de bem”. O resultado dessa visão de mundo — elitista e de viés fascista —, na prática cotidiana, é que os direitos humanos não deveriam valer para os discriminados e “suspeitos” de sempre: pretos(as) e pobres, entre tantos excluídos(as) de uma sociedade historicamente e terrivelmente desigual.
O racismo, que é estrutural, tem raízes históricas profundas, como se sabe, vinculadas à escravidão, como também ao colonialismo e ao imperialismo, sustentáculos da construção, expansão e fortalecimento do sistema capitalista.
A decisão de corporações de mídia — como os grupos Folha e Globo — e de outros grupos empresariais em aderir ao discurso e a práticas antirracistas é resultado da pressão social e internacional, mas essas mesmas corporações e empresas continuam a defender uma política econômica que privilegia os agentes e beneficiários do capitalismo financeiro; uma política tributária regressiva, na qual os mais ricos pagam muito menos impostos, proporcionalmente à renda e ao patrimônio, do que os mais pobres (sem contar a escandalosa sonegação e as facilidades para desviar recursos para os chamados “paraísos fiscais”); uma política econômica ultraliberal que defende um drástico enxugamento do Estado e a privatização de empresas estatais e de serviços públicos; além de (contra) reformas que precarizam ainda mais o trabalho e eliminam direitos sociais, ou seja, tudo o que provoca uma concentração ainda maior da renda e da riqueza, e o aumento da pobreza e da miséria, em um país já tão desigual. São as mesmas corporações que denominam como “populistas” quaisquer políticas de Estado que tenham como objetivo a distribuição de renda e a diminuição das desigualdades.
Todo o debate em torno da interseccionalidade — ou seja, dos vínculos inseparáveis e estruturais entre os mecanismos de dominação de raça, classe e gênero — é fundamental, mas negligenciado pelas corporações capitalistas, que, ao incorporarem o discurso em defesa da igualdade racial e de gênero, não estabelecem os vínculos necessários com a dominação de classe, por razões óbvias. As formas de dominação racial, de classe e de gênero se retroalimentam, na atualidade e historicamente.
A consciência da interseccionalidade é muito forte, hoje, entre as principais lideranças do movimento negro, e não é por outra razão que a maioria das lideranças antirracistas, feministas e dos direitos da população LGBTQI+ milita em organizações e partidos de esquerda e centro-esquerda.
*Kátia Gerab Baggio é professora de História das Américas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).